A justiça restaurativa como alternativa à justiça retributiva

05/05/2019 às 17:02
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Neste artigo, propõe-se evidenciar, por meios de dados comprobatórios e coesos, que se utilizando da justiça retributiva o sistema penal jamais obterá efeitos positivos quando comparados aos recursos empregados para os fins desejados.

Introdução

O direito penal, de acordo com a maioria da doutrina brasileira, avoca para si anseios institucionalizados no seio da sociedade – visando, sobretudo, à produção de justiça -, sendo a parte do ordenamento jurídico que define as infrações penais (crime e contravenções penais) e impõe uma respectiva pena proporcional ao agravo, além de estabelecer princípios e regras os quais regulam a atividade jurisdicional do Estado, na tentativa de inibir arbítrios a determinadas pessoas ou instituições. Porém, tendo em vista os diversos tipos de governabilidade, como o “Estado” autoritário dos povos antigos e o Estado Liberal do século XX, por exemplo, os limites do direito criminal são flexíveis, não representando critérios e conceitos determinados de forma atemporal. Nesse sentido, com a regulação dos crimes por parte do Estado, surge o procedimento pelo qual será regido o processo de julgamento, condenação e afins. Um desses procedimentos, que se manifesta de maneira hegemônica, é a denominada justiça retributiva, a qual, quando manejada de maneira exclusiva, não fornece os elementos necessários para a produção de uma atividade-fim do Direito, que é a realização concreta de justiça. Portanto, no presente exposto, será apresentada uma visão discordante, baseada em procedimentos restaurativos, e não mais em formas retributivas, a fim de esclarecer as falhas existentes no sistema penal e possíveis maneiras de aperfeiçoar o serviço jurisdicional que é aplicado pelo Estado brasileiro.

A importância desse trabalho encontra-se, precipuamente, na esperança de disseminar ideais contra-hegemônicos acerca da justiça. Em sociedades perfeitas, nas quais todos os impasses fossem solucionados por meio de vias axiológicas, baseados nos valores de amor, caridade e igualdade, por exemplo, não seria necessária a existência de justiça, haja visto que os próprios indivíduos resolveriam os problemas. No entanto, sabe-se que esse ideal de sociedade é utópico, porquanto sempre existirá uma “terceira figura”, que é o Poder Judiciário, para estabelecer alguma solução que, em tese, produza justiça entre as partes. Então, quando as pessoas não acordam sobre um respectivo interesse conflituoso, como a pensão alimentícia ou a reparação de danos, a título de exemplo, surge a possibilidade de repassar esse embate para um conjunto de indivíduos que, embora não conheçam os autores da ação, terão acesso à realidade fática daqueles, o que pode gerar implicações negativas, pois o Direito não se materializa em alegações, e sim em provas, mas como saber se os “indícios de materialidade” correspondem, realmente, aos fatos reais? Como o magistrado pode julgar algo atípico aos seus olhos? Então, nota-se que quando terceiros decidem o que é certo e o que é errado transfere-se a esses o poder de definir circunstâncias de outrem, definições estas que podem não ser efetivas e tampouco justas. Destarte, essa temática torna-se relevante porque a análise dos fatos, em busca de produzir justiça incessantemente, é realizada por um sistema incapaz, ideológico e que, por vezes, cria uma “guerra jurídica” entre os próprios operadores do Direito, sobretudo quando se faz incumbido de dogmatismos provenientes do século XIX, com o surgimento, na França, da Escola da Exegese.

A estrutura deste trabalho será apresentada de forma gradativa, indo dos pontos iniciais, como conceitos, às questões mais inerentes ao sistema penal brasileiro. Dessa maneira, discorrer-se-á, inicialmente, sobre o que é um crime, como se dá a sua caracterização, seus desdobramentos, tipos de ilícito e as possíveis consequências, englobando todos os meios puníveis possíveis, inclusive formas de punição esquecidas pelos aplicadores da lei. Depois, sabendo da parte conceitual, o objeto de discussão passará a ser o sistema retributivo, demonstrando por meio de dados e exemplos o quão falho uma “retribuição” simples pode ser. Esse sistema, conquanto não obtenha os resultados esperados, é o mais utilizado por parte dos juristas, fazendo surgir uma espécie de “fetichismo criminal”. Por fim, apresentado como uma alternativa, virá o notório sistema restaurativo, também, munido de amplas exemplificações, características e, sobretudo, dados que ratifiquem a superioridade da ideia restaurativa no que concerne aos resultados almejados pela maioria da população brasileira.

