3) DIREITO PENAL DO INIMIGO
Superadas tais questões preliminares, torna-se possível a explicação sobre o conceito da Teoria do Direito Penal do Inimigo, as teorias que lhe dão suporte, além de breves comentários sobre a repercussão da mesma entre outros doutrinadores, mencionando tanto aqueles que criticam, quanto àqueles que defendem, tanto a referida teoria quanto os fundamentos por detrás dela.
3.1) CONCEITO DE DIREITO PENAL DO INIMIGO
Primeiramente, antes de discutir a repercussão em torno da Teoria do Direito Penal do inimigo, torna-se imprescindível explicar a mesma.
A Teoria do Direito Penal do Inimigo foi criada por Günther Jakobs, tendo sua primeira versão sido apresentada em 1985, sendo posteriormente alterada e reapresentada de maneira diversa em 1999. Novamente, conforme já foi explicado, a grande diferença entre ambas versões da referida teoria, de modo bem resumido, era o fato de que, em primeiro momento, Jakobs simplesmente descreveu o que seria a Teoria do Direito Penal do Inimigo, diferenciando-a do Direito Penal comum e não defendendo sua aplicação, o que foi alterado na segunda versão, em que ele, de fato, defendia a aplicação da mesma.
Dito isto, para explicar a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs, é importante mencionar que ele dividia a aplicação do direito penal em dois tipos: O Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo, sendo que ambos possuíam diferentes normas penais e processuais penais, e deveriam ser aplicados para o cidadão, e para o inimigo, respectivamente. Nesse sentido, leciona Günther Jakobs:
Portanto, o Estado pode proceder de dois modos com os delinquentes: pode vê-los como pessoas que delinquem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação.[86]
Nesse sentido, JAKOBS mostra qual seu objetivo com a diferença entre tratamentos diante daquele considerado cidadão e daquele considerado inimigo: Ao primeiro, uma punição por ter cometido um erro, ao segundo, sua contenção para a preservação do bem-estar social.
Porém, diante deste conceito, é necessário fazer o diferenciação sobre o que é considerado cidadão e o que é considerado inimigo para JAKOBS. Nesse sentido, leciona quanto ao conceito de inimigo:
Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.[87]
Já quanto ao conceito de “cidadão”, preleciona:
A exposição não seria completa se não se agregasse à seguinte reflexão: como se tem mostrado, só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, e isso como consequência da ideia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real.[88]
Ou seja, de maneira resumida, entende JAKOBS que o conceito de cidadão seria aplicado àquele indivíduo que possui uma “garantia cognitiva de comportamento pessoal”, ou seja, seria aquele individuo que se importa com a ilicitude do ato que cometeu, o qual é passível de reabilitação para a convivência em sociedade, sendo, portanto, um indivíduo que simplesmente cometeu um erro, algum desvio.
O conceito de inimigo, por outro lado, é aquele indivíduo que não apresentaria a referida “garantia cognitiva de comportamento pessoal”, ou seja, seria aquele indivíduo que ele considera não reabilitável, sendo alguém que, caso não esteja recluso, voltará a delinquir, pelo simples fato de que, apesar de ter ciência da ilicitude de seus atos, não se importa com isso, sendo considerado, portanto, um risco a ser contido.
Obviamente, a contenção do indivíduo de tal maneira, certamente traria certas violações de direitos humanos, tanto que Jakobs explica que[89], na atualidade, o entendimento majoritário seria de que, em todos indivíduos, existiria uma ordem mínima juridicamente vinculante, não podendo, portanto, haver tal tipo de violação dos direitos humanos fundamentais. Porém, tenta rebater tais argumentos quando afirma que[90] o Direito Penal do Inimigo não é aplicado contra “pessoas culpáveis”, somente contra “inimigos perigosos”.
De modo mais detalhado, leciona Kelly Cardoso da Silva sobre o conceito de inimigo:
A característica do inimigo é o abandono duradouro do Direito e a ausência da mínima segurança cognitiva em sua conduta, sendo plausível que o modo de afrontá-lo fosse com o emprego de meios de asseguramento cognitivo desprovidos da natureza de penas[...][91].
Ainda quanto ao binômio pessoa x inimigo, ensina Kelly Cardoso da Silva[92] que o estado pode tratar os delinquentes de duas formas distintas: como indivíduos que infringiram a lei, não se afastando de modo duradouro ou permanente das mesmas, ou como indivíduos de alta periculosidade, que devem ser impedidos de acabar com o ordenamento jurídico pela coação.
