Os crimes de perigo abstrato é um tema controvertido no Direito Penal moderno fundamentado na culpa, porque eles supõem um risco para um bem jurídico sem se chegar a traduzir numa lesão efetiva, podendo supor tratar-se de uma responsabilidade penal objetiva.
A utilização dos tipos penais de crime de perigo abstrato não é uma criação moderna do efeito da expansão do Direito Penal da sociedade pós-industrial visto que o nosso Código Penal já tipificava alguns crimes de perigo abstrato, embora como exceção aos crimes de resultado. Exemplo disso era o crime de quadrilha ou bando definido no artigo 288 do Código Penal.
Contudo, nas últimas décadas a utilização de tipos de crime de perigo abstrato tem-se tornado recorrente face à tradicional tipologia baseada no domínio dos crimes de resultado ou lesão. São crimes de perigo abstrato os crimes contra a paz pública, o meio ambiente, a saúde pública, a segurança viária, a economia etc. Tem-se justificado esta tendência pelo fato de vivermos numa sociedade que para seu desenvolvimento (ou desenvolvimentismo) requer-se a assunção de maiores e novos riscos (princípio da precaução). A contrapartida é que o Direito impõe maiores deveres para as pessoas frente à utilização desses instrumentos geradores de risco, adiantando as barreiras da intervenção penal (casos de antecipação da tutela penal)[1].
Vários argumentos sólidos extraídos da realidade social fundamentam a utilização dos crimes de perigo abstrato que devem ser utilizados exclusivamente na proteção dos bens jurídicos coletivos ou transindividuais.
Sob o prisma sociológico, conforme Bustos, na distribuição dos bens jurídicos existem aqueles que dizem respeito à existência do sistema (bens jurídicos individuais) e aqueles que dizem respeito ao funcionamento do sistema (bens jurídicos coletivos), uns e outros não estão posicionados antagonicamente, mas posicionam-se numa relação teleológica. E essa é uma determinante importante para a interpretação dos crimes de perigo abstrato. Sem os bens jurídicos coletivos o sistema pode existir, mas não funciona ou o faz defeituosamente. Os bens jurídicos coletivos estão a serviço da base existência do sistema, isto é, os bens jurídicos coletivos estão a serviço dos bens jurídicos individuais. Eles são, portanto, instrumentais dos bens jurídicos individuais e assim devem ser interpretados; não isoladamentes, mas em conjunto com os bens jurídicos individuais. Os bens juridicos coletivos representam uma rede prévia de proteção, necessária e indispensável dos bens jurídicos individuais, que estão ancorados na base desse sistema[2].
O principal argumento jurídico no caso dos bens jurídicos coletivos é que, porque eles não possuem um substrato material em que se possa recair a ação típica do agente, eles não podem ser ofendidos na forma da concepção clássica com a produção de um resultado naturalístico, ou seja, os bens jurídicos coletivos ou transindividuais não são suscetíveis de destruição física. Portanto, a técnica usada na proteção desses bens jurídicos é a da edição de crimes de perigo abstrato.
Como tem destacado Klaus Tiedemann, nesses bens jurídicos não é possível, muitas vezes, abarcar os menoscabos dignos de sanção penal de forma racional e constitucional, vale dizer, da forma suficientemente precisa, mas que devem descrever-se as condutas concretas como deveres (crimes de atividade)[3]. A distinção entre bens jurídicos individuais e coletivos – como diz o grande Muñoz Conde – não tem um valor absoluto, porque tão importante é para o indivíduo que se respeitem os bens jurídicos que lhe afetam diretamente como os que afetam a ordem social em que o indivíduo tem de viver e realizar-se[4].
A finalidade perseguida pelo legislador nesses casos tem um conteúdo preventivo: evitar a produção de danos catastróficos e irreparáveis. O legislador não espera para intervir a que se produza o dano ou a lesão a um bem jurídico individual, mas adianta o momento da aparição concreta do perigo (crimes de perigo concreto) ou, inclusive, a simples realização da conduta considerada normativamente perigosa (crimes de perigo abstrato)[5]. Maurach diz que a perigosidade abstrata é a medida que o legislador utiliza para proibir certas ações que possam qualificar-se como perigosas aos bens jurídicos individuais de acordo com a experiência ordinária (cfr. Adolf Schröder, ZStW 81, 22)[6].