1. Crime

Neste ponto, reside um fato demasiadamente importante que é ter conhecimento se tal ação ou omissão constitui algum delito previamente determinado pelo Direito Positivo. Ao longo dos anos, criaram-se várias teorias criminais, como, por exemplo, a naturalista[1], a finalista[2] e a social da ação[3], porém foram tornando-se obsoletas à medida que surgiam novas demandas sociais. Hoje, de forma geral, os países, inclusive o Brasil, são adeptos à teoria do crime. Esta, diz que o crime, para ser caracterizado, necessita ser típico, ilícito e culpável. Então, diante de uma situação complexa, o juiz, nos processos judiciais, e os administradores, nos processos administrativos, devem observar atentamente as condições de determinada ação delituosa. Na existência da tipicidade, ilicitude e culpabilidade, pode-se afirmar que há o crime. Posto isso, é muito significativo o entendimento de tais requisitos, logo, far-se-á uma breve análise.

1.1 Fato típico

Resumidamente, fato típico nada mais é do que um fato descrito penalmente, isto é, materializa-se em um resultado reprovável pela legislação penal. Analisando de forma ampla, percebe-se a presença de termos que são assimilados pelo fato típico, são eles: conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade. Consoante Érico de Almeida Duarte (2002), conduta é “a manifestação humana sobre determinado bem” (p. 16). Desse modo, entende-se tal conceito como uma força intercorporal, qualificando-se pela vontade, finalidade e atuação, que, na concepção positivista, seria a manifestação da vontade, seja por meio de uma ação ou omissão. Por sua vez, o resultado é a consequência, direta ou indiretamente, provocada pela ação do agente. No que concerne ao nexo de causalidade, compreende-se, justamente, a relação de causa e efeito, isto é, o vínculo criado entre a conduta praticada pelo sujeito ativo e o consequente resultado. Por fim, tem-se a tipicidade como uma garantia individual, sendo que o sujeito será punido, apenas, se o delito estiver previamente descrito na lei. Nesse sentido, o código penal, no seu artigo 1°, diz que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Partindo dessa ideia, o transgressor, exclusivamente, só poderá ser punido se houver uma lei que explicite a tipicidade da conduta, sendo que tal lei deve ser anterior ao fato concreto. Portanto, de forma breve, conclui-se a explanação acerca dos conceitos e definições imprescindíveis para configurar o fato típico.

1.2 Antijuridicidade

Após realizada a primeira análise, com sucesso, deve-se estudar o caso concreto sob a égide da ilicitude, pois, se for lícito, não há necessidade da investigação em virtude da inexistência do crime. Doutrinariamente, pode-se afirmar que a ilicitude “é mais que a singela contrariedade da conduta com o direito; significa a contrariedade da conduta com todo o ordenamento jurídico, causando lesão a um bem jurídico tutelado.” (NUCCI, 2017, p. 523). Entretanto, às vezes, ocorrem situações as quais, geralmente, são ilícitas, porém, por tratarem-se de exceção à regra, recebem o status de lícitas, visto que o ato foi embasado na excludente de ilicitude. Estas exceções, as excludentes, foram acrescentadas ao Código Penal em 1984, com o início da vigência da lei n° 7.209, normatizando quatro causas de exclusão: o estado de necessidade[4]; a legítima defesa[5]; o estrito cumprimento do dever legal[6] e o exercício regular do direito[7].

1.3 Culpabilidade

A definição desse termo sofreu alterações constantemente, ao longo do tempo, devido a diversas escolas existentes, como já foi posto acima. Sabe-se que culpabilidade é uma das características definidora de um crime, acolhendo a motivação subjetiva. Em outras palavras, observa-se que:

Culpabilidade é o juízo de censura, o juízo de reprovabilidade que incide sobre a formação e a exteriorização da vontade do responsável por um fato típico e ilícito, com o propósito de aferir a necessidade de imposição de pena [...] para os adeptos do finalismo bipartido, contudo, a culpabilidade funciona como pressuposto de aplicação da pena, e não como elemento do crime. (MASSON, 2017, p. 496)