Quanto ao conceito de “garantia cognitiva”, ensina Günther Jakobs, citado por Kelly Cardoso da Silva:
Além da certeza de que ninguém tem direito a matar, deve existir também a de que com um alto grau de probabilidade ninguém vá matar. Agora, não somente a norma precisa de um fundamento cognitivo, mas também a pessoa. Aquele que pretende ser tratado como pessoa deve oferecer em troca uma certa garantia cognitiva de que vai se comportar como pessoa. Sem essa garantia, ou quando ela for negada expressamente, o Direito Penal deixa de ser uma reação da sociedade diante da conduta de um dos seus membros e passa a ser uma reação contra um adversário. [93]
Porém, feito tal conceituação de “cidadão” e “inimigo”, é possível entender para quais indivíduos seria aplicável o Direito Penal do Inimigo, mas não suas consequências.
Quanto a isto, ensina Manuel Cancio Meliá[94] que o Direito Penal do Inimigo se caracterizava por três elementos principais: Adiantamento da punibilidade, penas desproporcionalmente altas e, por fim, relativização ou supressão de garantias processuais.
Já Gabriel Habib leciona sobre a divergência entre direito penal do cidadão e direito penal do inimigo da seguinte maneira:
O Direito Penal do cidadão é dirigido ao delinquente que desviou a sua conduta e praticou um crime, mas, por mais grave que o delito seja, ao praticá-lo, não colocou em perigo o próprio Estado ou suas instituições. Trata-se de um crime normal, praticado por uma pessoa que negou a vigência da norma ao delinquir e que pode não mais voltar a delinquir no futuro. Não se vê nessa pessoa um inimigo do Estado que deve ser neutralizado, mas sim um cidadão que oferece garantias cognitivas de que se ajustará ao direito e que será punido com uma pena criminal como forma de restabelecer a vigência da norma, mantendo-se a expectativa normativa, fazendo com que os demais participantes do contrato social possam seguir as suas vidas na certeza de que as normas proibitivas de crimes continuam em vigor.
O Direito Penal do inimigo dirige-se àquelas pessoas que defraudam as expectativas normativas e, além disso, não oferecem garantias cognitivas suficientes de um comportamento pessoal adequado ao Direito e que, não só não podem ser tratados como pessoas, como também o Estado não deve trata-los como tal, já que do contrário, vulneraria o direito de segurança das demais pessoas.[95]
Em resumo, Günther Jakobs ensina que[96], diante da falta de comportamento pessoal de um indivíduo o mesmo não deve ser tratado como um cidadão, mas sim combatido como um inimigo, e que um Direito Penal do Inimigo claramente delimitado é menos perigoso que sua aplicação em todo Direito penal.
Já Kelly Cardoso da Silva resume[97] as principais características da Teoria do Direito Penal do Inimigo em: Antecipação da punibilidade com tipificação de atos preparatórios, desproporcionalidade das penas, legislações de luta e restrição de garantias penais e processuais penais. Explica tais pontos afirmando que[98] o inimigo seria punido de acordo com sua periculosidade, não culpabilidade, além do fato de que tais medidas independem da exteriorização dos delitos, se baseando no risco futuro inerente ao indivíduo.
Gabriel Habib[99], por outro lado, divide tais medidas em penais e processuais penais. As primeiras são: criação de crimes de risco independente de sua ofensividade, tipos penais que preveem antecipação da punibilidade, agravação das penas de maneira desproporcional, aplicação de pena como medida de segurança e a criação de “leis de luta”. Já quanto às medidas processuais penais, menciona[100]: restrição de direitos e garantias processuais, alargamentos do prazo de prisão preventiva, ampliação dos prazos de detenção policial como medida investigatória, inversão do ônus da prova, permissão no uso de provas excepcionais e limitação de benefícios penitenciários.
Diante de tais características, importante compará-las ao Direito Penal comum, para explicitar suas diferenças.
Na Teoria do Direito Penal do Inimigo, existiria uma antecipação da punibilidade dos atos preparatórios do delito, coisa que, em regra, não é punível na nossa legislação. Tal fato é de grande importância pois, uma punição pode ser imposta à um ato preparatório de algum crime que o próprio indivíduo pode acabar desistindo antes de cometer, sendo, portanto, injusto ser punido mesmo antes de cometer (ou não) o crime.
