O tiro saiu pela culatra: novo decreto abranda repressão a crimes do Estatuto do Desarmamento

10/05/2019 às 02:10
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Analisam-se os efeitos do novo Decreto nº 9.785/2019, a versar o tema das armas de fogo, o qual confere tratamento penal mais benéfico a delitos do Estatuto do Desarmamento e, por conseguinte, deve ser aplicado retroativamente.

Ante as alterações trazidas pelo Decreto nº 9.785/2019, é preciso lançar luzes sobre seus reflexos imediatos, não quanto à política de (des)armamento, ao flexibilizar as normas atinentes às armas de fogo, mas no tocante às repercussões em relação aos crimes dos arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento. Houve abrandamento no tratamento penal, ainda que não fosse o objetivo do regulamento.

A teoria da norma penal categoriza-a em norma penal incriminadora ou em sentido estrito e não incriminadora ou em sentido lato[1].

No que interessa à presente reflexão, a norma penal incriminadora, que é aquela que define um crime e impõe uma sanção, possui preceito primário e preceito secundário.

No preceito primário, está a conduta vedada pelo ordenamento jurídico. No preceito secundário, está a sanção penal, que será atribuída ao infrator.

Normalmente as normas penais incriminadoras, por força do princípio da taxatividade, são completas, contendo, por si mesmas, uma definição exata de todo o conteúdo da proibição que exprimem. Não obstante e sem ofender os princípios da legalidade estrita e da taxatividade, existem normas penais incriminadoras em que a exata compreensão dos elementos do fato descrito deve ser buscada em outras disposições legais ou regulamentares.

Nesse contexto, surge a norma penal em branco ou primariamente remetida[2]. Essa espécie deve ser entendida como aquela em que o preceito primário é incompleto e se subdivide em homogênea ou em sentido amplo e em heterogênea ou em sentido estrito.

A homogênea é aquela cujo complemento advém da mesma instância legislativa da norma penal, da mesma fonte formal. Como exemplo, tem-se o art. 237 do CP (v. art. 1521 do CCb).

A heterogênea é aquela cujo complemento advém de instância legislativa diversa da norma penal. O clássico exemplo é a Lei nº 11.343/2006, que não define o que é droga. A definição é encontrada em Portaria da ANVISA que traz as substâncias assim consideradas.

O mesmo se dá com os arts. 12, 14 e 16 da Lei nº 10.826/2003, afetados pelo Decreto Presidencial. Trata-se também de normas penais em branco, porquanto se deve recorrer ao regulamento da lei para que seja possível obter o conceito de arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido, restrito ou proibido.

Para que se possa compreender de forma mais clara o que se expõe, imaginemos que uma pessoa seja presa em flagrante por posse ou porte ilegal de arma de fogo, trazendo consigo uma .40. Nesse caso, a capitulação da conduta – se enquadrada nos arts. 12 ou 14, mais brandos e com pena de 1 a 3 anos de detenção ou de 2 a 4 anos de reclusão, respectivamente, ou no art. 16 do Estatuto do Desarmamento, mais grave e com pena de 3 a 6 anos de reclusão – perpassa exatamente pela análise do que o ato infralegal considera como de uso permitido, restrito ou proibido. Apenas após esse cotejo é que se pode concluir se se trata dos crimes dos arts. 12, 14 ou 16 da Lei nº 10.826/2003 e, portanto, obter a correta tipificação criminal do fato delituoso.

Nessa linha intelectiva, o Decreto nº 9.785/2019[3], em seu art. 2º, inciso I, estabelece que são armas de fogo de uso permitido as semiautomáticas ou de repetição que sejam: a) de porte que, com a utilização de munição comum, não atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a mil e duzentas líbras-pé e mil seiscentos e vinte joules; b) portátil de alma lisa; ou e c) portátil de alma raiada que, com a utilização de munição comum, não atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a mil e duzentas líbras-pé e mil seiscentos e vinte joules.

De outro vértice, o art. 2º, inciso II, do mesmo diploma regulamentar classifica como arma de fogo de uso restrito as automáticas, semiautomáticas ou de repetição que sejam: a) não portáteis; b) de porte que, com a utilização de munição comum, atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a mil e duzentas líbras-pé e mil seiscentos e vinte joules; ou c) portátil de alma raiada que, com a utilização de munição comum, atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a mil e duzentas líbras-pé e mil seiscentos e vinte joules.

Com a alteração[4], que torna de uso permitido armas que anteriormente eram consideradas de uso restrito, as condutas delitivas praticadas com as armas agora classificadas como permitidas (.40, .45 e 9mm, por exemplo) devem receber a consequente redução da pena, diante da nova tipificação (amoldando-se não mais ao art. 16, mas aos arts. 12 ou 14 da Lei nº 10.826/2003, conforme o caso), em razão da alteração da política de desarmamento e por se tratar de novatio legis in mellius, que retroage para beneficiar o agente (art.  5º, inciso XL, da Constituição da República e art. 2º, parágrafo único, do Código Penal).

