A biopirataria e sua semi-invisibilidade perante o povo e a Lei: Um olhar jurídico-sociológico

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23/04/2019 às 12:00
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RESUMO:A biopirataria, não raramente, tem se manifestado no Brasil e no mundo. Desde outrora o homem explora os recursos naturais em busca de suprir suas necessidades, mas que agora não são apenas básicas. Esta apropriação, feita de modo indevido e exacerbado, causa danos incalculáveis a diversidade biológica[1], além de afetar a economia e o próprio ser humano. Sua dimensão é enorme, pois tal atividade ilícita é a terceira mais rentável do planeta, movimentando bilhões de dólares anualmente.[2] Para saná-la, há de se ter uma longa reflexão, especialmente tendo em vista suas consequências em diversos campos. Assim, identificar as causas torna-se um passo primordial, para, posteriormente, poder-se elaborar as possíveis soluções do problema.

Palavras-chave: Biopirataria – Biodiversidade – Exploração indevida

RESUME:Biopiracy, not infrequently, has manifested itself in Brazil and worldwide. Since once the man explores natural resources seeking to customer needs, but now are not just basic. This appropriation, made improper and exaggerated way, generates untold damage to biological heritage, as well as affecting the economy and the human being. Its size is huge, as this illicit activity is the most profitable third of the planet, moving billions of dollars annually. To cure it, one has to have a long reflection, especially in view of its consequences in their various fields. Thus, identifying the causes becomes an essential step to subsequently be able to prepare the solutions of the problem.

Keywords: Biopiracy - Biodiversity - Undue exploitation


1. INTRODUÇÃO

Remontando-se aos primórdios da história da humanidade, nota-se que sempre existiu uma necessidade intrínseca de obter recursos para subsistência oriundos da natureza.[3] Por questões biológicas, o ser humano sempre necessitou de ir em busca dos meios garantidores de sua sobrevivência. De início, água potável, frutas, legumes, peixes e alguns animais eram suficientes. Todavia, tudo é mutável. E, seguindo este raciocínio, as necessidades humanas também mudaram e se tornaram, como se percebe com bastante nitidez nos tempos atuais, mais refinadas.

Em meio ao desenvolvimento tecnológico e as transformações sociais está ocorrendo também o rompimento de determinados paradigmas. Ora, na contemporaneidade, portar um aparelho celular é algo indispensável para alguns indivíduos, quer seja por suas utilidades ou simplesmente por status social, ou qualquer outra razão que possa ser chamada de fútil. E, sob este ponto de vista, Marx é cirúrgico ao designar o desejo de aquisição de alguns objetos por simples adoração como "fetichismo de mercadoria”.[4] A título de exemplo, poder-se-ia imaginar uma situação em que um homem viesse a caçar e depois matar um animal para comer sua carne, e, dessa forma, satisfazer uma necessidade básica do ser humano. Numa perspectiva completamente distinta, pode-se, em especial nos tempos hodiernos, imaginar que esse mesmo homem, no lugar de visar a satisfação de uma necessidade tida como básica, queira, apenas, transformar o couro do em bolsas, sapatos, jaquetas e outros acessórios requintados, comumente usados e cada vez mais requisitados, por gerarem aos seus portadores a sensação bem-estar pela luxúria, pela simples ostentação de tal.

Assim, percebe-se que determinadas ações humanas, mesmo que reconhecidamente tradicionais[5], estimulam a prática da biopirataria. Têm-se observado constantemente o crescimento do mercado consumidor de produtos como os supracitados, além de outros mais.[6] Destarte, não é de estranhar a diminuição ou até mesmo a extinção de espécies animais e vegetais de regiões outrora quase intocáveis pelo capitalismo, a saber, doentio[7], sob esta ótica.

Registre-se que os maiores mercados consumidores dos produtos provenientes da exploração ilegal e em larga escala estão localizados principalmente nos países desenvolvidos, aqueles em que o poder aquisitivo é maior, mas que podem ser considerados mendigos em biodiversidade[8]. Em contrapartida, quem mais sofre com prejuízos causados pela biopirataria são os países em desenvolvimento[9], muito em razão da fragilidade de suas legislações, da falta de comprometimento do governo no âmbito fiscalizatório e da pouca atenção dada pela população no que toca a proteção ambiental como um todo. Desta forma, tem acontecido um fenômeno semelhante ao colonialismo[10], onde países com maior influência político-econômica estão se apropriando, direta ou indiretamente, de regiões ricas em vida animal e vegetal com o intuito de satisfazer suas carências, desrespeitando em muitos casos a soberania de outras nações.[11]

No cenário atual de decadência da biodiversidade e, por conseguinte, da qualidade de vida humana, onde mesmo assim, objetos aparentemente supérfluos ganham destaque, indaga-se: Vale a pena explorar a natureza simplesmente para obter lucros e satisfazer necessidades que não são essenciais à vida?


