Pela Preservação das Instituições e Suas Especificidades

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31/05/2019 às 18:30
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RESUMO: A organização da sociedade realiza-se por meio de instituições. O organismo social só se desenvolve de maneira saudável segundo a atuação sinérgica e harmônica destas estruturas, as quais devem possuir destinações específicas. Tendo em vista que os campos de atuação nos quais estão inseridas são distintos, as instituições desenvolvem valores específicos, cujo conjunto, alinhado com as demandas da sociedade, definem a ética das corporações. A atuação dos órgãos segundo seus respectivos valores é primordial para o correto funcionamento institucional. Entretanto, para que isto ocorra, é fundamental que se observe o processo de formação dos quadros de servidores que integrarão cada uma das instituições, sendo certo afirmar, portanto, que os valores de uma determinada instituição não necessariamente podem ser aplicados às demais. As instituições militares destacam-se quanto à especificidade de sua cultura organizacional, razão pela qual se torna imperioso que tal realidade seja devidamente compreendida, a fim de se manter os valores institucionais que lhe são próprios.

Palavras-chave: ÉTICA. INSTITUIÇÕES. VALORES.

ABSTRACT: The organization of our society is build over institutions. The healthy development of the social body happens only according to the synergistic and harmonic interaction of these structures, which must have specific destinations. Having in mind that the performance fields where they are inserted are distinct, the institutions develop specific values, which group, lined up with society demands, defines the ethics of the corporations. The performance of the bodies regarding their respective values is primordial for the correct institutional action. However, for this to occur, it is fundamental observe the formation process of the servants that will integrate each of the institutions, being correct to affirm, thus, that the values of a specific institution are not necessarily applicable to the others. The military institutions stand out in what regards their specific organizational culture. This reality must be duly understood in order to preserve their own institutional values.      

Keywords: ETHIC. INSTITUTIONS. VALUES.


1. Introdução.

Em que pese todo o desenvolvimento tecnológico alcançado hodiernamente, ainda resta válida a afirmação corrente segundo a qual o corpo humano continua sendo exemplo de perfeição no que se refere ao funcionamento de sistemas. Interessante notar que esta proclamada perfeição só é possível em virtude da existência de diversos órgãos e tecidos com funções específicas. A Biologia ensina que estas estruturas são distintas e perfeitamente adaptadas às suas funções. A saúde plena apresenta-se exatamente quando os diversos sistemas e aparelhos funcionam corretamente e de forma harmônica.

A dinâmica do funcionamento do corpo humano nos permite traçar um paralelo com a convivência em sociedade, posto que esta também é composta por estruturas distintas e especializadas, cujos órgãos são constituídos pelas instituições, sendo certo afirmar que quando estas não funcionam bem, provavelmente o tecido social sofre de alguma moléstia. Sob tal enfoque, e sendo fiel ao nosso contexto filosófico ocidental, não é de todo absurdo que se utilize do recurso analógico  para considerar que um estado de democracia consolidada corresponderia à "saúde plena" do tecido social.

 Desta feita, - por mais que se deva valorizar, e efetivamente se valorize, o indivíduo e a individualidade -, sem a existência de instituições fortes e sustentáveis dificilmente obter-se-á uma sociedade saudável, na qual as pessoas possam exercer, plena e democraticamente, os direitos que lhe são inerentes. Mesmo porque, sem órgãos que os garantam, a democracia e o regime democrático simplesmente se transformariam numa inexorável anarquia.

Pode-se inferir, portanto, que a devida caracterização das instituições demanda a indispensável especialização de seus componentes, o que se dá, necessariamente, pela formação de seus quadros de servidores. Para que estes atuem de modo coerente com a destinação funcional que lhes foi conferida, é impositivo que estejam imbuídos dos valores institucionais atinentes à atividade que desempenharão no contexto público-social, os quais norteiam o funcionamento harmônico do corpo social. É justamente nesse ambiente saudável que se pretende que a sociedade brasileira amadureça, de modo a proporcionar a condição de bem-estar e realização a todos os seus integrantes.

Com efeito, o presente trabalho discorre sobre as instituições e os respectivos processos de formação de seus quadros, coerentes com suas especificidades e destinações funcionais no âmbito da sociedade.    