Além disso, hodiernamente estuda-se culpabilidade pela intercomunicação entre o dolo e a culpa, sendo que o dolo exala a intenção consciente, portanto, é um fator subjetivo, enquanto a culpa emana a inexistência da vontade do sujeito ativo em praticar determinado delito. Outrossim, a culpabilidade também possui certos elementos, como a imputabilidade, por exemplo. De acordo com Érico de Almeida (2002), “temos a imputabilidade como a capacidade de entender a ilicitude do fato, juntamente com a capacidade de se manter de acordo com ele.” (p. 111). Contudo, assim como ocorre com a ilicitude, também existem as excludentes de culpabilidade, as quais extinguem a culpa, denominando o indivíduo infrator como inimputável. Tais exceções estão especificadas no Código Penal, são elas: agente possuidor de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado[8]; os menores de dezoito anos[9] e embriaguez completa derivada de caso fortuito ou força maior[10]. Além disso, pode ocorrer situações mais isoladas de excludentes ou dirimentes, como a ausência da potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta adversa, contudo, para os fins deste artigo, não é necessário o devido aprofundamento doutrinário.

2. Tipos de penas aplicadas no Brasil

É verdade que desde os tempos mais remotos existiram sistemas punitivos, a fim de buscar, precipuamente, a possibilidade de convívio entre os homens, todavia, antes de chegarmos ao estágio de privação da liberdade, que é a punição mais aplicada atualmente, houve um avanço cronológico e não-linear. Antigamente, por exemplo, usavam-se técnicas de encarceramento rígido e, de forma mais comum, havia a escravização daqueles que delinquiam ou tinham débitos a pagar. No entanto, há quem diga que o Brasil nunca avançou, em políticas prisionais, desde a Idade Média. Nos dizeres do Ministro Dias Toffoli, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, em entrevista dada em Brasília, nós:

Devemos odiar o pecado, mas não devemos odiar o pecador. Nós temos que sancionar aquele que cometeu o ilícito, mas não odiá-lo. Não vilipendiar aquela dignidade que ele possui [...] o grande papel do sistema de Justiça brasileiro deve ser contribuir para a resolução dos conflitos existentes no país – do menor ao maior deles – de forma eficiente, coerente, previsível e transparente. Uma sociedade em que os conflitos se eternizam e permanecem sem solução tem mais dificuldade para progredir. (TOFFOLI, 2018)

Nesse sentido, percebe-se, assim como em qualquer país, que no Brasil as punições foram legalizadas no sentido de evitar o ambiente caótico, na medida em que isolava o infrator (doente) da sociedade (saudável), reabilitando-o, ao menos em teoria, para ser reintegrado à sociedade.

Outrora, o Código Penal não dispunha, amplamente, acerca de penas alternativas, sobretudo pelo fato de o citado código ser proveniente de 1940, época na qual as concepções conservadoras eram mais difundidas. Contudo, ao longo dos anos, as tentativas de redemocratização do Brasil juntamente com pautas mais progressistas, ou liberais no aspecto político-social, fizeram com que os legisladores observassem, paulatinamente, de forma crítica o sistema prisional, buscando uma solução para os problemas, como a superlotação dos presídios, por exemplo. Nessa perspectiva, foi criada a Lei das penas alternativas (lei n° 9714/98), a qual é responsável por regular a aplicação alternativa aos transgressores.

O Código Penal, em seu artigo 32, assevera que as penas são divididas em três grupos: privativas de liberdade; restritivas de direito e de multa. A lei citada acima regulamenta o segundo grupo, acrescentando novas maneiras de punir, para que haja uma relação mais integrada do infrator ao círculo social, sem, necessariamente, excluí-lo da ordem social. No artigo 43 do respectivo código, são elencadas diversas formas punitivas, tais como: prestação pecuniária, perda de bens e valores, limitação de fim de semana, prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas e interdição temporária de direitos. De acordo com o professor e jurista Luiz Flávio Gomes (1999, p. 96), as consequências mais perceptíveis derivadas da aplicação de penas alternativas são a diminuição da superlotação dos presídios, a redução dos custos do sistema penitenciário, a regressão da reincidência e a preservação dos interesses da vítima.

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Entretanto, no Brasil, existem pré-requisitos para que o agente possa ser beneficiado com a aplicação da pena alternativa. Para tal, consoante o Código Penal, a pena restritiva de direito substitui a privativa de liberdade, quando, respectivamente, o agente ativo tenha recebido uma pena privativa não superior a quatro anos, além do crime não ter sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa[11]; se o réu não for reincidente em crime doloso[12] e quando as antecedentes criminais, a culpabilidade, a conduta social e a personalidade do agente indicarem que tal substituição seja eficiente[13].  