2. CAUSAS DA BIOPIRATARIA

Ao debruçar-se na temática, pode-se inferir que um problema de tal magnitude possui diversas causas.

Muitos acreditam que a expansão gradativa e notável da biopirataria ocorre em razão das altas cifras que a mesma consegue atingir anualmente, beneficiando os seus praticantes[12] de modo grandioso no quesito econômico. E, de fato, este, indubitavelmente, é um dos fatores mais atraentes, mas não é o único.

Sabe-se que, em locais onde o nível educacional é baixo, as pessoas tendem a cometerem erros contínuos, inclusive delitos, quer seja pelo desconhecimento das normas, quer seja pela inconsciência dos danos que seus atos podem gerar. Vê-se, não raramente, moradores de regiões menos favorecidas buscando na caça de animais ou na pesca, por exemplo, os meios para sua subsistência. Ou até para comercializar ilegalmente, mesmo que na época de reprodução das espécies nativas daquela determinada área. Ademais, destaca-se que o acesso à informação de qualidade é restrito à alguns indivíduos e grupos sociais.[13]

Portanto, não existe paridade no que concerne ao conhecimento do meio ambiente. Assim, apesar da  disposição expressa na Carta Magna, pioneira[14], a saber, o Estado falha na sua função de fornecer com qualidade a educação ambiental[15] e a conscientização pública.[16] Ressalte-se que a população, como detentora do direito de utilizar dos benefícios oriundos da natureza[17], não demonstra interesse em buscar compreender o assunto, ficando, assim, a mercê da iniciativa política.

Outro fator fulcral encontra-se na falta de normas que disciplinem a biopirataria como delito. Pode-se dizer que no Brasil existe quase que uma anomia[18] nesta matéria. Ressalte-se que este não um problema exclusivo da terra tupiniquim, pois como leciona Pancheri:

Biopirataria sob o prisma penal é pouco esquadrinhado, mesmo nos países megadiversos; exemplifica-se com a Costa Rica, cuja ausência de uma lei penal especial faz-se perceber: nada obstante sua avançada legislação acerca de Biodiversidade aponte o sancionamento criminal, a previsão de um tipo penal de combate à Biopirataria inexiste no ordenamento Costa-riquense, podendo apenas a conduta ser inserida em outros tipos penais com bens jurídicos absolutamente distinto. (PANCHERI, 2013. p.38)

Na realidade pátria, existia apenas uma medida provisória que tratava sobre o "Acesso ao Patrimônio Genético” [19], que depois foi revogada por uma lei nova, a saber, a lei 13. 123 de maio de 2015. Todavia, apesar de se ter uma superação do status de medida provisória[20], ainda se percebe que a legislação é frágil, que não possui uma efetividade considerável, tendo em vista a dimensão do patrimônio biológico espoliado constantemente. Por esta razão, surgem as críticas dos estudiosos da temática, que apontam para o problema que reside na falta de uma lei específica que discipline a biopirataria como crime.

O que se vê em terrae brasilis é a aplicação inadequada da Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98), que se mostra cada vez mais incapaz de regular uma matéria tão complexa e de elevada relevância nacional. Carece a matéria, pois, de uma tipificação legal, além de uma aplicação sólida.


3. CONSEQUÊNCIAS DA BIOPIRATARIA

Enxerga-se que o desenvolvimento da biopirataria gera consigo alguns efeitos indesejáveis ao país, à região afetada. Destarte, num plano ambiental, nota-se corriqueiramente que as ações humanas de espoliar a natureza acarretam em prejuízos que, inclusive, afetam o próprio homem. Logo, não é de se estranhar que Hobbes outrora tenha afirmado que “o homem é o lobo do homem”. [21]

Economicamente o país perde o direito de receber os royalties. Os exemplos[22] de tal prática são vários, pois a fiscalização existente é baixa.[23] Assim, boa parte patrimônio genético explorado sai do território nacional sem trazer o mínimo retorno econômico. Todavia, esta não é a maior das perdas, pois lucros não são mais importantes que vidas, mesmo que tais não sejam especificamente humanas.