2. O Homem, a Sociedade e as Instituições.

Desde a antiguidade, as civilizações já procuravam organizar a vida em comunidade por meio de leis e regras. Como se sabe, ARISTÓTELES defendia a tese segundo a qual “o homem é um animal social”, consagrando, assim, que a união entre os seres humanos opera-se de modo absolutamente natural, notadamente pelo fato de ser o homem um ser naturalmente gregário, necessitando, por conseguinte, de outros indivíduos para alcançar a plenitude.

As primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir um sem o outro, ou seja, a união da mulher e do homem para perpetuação da espécie, isto não é resultado de uma escolha, mas nas criaturas humanas, tal como nos outros animais e nas plantas, há um impulso natural no sentido de querer deixar um outro ser da mesma espécie. (ARISTÓTELES, 2005, p. 11).

No bojo de sua obra, ARISTÓTELES estabeleceu a diferença entre dois tipos de espécies: as gregárias (koinonia) e as solitárias (monadika). Ambas, por sua vez, são passíveis de uma nova divisão, isto é, as que são propensas a uma vida sociável (politika) e as que vivem de maneira esparsa (sporadika). Ao concluir que o homem faz parte do primeiro grupo (politika), assevera o grande filósofo que a sociabilidade apresenta-se, invariavelmente, como parte integrante da natureza humana.

[...] a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e que é por natureza e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...] a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade. (ARISTÓTELES, 2005, p. 12).

Como se vê, a organização em sociedade é uma característica humana, o que implicou na denominada especialização de funções, sendo certo afirmar, outrossim, que tal especialização definiu o estabelecimento de instituições, as quais, advêm de "práticas reconhecidas e estabelecidas que governam as relações entre os indivíduos ou os grupos"(MORRIS GINSBERG, 1961).

 MARIA DA LUZ OLIVEIRA (1991, p. 68-79), por sua vez, argumenta que as instituições podem ser definidas como um "conjunto organizado de crenças e práticas que os indivíduos adotam com a finalidade de alcançar um objetivo socialmente importante".

Na quadra atual, consolidou-se a ideia segundo a qual a vida em sociedade é organizada de acordo com os valores que a regem, os quais se modificam ao longo do tempo. Vale dizer, a formalização de uma instituição impõe-se pelas necessidades, identificadas pelo grupo social em determinado momento histórico, tudo em absoluta conformidade com os valores então reinantes. Deste modo, resta evidente que nem todas as instituições são perenes; tais como a grande parcela das Organizações Não Governamentais (ONG) ou dos movimentos ditos sociais, estruturados para a captação de recursos financeiros ou obtenção de peso político em uma conjuntura paralela à democracia representativa institucionalizada pela carta maior de 1988.

A Missão Evangélica Caiuá, uma ONG com sede em Dourados, no Mato Grosso do Sul, tornou-se a maior ONG do Brasil no recebimento de recursos federais. Segundo dados disponíveis no portal da transparência do próprio governo federal, a entidade recebeu R$ 36,6 milhões em 2010 do Ministério da Saúde para serviços de atenção à saúde indígena. Em 2013, a soma chegou a R$ 334,7 milhões. Para este ano, deve receber R$ 421,8 milhões, a serem pagos em três parcelas, segundo informação do ministério da Saúde.(QUESTÃO INDÍGENA, 2014)[1]

...

Pelas estimativas do Tribunal de Contas da União (TCU), há 22 mil organizações no Brasil. Cerca de oito mil recebem dinheiro público.[...]Só no ano passado, as ONGs receberam R$ 3,5 bilhões em repasses do governo federal. É muito dinheiro. A fiscalização da aplicação desses recursos é muito frágil. O resultado é que, em muitos casos, os convênios com ONGs se transformaram em um ralo para o desvio de dinheiro público.(G1.GLOBO.COM/BOM-DIA-BRASIL, 2011) [2]

 Não obstante, há instituições historicamente presentes em todas as sociedades, tais como aquelas diretamente ligadas às atividades públicas, dentre as quais, as instituições políticas (relativas a governança das comunidades), as instituições policiais (relacionadas com a segurança), as instituições jurídicas (concernentes a mediação de conflitos) e as instituições militares (pertinentes a defesa).  

Por óbvio, todas as instituições acima referidas evoluíram junto com a sociedade e sempre estiveram presentes no contexto social, mesmo que sob formatos diferentes. Ainda que nas sociedades tribais muito provavelmente não houvesse estruturas governamentais, tribunais formais ou mesmos generais, havia, por certo, as figuras do sábio (a pessoa que decidia a respeito das questões e demandas tribais) e dos responsáveis pela poliorcética (arte de se planejar um ataque) e pela castrametação (arte de se construir fortificações e castelos ou escolha de áreas para acampamentos), sendo possível aduzir, portanto, que o simbolismo destes personagens, naquele contexto histórico, encerrava as instituições correlatas àquele tipo de organização.