Portanto, com essa exposição, nota-se que fórmulas punitivas existem em grande extensão, legalizadas pelo citado código e corroboradas pelo ordenamento jurídico, porém são usadas em pouquíssimos casos, situações raras, em virtude da não aplicação por parte dos magistrados. Isso ocorre porque, infelizmente, a formação dos juristas é caracterizada, em regra, pelo dogmatismo, alienando o próprio direito, como afirma Edith Maria Barbosa Ramos (2003), ao dizer que “o direito vinculado apenas à concepção dogmática tem falhado nos seus objetivos fundamentais, quais sejam, a justiça e segurança sociais (p. 2).

3. Sistema retributivo

Conforme o pensamento teórico dos últimos anos, existem dois modos de concretizar a punição ao agente infrator: a justiça retributiva e a restaurativa. No entanto, a justiça criminal não é descentralizada politicamente, pois, se o fosse, haveria a legitimação, ao menos tácita, da “justiça com as próprias mãos”. Nesse sentido, o Estado avoca para si a criação do ordenamento jurídico, regulando seu desenvolvimento e aplicação. Assim, quando há a infração, surge, para o Estado, o poder-dever de punir (jus puniendi), isto é, de sancionar determinado indivíduo. No Brasil, desde o início da vigência do Código Penal, em 1940, é visível a preferência, por parte dos magistrados, pela aplicação de penas retributivas, por isso, a pena privativa de liberdade obteve proeminência jurídica na retaliação aos crimes praticados. Consequentemente, quando o Estado brasileiro segue nessa direção, cria o seu próprio paradoxo, visto que na tentativa de reprimir uma atitude má, utiliza-se, em regra, de uma pena totalmente repressiva, favorecendo a superlotação dos presídios, o que representa, hoje, um gigantesco problema de gerência e fiscalização.

Dito isso, observa-se que a justiça retributiva analisa o crime como uma violação, exclusivamente, da lei, retirando o conteúdo humano, ou seja, as condições intersubjetivas presentes entre o transgressor, a vítima e a sociedade. Então, logicamente, a forma mais contundente para que a resolução conflituosa seja cessada é uma retribuição fria, estabelecida pela letra da lei, como já prelecionava a Escola da Exegese. Como se sabe, a restrição da liberdade foi a pena mais imposta desde séculos atrás, assim, é possível elencar diversas características da justiça retributiva, as quais foram amealhadas ao longo do tempo em um processo assimilativo. São elas: a infração é definida como um atendado ao Estado. Isso ocorre porque a concepção desse modelo de justiça é vinculada ao poder estatal, dentro de um ideal monista, no qual o único direito válido é aquele positivado. Portanto, o Estado retribui uma punição para demonstrar sua força de mando e reprimir futuras ações semelhantes; o núcleo é a vontade de estabelecer a culpabilidade, ou seja, é voltar-se para o passado, no exato momento em que ocorreu o crime, identificar o vínculo de ligação e punir o agente, de forma simplista; em regra, um sofrimento é imposto como maneira de punir e de prevenir novos atos ilícitos. Nessa lógica, o principal ator é a penitenciária, pois é um local completamente execrável, inexistindo o mínimo de dignidade humana. Destarte, o ideal é usar o medo e a sensação de impotência contra aqueles que afrontam a ordem estatal; o crime é definido, puramente, em termos jurídicos, isto é, desconsidera-se todos os fundamentos de ordem moral, social, religiosa, econômica, dentre outras esferas, as quais moldam certas atitudes que não deveriam ser alicerçadas, exclusivamente, nos brocardos jurídicos; por consequência da primeira característica, o Estado toma para si a ofensa. Em outras palavras, é o Estado quem vai travar uma batalha judicial para que o delinquente seja encarcerado e, consequentemente, as leis validadas, fazendo com que a imagem da verdadeira vítima seja deslocada e minimizada.