Afora o prejuízo econômico, há de se registrar a redução da fauna e da flora à níveis bem inferiores aos comumente vistos em tempos passados, existindo até a extinção de espécies nativas. Vê-se ainda que quando alguma espécie é extinta ou diminui consideravelmente as demais que compõem a cadeia alimentar também sofrem as consequências, haja a vista a interdependência entre os seres.[24] Destarte, o ser humano acaba sendo vítima desse comportamento, pois ele depende diretamente de plantas e animais para sua subsistência. Então, percebe-se que os esforços e talentos humanos quando utilizados de modo irresponsável, sem reflexão concorrem diretamente para a depreciação da qualidade de vida individual e coletiva.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A biopirataria tem como causas habituais à falta de educação e de informação das pessoas (proprietárias do patrimônio genético, a saber), a anomia presente no quesito e o amadorismo dos gestores públicos. É pacífico dizer que o lucro que tal atividade ilegal gera se torna o maior atrativo para tal prática. Com isso, sua incidência aumenta gradualmente, ao passo que a biodiversidade diminui, sem ao menos beneficiar a população local, em razão da exploração ilimitada de seus recursos.

Diante deste cenário, observa-se que mudanças são primordiais para atenuar a problemática. Todavia, ratifica-se que modificações devem ser feitas com prudência e sabedoria, sob pena de se agravar o problema, e assim, torná-lo mais difícil de ser combatido.

De imediato, existem algumas alternativas que podem ser empregadas para combater a biopirataria. Pode-se, em primeiro momento, fazer com que o texto constitucional, no tocante ao meio ambiente, tenha efetividade, deixando-o, pois, de ser uma mera "folha de papel".[25] Destarte, existiria educação ambiental[26] em todos os níveis de ensino nas escolas, e ainda, disseminar-se-ia a conscientização pública acerca da temática, visando esclarecer a mente especialmente dos mais jovens com o apoio das famílias e da sociedade civil em geral[27], tendo em vista que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”[28], tal como todos têm o “dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.[29] Thomé da Silva, doutrinador renomado na área de Direito ambiental, nos lembra que:

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A educação ambiental também é fundamental à efetiva participação dos cidadãos no controle do Estado e da iniciativa privada com vistas à preservação do meio ambiente, permitindo o pleno exercício da cidadania ambiental. Tanto é assim que um dos objetivos fundamentais da educação ambiental é "o incentivo à participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como valor inseparável do exercício da cidadania.” (Lei 9.795/99, art. 5°, inc. IV). Omitindo-se o Estado do dever constitucional de prestar educação ambiental, alijar-se-ia a sociedade de pressuposto imprescindível à própria participação comunitária na defesa dos recursos naturais. (SILVA, Thomé da, 2015. p. 85)

Nesse sentido, a força normativa da Constituição, tal como dos dispositivos infraconstitucionais, seria concretizada em prol dos jurisdicionados e com o auxílio destes, haja vista que teriam informações de qualidade sobre a temática, de tal sorte que poderiam, além de não praticar o crime, proliferar o conhecimento adquirido e denunciar os praticantes.

Em seguida, na esfera do poder público especificamente, poder-se-ia antecipar-se ao biopiratas[30], pois como menciona o item IV do anexo ao Decreto 4.339/02, “é vital prever, prevenir e combater na origem as causas da sensível redução ou perda da diversidade biológica”, ou seja, gerando, patenteando e comercializando os bioprodutos antes dos estrangeiros, de tal sorte que ter-se-ia o controle dos recursos, além de obter-se lucros sobre tais operações. Para se atingir tal objetivo, há de se aumentar e de se qualificar consideravelmente a fiscalização, tanto no quesito humano (elevando-se e qualificando-se o efetivo responsável por monitorar as regiões mais afetadas, como a região Amazônica), quanto na parte tecnológica, disponibilizando-se, pois, os dispositivos mais capazes de auxiliar as atividades fiscalizatórias dos órgãos incumbidos para tal, como a Polícia Federal e o Instituto Nacional do Meio Ambiente (IBAMA).

Finalmente, a título de punição, pode-se, pela via legislativa, elaborar uma legislação penal mais rígida, que tipifique especificamente tal matéria[31], haja vista que o Texto Maior traz diretrizes gerais de proteção ao meio ambiente, carecendo, pois, de uma regulamentação própria acerca da biopirataria. Por esta razão, De Alencar ratifica que:

não existe na Constituição Federal Brasileira um dispositivo que proteja especificamente a biodiversidade e que coíba a biopirataria. O texto legal é vago ao tratar sobre o tema, dando ensejo a várias interpretações, por este motivo pode-se afirmar que a Carta Magna apenas indica o que deve ser feito pelo Estado, no entanto a responsabilidade de regulamentar o assunto depende da legislação infraconstitucional. (Grifo meu)

Nesse diapasão, o Poder Judiciário teria um amparo legal para fundamentar suas decisões, objetivando-se reprimir com veemência, de acordo com a lei, aqueles que praticarem a biopirataria, haja vista, mais uma vez, que se aplica hodiernamente, de modo ineficaz, a Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98). Ressalte-se que quando punições fortes são aplicadas com inteligência a probabilidade de recuperação do infrator torna-se maior. Ademais, serve de exemplo para as outras pessoas.

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