Contudo, existe um programa constitucional de Direito Penal, que fundamenta, racionaliza e legitima o direito punitivo, e os crimes de perigo abstrato não podem fugir desse sistema. De acordo com Franco Bricola, da Constituição é possível fazer-se uma leitura constitucionalmente orientada "negativa" e outra "positiva" do Direito Penal, como fundamentos e filtros do direito punitivo. Na sua concepção "negativa" a Constituição impõe limites às escolhas do legislador ao estabelecer os princípios e fundamentos (legalidade, ofensividade, proporcionalidade, intervenção mínima, culpabilidade etc.). Na leitura constitucionalmente orientada "positiva", a Constituição estabelece “in positivo” quais são os "objetos de interesse meritório de tutela penal" e principalmente "quais são as técnicas que o legislador deve empregar para garantir a eficácia da tutela desses bens jurídicos". Neste aspecto positivo ganha importância as "ações afirmativas", a "proibição da proteção deficiente", as "leis penais em branco" e os "crimes de perigo abstrato"[7].
Nesse sentir, a própria Constituição Federal impõe mandados de criminalizações a ofensas de bens jurídicos coletivos, tal como, por exemplo, no caso do crime de tráfico de drogas (CF, art. 5.º, XLIII) na tutela da saúde pública. Nesse caso, porque estamos diante de um bem jurídico coletivo, a proteção da saúde pública deve-ser dar necessariamente por meio de edição de crimes de perigo abstrato, descrevendo-se apenas a conduta proibida, nada mais, porque o legislador presume de forma absoluta (jures et de juris), de acordo com a experiência, que o perigo de disseminação do uso da droga na sociedade atenta contra a saúde pública. Para a consumação do crime basta que o sujeito ativo pratique qualquer uma das condutas tipificadas no art. 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), tal como “importar”, “exportar”, “remeter”, “preparar”, “produzir”, “fabricar”, “adquirir”, “vender”, “expor à venda”, “oferecer”, “ter em depósito”, “transportar”, “trazer consigo”, “guardar, prescrever”, “ministrar”, “entregar a consumo” ou “fornecer drogas, ainda que gratuitamente” com fim do comércio clandestino.
Conforme Klaus Tiedemann, a teoria do bem jurídico próxima do tipo penal encontra certas dificuldades, pois que o bem jurídico protegido não corresponde imediatamente com o objeto da conduta (crime sem resultado naturalístico ou de resultado normativo) e com um a vítima concreta (crime vago). Ao contrário, Ivo Appel (Verfassung und Strafe, 1998, p. 390) assinala, de forma acertada, que a teoria penal do bem jurídico tem perdido sua relevância como limite da punibilidade do Estado constitucional democrático a favor de disposições constitucionalmente materiais[8].
Contudo, existe um standard constitucionalmente traçado no sentido de conferir uma interpretação restritiva aos tipos penais dos crimes de perigo abstrato para que eles não se convertam em arma arbitrária nas mãos dos juízes que, como qualquer outro cidadão, devem observar e cumprir o sistema penal constitucional e as leis decorrentes desse sistema.
Veja que nos crimes de perigo abstrato ao considerar-se que é punida uma perigosidade presumida por lei, tal presunção entra em sério conflito com os princípios da lesividade e estado de inocência. Na Alemanha, atualmente, e apesar de uma sentença contrária do Tribunal Federal Constitucional (tomo 9, p. 167 e ss., em matéria econômica), estas presunções são consideradas como uma infração flagrante ao princípio da constitucional da culpabilidade[9].
Para que os crimes de perigo abstrato não atentem contra tais princípios constitucionais, eles devem sofrer uma interpretação restritiva do tipo. Sem essa interpretação restritiva eles corresponderiam como crimes de atividade ou de desobediência ou ainda de infidelidade normativa, o que seria incompatível com a Constituição, com o Estado Democrático de Direito e com o Direito Penal moderno, que se fundamenta justamente na culpa (lato senso) do agente do fato. E nesse sentido, a reforma da Parte Geral do nosso Código Penal de 1984 foi fiel ao sistema do Direito Penal da culpabilidade (nullum crimen sine injuria), abolindo a responsabilidade objetiva por mera causação de um resultado típico[10]. Esse resultado pode ser naturalístico ou normativo.
Para não cair nessa contradição com o sistema constitucional, numa interpretação conforme os crimes de perigo abstrato devem pertencer a uma categoria intermediária entre os crimes de perigo de concreto e os de infidelidade normativa, chamados de crimes de "perigo hipotético" ou de "perigo abstrato-concreto". Nesses casos não é necessário demonstrar a ausência de um perigo concreto para o bem jurídico, porém, tampouco é suficiente conformar-se somente em estabelecer a perigosidade abstrata da ação para produzir um prejuízo ao bem jurídico[11]. Por outras palavras, quer dizer que nos crimes de perigo abstrato a conduta do agente deve apresentar alguma relevância jurídica para o bem jurídico coletivo tutelado para ganhar entidade penal. De acordo com esse entendimento: (1) as condutas absolutamente inócuas são atípicas, ou ainda, (2) as condutas inócuas, embora formalmente típicas, configuram caso de crime impossível (art. 17 do CP).