Outra característica de tal teoria, conforme já foi explicado, seria a desproporção entre os crimes cometidos e as penas aplicáveis, com fulcro unicamente na periculosidade do indivíduo. Tais penas se justificariam, dentro de tal teoria, em razão da periculosidade do indivíduo e sua tendência de cometimento de delitos, que faz necessário que o mesmo continue preso para não cometer mais crimes. Novamente, isso seria incompatível com o Direito Penal vigente, pois as reprimendas devem ser, necessariamente, proporcionais ao dano causado.
Por fim, como última característica dominante, tem se a flexibilização das garantias penais e processuais penais para o indivíduo que é considerado um “inimigo”. Porém, diferente das outras características mencionadas, tal característica encontra-se presente, mesmo que de forma bem mitigada, no nosso ordenamento jurídico. Tem se como exemplo, o fato de que a Lei dos Crimes Hediondos possui certas diferenças quanto às garantias processuais em relação aos crimes não hediondos, tais como vedação de fiança, graça, anistia e indulto, porém, tais disposições serão abordadas de maneira mais aprofundada em momento oportuno.
3.2) TEORIAS QUE EMBASAM A TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Importante notar que, apesar do fato de que a Teoria do Direito Penal do Inimigo tem características únicas, ela compartilha diversos fundamentos com muitas teorias anteriores à mesma.
Tem, como exemplo, fundamentação na Teoria da Pena. Dentre as vertentes sobre a função da pena, tal teoria se relaciona intimamente com a Teoria da Prevenção Especial Negativa, mas também tendo uma certa relação quanto às teorias de Prevenção Geral Negativa e Prevenção Geral Positiva.
Primeiramente, ao se analisar a Teoria da Prevenção Especial Negativa, percebe-se que a mesma entende que a pena tem como função prevenir que o delinquente cometa novos delitos mediante seu encarceramento, pelo simples fato de que o delinquente, enquanto encarcerado, não teria como cometer novos delitos. A teoria do Direito Penal do Inimigo, ao defender a prisão de indivíduos pela sua periculosidade, também busca evitar com que os mesmos cometam crimes ou reincidam, do mesmo modo que consta na Teoria da Prevenção Especial Negativa.
Além disso, a Teoria da Prevenção Geral Negativa prevê que a pena tem como função intimidar o possível delinquente pela perspectiva de aplicação da pena. A Teoria do Direito Penal do Inimigo, por sua vez, prevê penas altas e desproporcionais para os crimes cometidos, sendo que, com isso, além de atuar na Prevenção Especial Negativa, serve como intimidação para que o possível criminoso se contenha para não cometer nenhum delito. As mesmas semelhanças são encontradas ao comparar a Teoria do Direito Penal do Inimigo com a Teoria da Prevenção Geral Positiva, com a diferença de que, na mesma, tal intimidação se dá com a efetiva aplicação da pena, deixando evidente para a sociedade que, ao se cometer um delito, o indivíduo será punido com rigor.
É possível, também, fazer um paralelo entre a Teoria do Direito Penal do Inimigo e a Teoria de Direito Penal do Autor.
É oportuno lembrar que as Teorias do Direito Penal do Fato e a Teoria do Direito Penal do autor versam sobre o mesmo assunto, mas possuem grandes diferenças. Conforme já foi explicado anteriormente, em suma, a Teoria do Direito Penal do Fato entende que o Direito Penal, a aplicação das penas, deve se dar baseada nos fatos que ocorreram e nas circunstâncias do delito. Já a Teoria do Direito Penal do Autor tem outro foco, entende que, mais importante para o Direito Penal e Processual Penal que o fato, é a análise do autor e sua periculosidade.
Quanto à segunda teoria, evidente sua similaridade com o Direito Penal do Inimigo. A teoria idealizada por Günther Jakobs, assim como a Teoria do Direito Penal do Autor, prevê que, as penas, o Direito Penal e Processual Penal, devem se focar nas características do indivíduo e de sua periculosidade, mencionando, por inúmeras vezes que o Direito Penal do Inimigo deve ser aplicado quando o indivíduo não possuir “segurança cognitiva”[101].
Nesse sentido, ensina Eugenio Raúl Zaffaroni:
Assinalou-se que as características deste avanço contra o tradicional direito penal liberal ou de garantias consistiriam na antecipação das barreiras de punição (até os atos preparatórios), na desproporção das consequências jurídicas (penas como medidas de contenção sem proporção com a lesão realmente inferida), na marcada debilitação das garantias processuais e na identificação dos destinatários mediante um forte movimento para o direito penal de autor. [102]
Diante do exposto, resta comprovado as semelhanças de tal teoria com a Teoria do Direito Penal do Inimigo.