Pode-se dizer que esses aspectos são os mais importantes no que concerne à justiça retributiva, embasando-a no decorrer do tempo e modificando as concepções punitivas estatais em todo o mundo. Modernamente, vários países, dentre eles o Brasil, sofrem com a principal consequência do encarceramento em massa: a superlotação dos presídios. Isto, de certa forma, representa uma volta ao “ancien régime”, no qual os cidadãos não gozavam de direitos fundamentais, tampouco de proteções legais, sendo o Estado arbitrário nas suas ações e, de forma centralizadora, evade-se de punições. Hoje, é visivelmente perceptível esse cenário nas cadeias brasileiras, com espaços infinitamente inferiores ao necessário, que não oferecem aos presidiários o mínimo de condições para a sua sobrevivência. Nesse sentido, vê-se que o Estado desrespeita o que ele mesmo propõe, pois, de acordo com a Lei de Execução Penal (lei n° 7.210/84), no seu artigo 10, prevê que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Acrescenta-se a isso o artigo 11, o qual normatiza que tal assistência será: material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Claramente, há uma incongruência por parte do Estado brasileiro e, a fim de enfatizar tal posição, basta cientificar o artigo 12 da citada lei, o qual afirma que “a assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”. Isto, com certeza, não é aplicado nos presídios. De acordo com o mapa nacional elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em todo o Brasil existem 417.283 mil vagas ocupadas por 693.899 mil presos, ou seja, um déficit de 276.616 vagas. Em Sergipe, especialmente, tem 3.375 vagas utilizadas por 5.587 presos, isto é, um déficit de 2.212 vagas. Dessa forma, evidencia-se que o Estado não tem condição de cumprir o que foi designado na Lei de Execução Penal, transparecendo a total ineficácia estatal quanto à manutenção do sistema prisional, bem como à repressão e prevenção do crime.

4. Justiça restaurativa  

Em meio as derivações negativas como consequência do uso substancial da justiça retributiva, como o alto índice de criminalidade e violência, nasce uma nova forma de solucionar os conflitos de interesse: a justiça restaurativa. Esse entendimento é reforçado por Renato Gomes, ao dizer que:

É preciso avançar para um sistema flexível de justiça criminal, com condutas adequadas à variedade de transgressões e de sujeitos envolvidos, num salto de qualidade, convertendo um sistema monolítico, de uma só porta, para um sistema multiportas que ofereça respostas diferentes e mais adequadas à criminalidade. É chegada a hora de pensarmos não apenas em fazer do Direito Penal algo melhor, mas algo melhor do que o Direito Penal, como pedia Radbruch. E nos perguntamos se a justiça restaurativa não seria uma dessas portas, com abertura para uma resposta adequada a um considerável número de delitos (GOMES, 2005, p. 19)

É lógico-dedutivo que, hoje, a justiça restaurativa apresenta-se como uma formalização consensual, ou seja, um diálogo, no qual o agente ativo do crime e o agente passivo serão tratados como pontos principais, reduzindo parcialmente o poder estatal e aumentando a interação dos indivíduos em busca de resoluções alternativas para tal prática delituosa, visando, também, à incontinuidade dessas ações. Então, a partir dessa nova visão, o crime não é mais entendido como uma afronta ao Estado, mas, sim, como um dano às relações interpessoais. Nessa perspectiva, a atitude delituosa é um tipo de conflito, e o método restaurativo não permite que o Estado pegue para si a titularidade do embate, possibilitando a criação, por parte da vítima e do agressor, de formas diretivas-atributivas, isto é, aqueles irão desenvolver, diretamente, métodos na tentativa de aprimorar e solucionar determinada lide, com foco na reparação do mal-estar causado em virtude do crime. De outro modo, para a justiça restaurativa não se trata o crime como uma conduta, notadamente, típica, ilícita e culpável, mas, sobretudo, como uma ação violadora de relações existentes entre a sociedade. Além disso, é importante salientar que essa nova maneira de lidar com os crimes já é proposta em vários países, inclusive foi normatizada nos códigos jurídicos da Colômbia[14] e da Nova Zelândia[15]. Assim como a justiça retributiva, a restaurativa também possui certas características. São elas: como já foi mencionado, dá primazia aos interesses das pessoas envolvidas, evitando que o Estado atue como se fosse a vítima; uso crítico do direito, ou seja, é pensar de forma mais abrangente, visto que a concepção simbólica do direito penal não é suficiente para conter o avanço criminal na sociedade brasileira; a justiça se define em função das boas relações e é julgada com foco nos resultados, isto é, mediante, por exemplo, acordos satisfatórios para ambas as partes, consequentemente, o diálogo e a negociação manifestam-se como a norma jurídica.