Todavia, ante a complexidade inerente às organizações sociais de nosso tempo, é lícito afirmar que há instituições igualmente mais estruturadas, dotadas de finalidades bem demarcadas e consequente diversidade de atuação funcional, desenvolvendo, por conseguinte, valores específicos e consentâneos com as questões sociais a que se destinam. Para comprovar o que ora se afirma, analisemos, por exemplo, as instituições políticas, as quais primam pela organização, direção e administração da sociedade, bem como pela conciliação das demandas sociais. Diante deste cenário, é perfeitamente aceitável que o político tente "agradar" a todos. No entanto, tal não ocorre com a instituição Poder Judiciário, destinadas, por sua vez, à solução dos diversos conflitos sociais que sempre haverão de existir. No desempenho de suas funções, o magistrado vê-se constantemente obrigado a decidir a lide em favor de uma parte e em detrimento de outra. As instituições policiais, por sua vez, dedicam-se às ações coercitivas imprescindíveis à preservação da ordem pública e das interações da vida em sociedade, estando presentes no dia-a-dia dos cidadãos. Nota-se, portanto, que as citadas instituições, embora distintas entre si, complementam-se sobremaneira, aspecto devidamente registrado por BLAISE PASCAL (1998, p. 60), filósofo e matemático francês que viveu entre os anos 1623 e 1662, na clássica obra intitulada Pensées:  

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A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força é contestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso portanto pôr em conjunto a justiça e a força [...].

O trecho transcrito ilustra como a denominada complementaridade (entre as instituições) é importante para o desenvolvimento harmônico e sustentável do tecido social.

RUY BARBOSA, ressaltando a importância das instituições militares, aduzia que "uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda".[3] Tal assertiva revela-se bastante atual, podendo ser exemplificada através dos lamentáveis episódios acontecidos recentemente na Ucrânia, país que, como cediço, poderia ser considerado a terceira maior potência nuclear do mundo por ocasião do colapso da União Soviética, tendo abdicado do poderio atômico que detinha, por imposição, e em confiança, de acordos internacionais. Tal fato foi motivo de amplo noticiário:

Um acordo assinado pelos presidentes dos Estados Unidos, Ucrânia e Rússia colocou fim ao terceiro maior arsenal nuclear do mundo. Localizado na Ucrânia, o arsenal era composto por 176 mísseis nucleares de longo alcance que, segundo o tratado, seriam levados para a Rússia e desmantelados no prazo de até sete anos. O urânio enriquecido das 1.800 ogivas nucleares desses mísseis seria aproveitado em usinas nucleares civis. O tratado confirmou a condição da Ucrânia de país não-nuclear cuja segurança, a partir de então, seria garantida pelos outros dois países envolvidos no acordo.[4]

[...]

“Esse tratado põe ponto final ao último problema da Guerra Fria”, declarou o presidente russo Boris Yesltsin na entrevista coletiva concedida após a oficialização do acordo. Bill Clinton, o então chefe de Estado norte-americano, elogiou o “bravo e visionário ato” do presidente ucraniano Leonid Kravchuk, afirmando que “a Ucrânia aumentou sua autoridade entre as nações” ao abrir mão de seu arsenal nuclear. Para Kravchuk, o país ganhou mais segurança, porque Rússia e Estados Unidos se comprometeram a velar por sua defesa. [5]

Do que se observa, a crença de que as instituições políticas solucionariam as futuras questões nacionais levou a sociedade ucraniana a abrir mão de estruturas de dissuasão. É evidente que a atual conjuntura não seria jamais solucionada pelas armas nucleares; no entanto, aquele Estado encontra-se no limiar de uma desagregação nacional, sobretudo por não ostentar instituições militares que afiancem suas decisões políticas e lhe garanta a soberania, dependendo, para tanto, de alguma ação institucional externa destinada a defender-lhe o patrimônio nacional.  Em suma, o recente episódio envolvendo a Ucrânia e a Rússia reacende os pensamentos de BLAISE PASCAL e de RUY BARBOSA, sintetizados na ideia de que a justiça, sem a correspondente força, revela-se inócua, razão pela qual não se pode confiar somente em algumas instituições em detrimento da necessária harmonia do sistema social.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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