É possível, também, fazer um paralelo entre a Teoria do Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal de 3ª Velocidade de autoria de Jesus Maria Silva Sánchez.
Cabe relembrar que, em tal teoria, o Direito Penal é divido em 3 velocidades, sendo que, em cada uma delas existem diferenças quanto à gravidade do delito cometido e quanto às garantias processuais mantidas ao indivíduo que comete o delito.
Em tal teoria, a 3ª velocidade, mais específicamente, deveria ser aplicada em crimes mais graves, nos quais estariam previstas penas de reclusão, mas, ao mesmo tempo, existiria a possibilidade de flexibilização de certas garantias processuais penais, caracterizando um Direito Penal de Exceção. Evidente que tal teoria possui grandes semelhanças com a Teoria do Direito Penal do Inimigo, pois ele também prevê que, diante da periculosidade do agente, além da sua possibilidade de reincidência, suas garantias penais e processuais penais podem ser relativizadas, pois trata esse tipo de delinquente não como um indivíduo, mas como um risco que deve ser contido mediante encarceramento.
Quanto à tais semelhanças, ensina Manuel Cancio Meliá:
De modo materialmente equivalente, na Espanha, Silva Sánchez tem incorporado o fenômeno do Direito Penal do inimigo a sua própria concepção politico-criminal. De acordo com sua posição, no momento atual, estão se diferenciando duas <<velocidades>> no marco do ordenamento jurídico-penal: a primeira velocidade seria aquele setor do ordenamento em que se impõe penas privativas de liberdade, e no qual, segundo Silva Sánchez, devem manter-se de modo estrito os princípios político-criminais, as regras de imputação e os princípios processuais clássicos. A segunda velocidade seria constituída por aquelas infrações em que, ao impor-se só penas pecuniárias ou restritivas de direito – tratando-se de figuras delitivas de cunho novo -, caberia flexibilizar de modo proporcional esses princípios e regras <<clássicos>> a menor gravidade das sanções. Independentemente de que tal proposta possa parecer acertada ou não – uma questão que excede destas breves considerações -, a imagem de <<duas velocidades>> induz imediatamente a pensar – como fez o próprio Silva Sánchez – no Direito Penal do Inimigo como <<terceira velocidade>>, no qual coexistiriam a imposição de penas privativas de liberdade e, apesar de sua presença, a <<flexibilização>> dos princípios político-criminais e as regras de imputação.[103]
Por fim, percebe-se que a Teoria do Direito Penal do Inimigo tem grandes semelhanças com inúmeras teorias contratualistas, como de Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant.
Em sua teoria contratualista, Rousseau entendia que[104] o Estado tinha o direito até mesmo sobre a vida dos seus cidadãos, e que tal fato era essencial para proteger a coletividade. Além disso, havia o entendimento de que[105] o indivíduo que cometesse algum delito passava a entrar em guerra com o Estado, sendo, portanto, seu inimigo, e, com isto, perdia todos os direitos garantidos pelo contrato social.
A teoria de Fichte possui grande semelhança com a de Rousseau, sendo que a mesma previa que[106] aquele indivíduo que abandonasse o contrato cidadão perderia todos os direitos como cidadão e como ser humano.
No mesmo sentido entendia Hobbes, afirmando que[107] o pacto social tinha como principal fundamento a proteção do monarca, sendo que aquele que cometesse os crimes de rebelião ou alta traição também seria despido de seus direitos e considerado um Inimigo. Importante ressaltar que, diferente das teorias anteriores, Hobbes somente considerava como inimigo o indivíduo que cometesse os crimes de rebelião ou alta traição, considerados por ele mais graves, não se aplicando para outros tipos de crimes.
Por fim, na teoria contratualista de Kant, existia a previsão de que[108] aquele indivíduo que não seguisse as regras da sociedade e ameaçasse a ordem social não deveria ser tratado como pessoa. Novamente, também é interessante ressaltar que tal teoria prevê que somente deixaria de ter os direitos como pessoa àquele indivíduo que ameaçasse a ordem social mediante o cometimento de delitos, não bastando, para tal classificação, o mero cometimento de um delito.