Um dos principais instrumentos utilizados na justiça restaurativa é a mediação penal. Esta, consiste em uma forma de resolver o embate jurídico por meio da participação direta das partes atingidas, além de ter um terceiro indivíduo, independente, que é o mediador, o qual não precisa, necessariamente, ter formação jurídica. Nesse contexto, nota-se que o mediador exerce a função que o juiz outrora exerceria. Além disso, a justiça restaurativa pode ser usada em vários tipos de crime, inclusive aqueles considerados mais graves, porque são os que mais geram resultados perceptíveis. Felizmente, no Brasil, o poder judiciário tem esforçado-se para estimular o uso de medidas alternativas. O Conselho Nacional de Justiça, em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por meio da resolução 125/10, busca suscitar soluções extrajudiciais para os conflitos. A justiça restaurativa já é adotada, fielmente, por 15 estados brasileiros, sendo São Paulo, Rio Grande do Sul e o Distrito Federal os pioneiros nessa prática. Aliás, no próprio site do CNJ é evidenciado um caso que foi objeto da justiça restaurativa, obtendo êxito. Esse acontecimento, que ocorreu no Distrito Federal, adveio porque:

dois vizinhos que brigavam em relação aos limites da terra ajuizaram um processo que foi resolvido na vara cível, confirmado no tribunal, mas depois continuaram a brigar pelos limites das águas de uma mina. Aquele conflito terminou desenvolvendo para a morte de alguns animais de uma das chácaras, feita supostamente por um dos vizinhos, além de ameaças, e decidimos encaminhá-lo para a Justiça Restaurativa. A solução foi muito interessante. A equipe entendeu por chamar para participar a Agência Nacional de Águas (ANA) e a ONG ambiental WWF, que trouxe como sugestão um programa chamado apadrinhamento de minas. Então aqueles dois confrontantes terminaram fazendo um acordo de proteção pela mina e ficaram plenamente satisfeitos com a solução. Tratava-se de um conflito que já estava na Justiça há mais de dez anos e que, embora com a solução já transitada em julgado, as coisas estavam se encaminhando para um desfecho trágico. Ou seja, a Justiça tradicional resolveu apenas um espectro do problema, o jurídico, mas as demais questões em aberto continuaram se acumulando, até que foi feito esse acordo criativo pelo Programa Justiça Restaurativa do TJDFT (CARVALHO, 2014).

Outrossim, Antônio Dantas de Oliveira, juiz da 2° Vara Criminal e Execuções Penais da comarca de Araguarina (TO), disse que:

No nosso estado a Justiça Restaurativa está sendo iniciada, vai começar inclusive por Araguarina, já fizemos algumas reuniões em parceria com a universidade. Esse curso veio acrescentar e apresentar mais o nosso entusiasmo. Toda semana eu me desloco, em parceria com o Ministério Público, Defensoria Pública e OAB, até à unidade prisional e fazemos audiências de pronto, resolvendo a situação. Em um mês realizamos 102 audiências (DAMASCENO, 2017).

Enfim, além desses, existem diversos outros depoimentos corroborando a eficácia da justiça restaurativa. Sendo assim, é possível concluir que ela pode concretizar-se, indubitavelmente, como uma alternativa à justiça retributiva. Por fim, é evidente que, em muitos casos, as medidas alternativas alcançam maiores feitos do que determinadas sanções judiciais, todavia vale frisar que a justiça restaurativa não é a solução para todos os problemas, mas, certamente, uma real adequação entre as duas formas existentes, a fim de futuramente termos um sistema prisional capaz de fornecer condições dignas para os presidiários e que eles, realmente, possam adquirir conhecimentos ao longo da sua estadia, se for o caso, para viver novamente em sociedade, pois os homens são seres sociáveis por natureza e, logicamente, necessitam de um meio para progredir conjuntamente, colaborando para o desenvolvimento do grupo social.


[1] Parte do ideal de que existe uma relação intrínseca entre a conduta criminosa do agente ativo (criminoso) e o resultado ilícito, ou seja, estuda o delito como atividade humana. Em outras palavras, a conduta seria uma causalidade natural. Considera-se o alemão Hans Welzel como o criador e, consequentemente, maior expoente da teoria naturalista ou causalista da ação.

[2] Para essa teoria, o crime é um fato típico e antijurídico, mas a culpabilidade seria apenas um mero pressuposto para a aplicação penal. De outro modo, a conduta é um elemento direcionado, diretamente, à finalidade.

[3] De acordo com o pensamento dessa teoria, o comportamento deveria ser, antes de tudo, valorado conforme os padrões sociais, isto é, continua sendo causal, mas, agora, imbuída de outro elemento, que é o valor.

[4] Art. 23; I; 24.

[5] Art. 23; II; 25.

[6] Art. 23; III, 1° parte.

[7] Art. 23; III, 2° parte.

[8] Art. 26.

[9] Art. 27.

[10] Art. 28; § 1°.

[11] Art. 44, I.

[12] Art. 44, II.

[13] Art. 44, III.

[14] Art. 250 da Constituição e art. 528 do Código de Processo Penal colombianos.

[15] Introduzida na legislação infanto-juvenil.

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