Como a situação de perigo está prevista de forma implícita no tipo penal a um determinado e específico bem jurídico coletivo essa situação de perigo típico deve ser valorada pelo intérprete no momento da aplicação do tipo penal, isto porque, a simples atribuição objetiva de um fato não faz merecedor a um sujeito da reação penal do Estado; tampouco determina a “necessidade” de tal reação[12]. Como tem destacado Muñoz Conde, a simples contradição entre a conduta e o ordenamento jurídico se chama de ilicitude formal. A ilicitude não se esgota, todavia, nesta relação de oposição entre a ação e a norma, mas tem também um conteúdo material refletido na ofensa ao bem jurídico que a norma quer proteger. Se fala neste caso de ilicitude material. Ilicitude formal e ilicitude material são aspectos do mesmo fenômeno. Uma ação que contradiz a norma de maneira puramente formal não pode ser qualificada de ilícita, como tampouco pode ser qualificada como tal a lesão de um bem que não está protegido juridicamente. A ausência da ilicitude é, por conseguinte, a ofensa a um bem jurídico protegido pela norma que se infringe com a realização da ação. Na medida em que não se dá essa ofensa ao bem jurídico não se pode falar de ilicitude, por mais que aparente ou formalmente exista uma contradição entre a norma e a ação[13].
Muñoz Conde oferece-nos um exemplo esclarecedor. O artigo 340-bis do Código Penal espanhol pune a condução de automotor sob o efeito do àlcool ou drogas, cuja redação do tipo penal é semelhante ao nosso artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. A configuração do tipo penal não exige a demonstração de uma exposição de perigo concreto, bastando somente com a condução do veículo em tais circunstâncias, ao não se exigir que tal conduta dê lugar a um risco específico; todavia, não se pode cair no absurdo de se punir condutas como a do condutor embriagado que às três da madrugada circula por alguns metros na praia deserta, pois há que se exigir um mínimo de perigo para os bens jurídicos[14].
Essas observações na interpretação dos crimes de perigo abstrato estão em harmonia com a Constituição Federal e impedem que o Direito Penal eles se transformem numa reação "prima ratio", meramente sintomática de uma perigosidade. A interpretação conforme de âmbito restritivo dos crimes de perigo abstrato conecta-se com os princípios do Direito Penal liberal-garantista contemplados pela Constituição Federal, e principalmente com o postulado da intervenção mínima que se traduz na seguinte máxima: somente os ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes devem ser objeto de sanção penal.
Notas
[1] ROLDÁN BARBERO, Horacio, Manual de Derecho Penal, Parte General, Granada: Comares, 2012, p. 84.
[2] BUSTOS RAMÍREZ, Juan, Manual de Derecho Penal, Parte General, 2 ed. Barcelona: Ariel, 1991, pp. 4-6.
[3] TIEDEMANN, Klaus, Manual de Derecho Penal Econômico, Valencia: Tirant lo Blanch, 2010 p. 67.
[4] MUÑOZ CONDE, Francisco, Teoría General del Delito, 4 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 65.
[5] GÓMEZ DE LA TORRE, Ignácio Berdugo et ali, Manual de Derecho Penal, 2 ed. Madrid: Experiencia, 2010, p. 216.
[6] MAURACH, Reinhart, Strafrecht, AT, I, 7 Aufl. Heilderberg: C. F. Müller, 1987 § 17, III, n.m. 27.
[7] citado por CANESTRARI, Stefano, CORNACCHIA, Luigi & DE SIMONE, Giulio, Manuale di Diritto Penale, Parte Generale, Bologna: Il Mulino, 2007, p. 211.
[8] TIEDEMANN, Klaus, Manual de Derecho Penal Econômico, Valencia: Tirant lo Blanch, 2010 p. 67.
[9] TIEDEMANN, Klaus, Manual de Derecho Penal Econômico, Valencia: Tirant lo Blanch, 2010 p. 72.
[10] A esse respeito com muita ênfase a invulgar obra Princípios Básicos de Direito Penal, do eminente Ministro Francisco de Assis Toledo (5 ed. Saraiva, 1994), que é também um dos coautores do anteprojeto da reforma da Parte Geral do Código Penal.
[11] Cf. GÓMEZ DE LA TORRE, Ignácio Berdugo et ali, Manual de Derecho Penal, 2 ed. Madrid: Experiencia, 2010, p. 216.
[12] GARRIDO MONTT, Mario, Derecho Penal, Tomo I, Parte General, Santiago: Jurídica de Chile, 2001, pp. 43 e 47.
[13] MUÑOZ CONDE, Francisco, Teoría General del Delito, 4 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 98.
[14] MUÑOZ CONDE, Francisco, Derecho Penal, Parte Especial, 9 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1993, p. 456-457.