Da análise de tais teorias, evidente suas semelhanças com o Direito Penal do Inimigo. Percebe-se que as mesmas estabelecem que os indivíduos que cometerem crimes, ou que cometerem crimes específicos considerados mais graves, em algumas dessas teorias, deixaria de ser tratado como um cidadão e passaria a ser tratado como um inimigo, como um risco que deveria ser contido para que se mantenha a continuidade do Contrato Social. A teoria do Direito Penal do Inimigo, por outro lado, defende que aquele indivíduo que comete delitos e não possui segurança cognitiva de que irá se reabilitar, deixar de cometer crimes[109], deve ser tratado como um Inimigo do Estado, alguém que deve ser considerado um risco, e que deve ser contido para que não mais cometa crimes.
Tanto evidente as influências de tais teorias contratualistas na Teoria do Direito Penal do Inimigo que o próprio Gunther Jakobs as cita em sua teoria, quando explica sobre a defesa do Estado contra o “inimigo”. Nesse sentido:
São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem o delito no sentido de que o delinquente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Em correspondência com isso, afirma Rousseau que qualquer <<malfeitor>> que ataque o <<direito social>> deixa de ser <<membro>> do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. A consequência diz assim: <<ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão>>. De modo similar, argumenta Fichte: <<quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a um estado de ausência completa de direitos>>.[110]
Porém, apesar de evidentes tais semelhanças, Günther Jakobs busca se distanciar das teorias supramencionadas, afirmando que:
Não quero seguir a concepção de Rousseau e de Fichte, pois na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar e ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato.[111]
Diante de tudo que foi exposto neste capítulo, é evidente que, apesar de Günther Jakobs ter inovado com sua Teoria do Direito Penal do Inimigo, existiram inúmeras teorias com fundamentos similares à sua, demonstrando, claramente, que se baseou nelas para desenvolver sua própria teoria.
3.3) REPERCUSSÃO DA TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Como já foi previamente mencionado, a Teoria do Direito Penal do Inimigo é altamente polêmica, devido à severidade com que trata àqueles considerados “irrecuperáveis”. Com isso, desde seu desenvolvimento, até os dias de hoje, tal teoria é discutida por inúmeros outros doutrinadores, sejam aqueles que discordam totalmente da referida teoria, ou aqueles que concordam, ao menos parcialmente, com a mesma.
Diante disso, interessante explicitar quais são os comentários feitos tanto à favor quanto contra a referida teoria.
Antes de mencionar quais foram os pontos considerados positivos na Teoria do Direito Penal do Inimigo por certos doutrinadores, é necessário ressaltar que tais comentários são minoria, sendo que a maior parte dos doutrinadores critica a mesma.
Primeiramente, ensina Kelly Cardoso da Silva[112] que a diferenciação de tratamento entre um cidadão e um inimigo, conforme prevista na teoria de Günther Jakobs, somente seria possível em uma sociedade democrática em que fossem reconhecidos os direitos e garantias individuais, pois, em um Estado totalitário, todos os indivíduos seriam considerados e tratados como inimigos.
Por mais que tais comentários não possam configurar exatamente um apoio à Teoria do Direito Penal do Inimigo, evidente que, na opinião da autora, a aplicação de tal teoria realmente só seria possível em um Estado em que fossem garantidos os direitos básicos dos cidadãos, evidenciando que não seria possível a aplicação da mesma em um Estado totalitário, o qual não garantisse direitos à nenhum dos cidadãos.
Além disso, também afirma que[113], apesar das incontáveis críticas direcionadas à teoria de Jakobs, não é possível ignorar que os inimigos de fato existem na concepção da sociedade, com conceitos e tratamentos diferenciados. Ensina[114], também, que, por mais que um Estado que pune com rigor os delinquentes possa ser considerado um “Estado Autoritário”, aquele que não consegue combater com eficiência a criminalidade nada mais é que um “Estado Falido”.
Ainda nesse sentido, conclui que[115] é necessário a diferenciação no tratamento daqueles que se afastam do contrato social de forma mais intensa, sendo isto consequência da aplicação do princípio da igualdade, prevendo, portanto, tratamento diverso aos desiguais.
Diante de tais argumentos, percebe-se que, ao mesmo tempo que um Estado não pode violar de maneira arbitrária os direitos de seus cidadãos, ele deve manter a vigência do ordenamento jurídico, sob pena de criar um “direito” deficiente, incapaz de manter a pacificação social.
Evidente que tais argumentos, por sí só, não são o suficiente para justificar uma aplicação prática da Teoria do Direito Penal do Inimigo, ainda mais da maneira rígida como esta foi criada, porém, não deixa de ser algo de relevância para esse estudo.
Porém, dito isto, é importante listar também as críticas realizadas por inúmeros doutrinadores quanto à Teoria do Direito Penal do Inimigo.