Da mesma forma, os juízos de censura realizados em outros crimes, não previstos no Estatuto, e que tenham justificado o afastamento da pena do mínimo legal tanto na primeira, como na terceira etapa da dosimetria – como no caso do roubo majorado, por exemplo – sob o argumento de que a arma de fogo seria de uso restrito, igualmente merecem ser revistos, mesmo após o trânsito em julgado, pelo juízo da execução (art. 66, inciso I, da LEP e Súmula STF, verbete nº 611), ou serem objeto de desclassificação pelos juízos da condenação ou destinatários dos recursos – caso ainda não acobertada a decisão pelo manto da coisa julgada – em atenção à retroatividade da lei penal mais benéfica.

Ainda como reflexo imediato da alteração do complemento regulamentar do Estatuto, afasta-se o caráter hediondo dessas condutas, antes tipificadas no art. 16 do Estatuto do Desarmamento, pecha imposta pela Lei nº 13.497/2017, que alterou a Lei nº 8.072/1990, para dispor que o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito ou proibido passa a ostentar essa insígnia. Tratando-se agora de arma de fogo de uso permitido, por conta da nova definição, inexiste hediondez a justificar tratamento penal diferenciado e mais rigoroso.

A seguir, vê-se uma síntese comparativa entre o regime jurídico-penal conferido ao porte e à posse de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei nº 10.826/2003), tidos como hediondos, e ao porte e à posse de arma de fogo de uso permitido (arts. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003), crimes comuns nos quais passaram a se amoldar diversas condutas, após a edição do Decreto que, como visto, ampliou a definição de arma de fogo de uso permitido:

CRIME HEDIONDO OU EQUIPARADO

(art. 16 da Lei nº 10.826/2003)

CRIME COMUM

(arts. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003)

Não admite fiança

Em regra, admite fiança[5].

Não admite a concessão de anistia, graça e indulto

Admite a concessão de anistia, graça e indulto

Para a concessão de livramento condicional, o condenado não pode ser reincidente específico em crimes hediondos ou equiparados e deve cumprir mais de 2/3 da pena.

Para a concessão de livramento condicional, o apenado deve cumprir 1/3 da pena, se reincidente em crime doloso, ou 1/2, se não reincidente em crime doloso.

Para a progressão de regime, o condenado deve cumprir 2/5 da pena, se for primário, e 3/5, se for reincidente.

Para a progressão de regime, o condenado deve cumprir 1/6 da pena, mesmo que reincidente.

 

Promoveu-se, inegavelmente, mesmo que talvez não fosse o objetivo precípuo, o abrandamento da repressão aos crimes do Estatuto do Desarmamento, entre outros, com repercussão em um sem-número de processos judiciais envolvendo a temática. O tiro saiu pela culatra!

Por derradeiro, ante o divulgado no noticiário recente, ressalte-se que mesmo a ulterior revogação do Decreto não suplantará os efeitos benéficos retroativos já produzidos, alterando-se apenas o quadro a partir de eventual nova modificação. Em outros termos, todas as condutas anteriores e as praticadas até a revogação estarão sujeitas ao regime mais favorável surgido com a regulamentação em vigor.

Igualmente, eventual procedência do pedido formulado na ADPF nº 581, sob a relatoria da ministra Rosa Weber também não terá o condão de obstar os efeitos retroativos já operados por mais de uma razão. A uma, porquanto o pedido formulado não hostiliza a modificação das definições de arma de fogo de uso permitido, restrito e proibido. A duas, porque o próprio Estatuto do Desarmamento remete ao domínio infralegal essa disciplina, inexistindo inconstitucionalidade nesse particular, ainda que se cogite da incompatibilidade com a Constituição da República em outros aspectos.

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Portanto, conquanto se defira medida cautelar ou, ao final, se acolha o pedido formulado no controle abstrato, não se pode apequenar a garantia individual prevista no art. 5º, inciso XL, da Lei Maior, preservando-se os efeitos favoráveis aos acusados e condenados.

Pelo mesmo argumento, nem mesmo o Decreto Legistativo de que se cogita no Congresso (art. 48, V, da CF) pode pretender sustar tais efeitos, ausente o extravasamento do poder regulamentar nesse específico ponto.

 


[1] Subdivididas em normas penais explicativas e normas penais permissivas.

[2] Há também a norma imperfeita ou incompleta ou secundariamente remetida.

