Anomia, expressão de origem clássica, quer dizer “ausência de normas”, de regras claras e comuns, generalizáveis. E, nesse caso, impera o jogo do vale-tudo, prevalece a vontade do mais forte. É certo, outrossim, que regras ilegítimas produzem distopia, ausência de sentido compartilhável, sem utopia repartida.
Porém, no caso desse texto, afastemos ao menos inicialmente as duas hipóteses, para que possamos nos converter na ideia chave de que a Constituição precisa de respaldo, de sustentação, porque sem a Lei Fundamental – toda Constituição que se baliza na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 – não há vida social organizada que não seja dirigida pelo fascismo.
Assim, o Império da Lei Fundamental está para a civilização como sua negação está para a barbárie. O que se confunde, comumente – por implicação do senso comum (ignorância) ou do oportunismo –, é ineficácia com inexistência constitucional, distorção (distopia) constitucional pelos interesses políticos de plantão com uma suposta revogação da própria Constituição; além de que, por óbvio, dizer-se que “a Constituição não é cumprida” não carrega o sinônimo de que deve ser desacreditada ou aniquilada de vez.
O problema, igualmente óbvio, não é jurídico, mas sim político; a “desacreditação da Constituição”, diga-se mil vezes, não se deve a alguma insuficiência ou negatividade da Lei, mas sim do realismo político – especificamente da “desgovernança” – que lhe nega emprego mínimo. O fato das cortes judiciais superiores corroborarem este típico emprego distorcido, negado, violado, da Lei Fundamental, só reforça o argumento.
O problema da Constituição não é jurídico – enquanto base positivada dos direitos humanos – mas sim político, como relação política que nega a Política, a emancipação, o espaço público, a Polis em que se exercita a cidadania. O problema da Constituição não é a Política (a Polis) mas a política miúda ou, mais precisamente, a inexistência de condições para que vigore integralmente a Política: em que o cidadão não seja um servo voluntário ou ídion (“idiotes”).
Se houvesse a tal “vontade política”, ou interesse em não sabotar a Constituição ou ser desorganizador social oportunista, a Lei Fundamental seria lida, interpretada, aceita e cumprida por qualquer homem médio em sua vida comum. O trabalhador seria o intérprete legítimo dos direitos trabalhistas (não o capital financeiro), os professores e os estudantes dariam um rumo adequado ao direito à educação – e não os analfabetos e revoltados consigo mesmos. Do mesmo modo, o direito à saúde seria gerido por pacientes e servidores da saúde pública e não pela agulha mercadológica que administra o conhecido “ato médico”. É provável, ainda, que neste dia o Judiciário não mais “faria leis” (independentemente da desculpa), mas as cumpriria como toda cidadã e cidadão.
Portanto, o fato da Constituição não ser cumprida, como se vê nos tribunais e no botequim, não é um problema constitucional (jurídico) mas sim ético e político. É ético, o problema, porque se mantém uma clara intenção pelo Mal – a começar pelas negativas à soberania popular e nacional – e é político por uma razão simples: criamos um neoliberalismo fascista detonador dos direitos fundamentais.
Quem não vê isto, o faz por duas razões básicas: ou não se “lê” a política ou joga-se contra a Política. Para ambos, a cobrança não será divina, mas sim da história. Só espero estar aqui para ver o choque de quem “flertou com o fascismo”. De qualquer modo, não cumprimos a Lei Constitucional porque ela é muito melhor do que nós.
Enfim, por tudo isso, continuo aqui defendendo a prevalência da Constituição, dos direitos humanos, da cidadania, da democracia, da República, do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (equivalentes da Carta Política) e do Processo Civilizatório, ou seja, de tudo que coube perfeitamente no texto da nossa Lei Fundamental de 1988.