De maneira completamente oposta aos argumentos de Kelly Cardoso da Silva, Eugenio Raúl Zaffaroni entende que[116] a existência de um tratamento diferenciado previsto para indivíduos privados do caráter de pessoa, ou seja, àqueles considerados como “inimigos”, é uma característica marcante de um Estado absoluto, totalitário, sendo, portanto, incompatível com um Estado de direito, democrático.
Zaffaroni prossegue neste sentido, afirmando, ainda, que[117] quase todo direito penal do século XX admite tratamento diferenciado quando se tratam de indivíduos perigosos, prevendo a segregação ou eliminação de tais indivíduos, o que é feito mediante a aplicação de medidas de segurança.
Porém, alerta[118] que, a presença de tais disposições que priorizam a segurança em face da possibilidade de conduta futura dos indivíduos, poderia acabar com o que ele afirma ser uma “despersonalização de toda sociedade”.
Já quanto à questão da definição de “grau de periculosidade de um indivíduo”, leciona que[119] tal definição é altamente subjetiva, sendo que quem definiria quem seriam os “inimigos” são aqueles que estão no poder.
Diante de tais argumentos, é possível perceber que existe o seguinte problema: Tanto quem legisla, quanto quem julga, está no poder. Com a aplicação de tratamento diferenciado para o “Inimigo” e a definição, em lei, de quem seria tal inimigo, isso implicaria na possibilidade dos governantes se utilizarem de tais institutos para violar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos através da lei.
Ainda nesse sentido, afirma Zaffaroni:
Aquele que pretende saber quem é o inimigo com um simples olhar para o mundo minimiza ou nem sequer apercebe-se do risco da arbitrariedade política: o inimigo é quem é o inimigo. Dessa perspectiva, pode-se afirmar que qualquer pretensão do poder político de impor a etiqueta a quem não é inimigo seria imediatamente desqualificada ao verificar-se empiricamente que o rótulo é falso.[120]
Percebe-se que o maior temor de Zaffaroni quanto à criação de uma figura de “Inimigo” se dá, principalmente, quanto ao perigo de radicalização de tal conceito, mencionando claramente que tal poder estaria nas mãos de forças políticas, o que poderia gerar arbitrariedades que garantiriam que a classe política se mantenha no poder, e possa, sem nenhuma ilegalidade, limitar direitos inerentes aos cidadãos.
Kelly Cardoso da Silva também tece críticas quanto a teoria do Direito Penal do Inimigo. Primeiramente, afirma que[121] a mídia causa grande influência na criação de leis, gerando a criminalização de condutas sem o estudo prévio necessário, punindo duramente àquilo que chama de fatos “em moda”, ou seja, de grande cobertura e repercussão midiática. Para comprovar a real presença de tal influência, cita[122] inúmeros exemplos de leis que foram criadas pela ampla divulgação midiática de certos fatos, tendo como exemplo mais recente a lei 12.737/12, conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, que surgiu imediatamente após um fato de grande repercussão amplamente divulgado pela mídia. Por fim, explica que[123], tais influências realizadas pela mídia e pela pressão popular sobre o Direito não são algo incomum, e que a maior consequência disso é a inconsistência no direito.
Além de tais críticas, Kelly Cardoso da Silva afirma o seguinte:
Com essa classificação dicotômica dos delinquentes em cidadãos e inimigos, o teórico alemão atribui meramente natureza descritiva ao conceito de inimigo, designando uma realidade ontológica do ser social, identificável por análise de personalidade e objeto de “profecias” de futura criminalidade. [124]
Este é, de maneira inquestionável, o maior problema da Teoria do Direito Penal do Inimigo. Em sua teoria, Günther Jakobs não dá um conceito concreto de inimigo, sendo que o conceito que utiliza para definir os mesmos é amplamente subjetivo, afirmando, unicamente, que inimigo é aquele que “não possui segurança cognitiva”[125], ou seja, é incapaz de viver em sociedade, e, caso não seja contido, continuará a delinquir. Tal definição é ampla e imprecisa, podendo ser manipulada de acordo com o arbítrio do julgador, gerando uma grande insegurança jurídica na sociedade.
Quanto à isso, ensina Kelly Cardoso da Silva:
Ocorre, na realidade, tanto uma banalização da violência na mídia como do próprio Direito Penal. Esquece-se por vezes que o Estado pode considerar inimigo não somente o “outro” (aquele que se encontra distante), mas aquele que defere esse poder quase absoluto ao poder público.[126]