[3] O Decreto nº 9.493/2018, com a redação dada pelo Decreto nº 9.720/2019, revogou o Decreto nº 3.665/2000, que dava nova redação ao Regulamento para Fiscalização de Produtos Controlados (R-105),  revia, em seu artigo 16, §2º, um extenso rol de produtos de uso restrito: “§ 2º São considerados produtos de uso restrito: I - as armas de fogo: a) de dotação das Forças Armadas de emprego finalístico, exceto aquelas de alma lisa de porte ou portáteis; b) que não sejam iguais ou similares ao material bélico usado pelas Forças Armadas e que possuam características particulares direcionadas ao emprego militar ou policial; c) de alma raiada que, com a utilização de munição comum, atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a: 1. mil libras-pé ou mil trezentos e cinquenta e cinco joules para armas portáteis; ou 2. trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules para armas de porte; d) que sejam dos seguintes calibres: 1. .357 Magnum ; 2. .40 Smith e Wesson ; 3. .44 Magnum ; 4. .45 Automatic Colt Pistol ; 5. .243 Winchester ; 6. .270 Winchester ; 7. 7 mm Mauser ; 8. .375 Winchester ; 9. .30-06 e .30 Carbine (7,62 mm x 33 mm); 10. 5,7 mm x 28 mm e 7,62 mm x 39 mm; 11. 9 mm x 19 mm (9 mm Luger , Parabellum ou OTAN ); 12. .308 Winchester (7,62 mm x 51 mm ou OTAN ); 13 .223 Remington (5,56 mm x 45 mm ou OTAN ); e 14. .50 BMG (12,7 mm x 99 mm ou OTAN ); e) que têm funcionamento automático, de qualquer calibre; ou f) obuseiros, canhões e morteiros; II - os lançadores de rojões, foguetes, mísseis e bombas de qualquer natureza; III - os acessórios de arma de fogo que tenham por objetivo: a) dificultar a localização da arma, como silenciadores de tiro, quebra-chamas e outros; b) amortecer o estampido ou a chama do tiro; ou c) modificar as condições de emprego, tais como bocais lança-granadas, conversores de arma de porte em arma portátil e outros; IV - as munições: a) que sejam dos seguintes calibres: 1. 9 mm x 19 mm (9 mm Luger , Parabellum ou OTAN ); 2. .308 Winchester (7,62 mm x 51 mm ou OTAN ); 3. .223 Remington (5,56 mm x 45 mm ou OTAN ); 4. .50 BMG (12,7 mm x 99 mm ou OTAN ); 5. .357 Magnum ; 6. .40 Smith & Wesson ; 7. .44 Magnum ; 8. .45 Automatic Colt Pistol ; 9. .243 Winchester ; 10. .270 Winchester ; 11. 7 mm Mauser ; 12. .375 Winchester ; 13. .30-06 e .30 Carbine ; 14. 7,62x39mm; e 15. 5,7 mm x 28 mm; b) para arma de alma raiada que, depois de disparadas, atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a: 1. mil libras-pé ou mil trezentos e cinquenta e cinco joules para armas portáteis; ou 2. trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules para armas de porte; c) que sejam traçantes, perfurantes, incendiárias, fumígenas ou de uso especial; d) que sejam granadas de obuseiro, canhão, morteiro, mão ou bocal; ou e) que sejam rojões, foguetes, mísseis e bombas de qualquer natureza; V - os explosivos, os iniciadores e os acessórios; VI - os veículos blindados de emprego militar ou policial e de transporte de valores; VII - as proteções balísticas e os veículos automotores blindados, conforme estabelecido em norma editada pelo Comando do Exército; VIII - os agentes lacrimogêneos e os seus dispositivos de lançamento; IX - os produtos menos-letais; X - os fogos de artifício de uso profissional, conforme estabelecido em norma editada pelo Comando do Exército; XI - os equipamentos de visão noturna que apresentem particularidades técnicas e táticas direcionadas ao emprego militar ou policial; XII - os PCE que apresentem particularidades técnicas ou táticas direcionadas exclusivamente ao emprego militar ou policial; e XIII - os redutores de calibre de armas de fogo de emprego finalístico militar ou policial.”

[4] Em seu artigo 42, o Decreto nº 9.785/2019 estabelece que “a classificação legal, técnica e geral e a definição das armas de fogo são as constantes deste Decreto e a dos demais produtos controlados são aquelas constantes do Decreto nº 9.493, de 5 de setembro de 2018 e de sua legislação complementar”.

[5] O art. 14 do Estatuto do Desarmamento trazia disposição a respeito da fiança em seu parágrafo único, a qual foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 3.112-1.

Sobre o autor
William Akerman

Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ). Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ex-Procurador do Estado do Paraná (PGE/PR). Ex-Especialista em Regulação de Aviação Civil (ANAC). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Aprovado em concurso público para Defensor Público do Estado da Bahia (DPE/BA), para Advogado do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e para Advogado da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante da banca de penal e processo penal do I Concurso para Residência Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor e coordenador de obras jurídicas pela Editora JusPodivm. Professor de cursos preparatórios para concursos e fundador do Curso Sobredireito (@curso_sobredireito).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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