A aniquilação dos direitos sociais

18/06/2019 às 12:00
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Ao longo do tempo ocorreram avanços sociais no Brasil, mas parece que, no momento, vivencia-se retrocessos nos direitos sociais, que devem ser revistos o quanto antes, para que a economia volte a crescer a todos os segmentos sociais e não apenas para os mais abastados.

É sabido que a história humana não é uma linha darwiniana evolutiva, mas sim cheia de percalços e tropeços, com avanços e retrocessos nas mais diferentes áreas. Neste texto, busca-se indagar: em que estágio estão os direitos sociais no Brasil?

É indubitável o avanço da Lei imperial nº 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, que promoveu a abolição da escravidão no Brasil. Foi dado um direito fundamental, a liberdade, para parcela desfavorecida da população brasileira.

A despeito do seu viés humanitário, possuía interesse econômico por detrás: criar mercado consumidor, aquecer a economia das metrópoles com pessoas que tivessem recursos para comprar os bens e serviços produzidos. Afinal, a economia é uma máquina que não pode parar, quanto mais pessoas demandam produtos e serviços, mais rápida e pujante fica a economia daqueles que aproveitam desta aceleração.

Após aquele marco do período imperial e transcorrido décadas, mais de um século, de lutas e reinvindicações, logrou-se êxito em rol mínimo de direitos e garantias para classe trabalhadora, consolidada no Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a denominada Consolidação das Leis do Trabalho. Cada direito e garantia esculpido visa, em suma, proteger o trabalhador de excessos porventura praticados pelos empregadores. Outro marco relevante para o avanço dos direitos sociais.

A Constituição Federal de 1988, a atual lei maior de regência do Brasil, não se furtou também de explicitar que é fundamento da República Federativa do brasil, dentre outros, a “a dignidade da pessoa humana”, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e os “os valores sociais do trabalho”[1].

Cabe anotar que, no art. 1º da Constituição Federal, os valores sociais do trabalho estão dispostos antes da “livre iniciativa”, o que denota que a observância dos direitos sociais deve ser o norte para a liberdade empresarial. Demais disso, os direitos sociais, esculpidos no art. 7º da CF, dentre os direitos e garantias fundamentais, possui status de cláusula pétrea, conforme preconiza no art. 60, § 4º, da lei maior[2].

Além da sua rigidez, esse rol da Constituição Federal, que encarta vários direitos relevantes para proteger o trabalhador, como jornada de trabalho máxima e férias, é meramente exemplificativo, pois podem existir outros direitos “que visem à melhoria de sua condição social”[3].

Em outros termos, depreende-se que ocorreu inegáveis avanços a favor da classe trabalhadora, a mão de obra criada com o fim da escravidão, para acelerar a economia.

Esse cenário modificou-se com a Lei 13.467, de 2017, a denominada reforma trabalhista, que recrudesceu e reduziu os direitos dos trabalhadores, além de outras medidas processuais para inibir reclamações trabalhistas.

Basta anotar que foi criada previsão, posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – STF[4], que admitia que trabalhadoras grávidas e lactantes desempenhassem atividades insalubres mediante a apresentação de atestado médico. Ora, além de patente retirada de direitos das mulheres, um risco à saúde do rebento. Mandou bem o STF ao cassar este dispositivo leonino.

Há diversas outras ações em curso no STF questionando a constitucionalidade de dispositivos da reforma trabalhista. Como dito, não se pode olvidar que a Constituição Federal protege, ou deveria proteger, os direitos sociais, com status de cláusula pétrea, contra os arroubos empresariais.

É fato que a reforma trabalhista foi um duro golpe nos direitos sociais dos trabalhadores, em prol do empresariado, com mecanismos que reduzem direitos e inibem reclamações. Tanto é verdade que, um dos pontos, promoveu ataque frontal aos sindicatos, para reduzir as suas receitas e, por consequência, seu poder de insurgência. Sindicato fraco é sinônimo de trabalhador sem representação adequada para discutir e lutar pela manutenção dos direitos.

Outro ponto que vem demonstrando ser uma nova derrota para os direitos sociais é a precarização das relações de trabalho. Cada vez mais é comum a figura do “parceiro empresarial” ou “microempreendedor individual” que nada mais é do que trabalhador sem direitos sociais. É a própria aniquilação dos direitos sociais que foram moldados durante séculos de reivindicações trabalhistas.

Para melhor entender essa afirmação, cabe distinguir emprego e trabalho. Emprego é o funcionário com carteira assinada, com todos os seus direitos e garantias protegidos por lei. Neste caso, a relação deve preencher os requisitos do art. 3º da CLT, qual seja, serviço de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário[5]. Já a relação de trabalho não se enquadra nos requisitos e, por conseguinte, não se subordina, a princípio, a CLT.

É neste último caso que entra os “parceiros” ou “microempreendedores”, pessoas que agem por sua conta e risco, sem qualquer direito que o proteja. Prevalece a “liberdade empresarial” para tratar com terceiros. Caso típico na atualidade é o motorista de aplicativo que é “parceiros” cadastrado como pessoas física ou microempreendedor em plataformas online que disponibilizam para os consumidores transporte.

Os riscos do negócio é dele (veículo, combustível, seguro, manutenção, etc.), sem qualquer direito ou garantia (salário, férias, FGTS, etc.) trabalhista, porém parcela do que auferem de renda, valor significativo que pode chegar a até trinta por cento ou mais, é destinada para o gestor do aplicativo, a título de publicidade do serviço e manutenção da plataforma online.

Em pesquisa empírica, sempre que utilizo o transporte por aplicativo, que é, em regra, muito mais barato do que o taxi convencional, procuro saber quantas horas de trabalho o motorista costuma ficar online, trabalhando no aplicativo. As respostas são sempre de estarrecer: em média, não raro, a jornada destes profissionais chega a dezesseis horas por dia, sem um dia sequer de descanso, de domingo a domingo.

Aí cabe perguntar: Qual tempo o motorista de aplicativo terá para o lazer, para a família, para a qualificação profissional? Qual tempo ele terá para buscar outros meios de subsistência, se assim desejar? Qual tempo, enfim, ele terá livre?

Lembro-me do início do transporte por aplicativos. A propaganda era: faça uma renda extra como motorista de aplicativo, reforce a sua renda no final do ano para pagar suas contas. Infelizmente, fruto de uma economia em franca queda e falta de oportunidades, a renda extra se tornou a principal, em razão dos alarmantes números, crescentes, de desempregados.

É a mais triste faceta do capitalismo selvagem, tido como neoliberal, que não respeita o rol mínimo de direitos trabalhistas, aproveitando-se da hipossuficiência do desempregado para conseguir lucro fácil, às custas do trabalho de outrem.

Enquanto para o consumidor é ótimo, afinal se tem um serviço de melhor qualidade a preço bem baixo, porém para o trabalhador é uma proximidade, com verniz de “liberdade empresarial”, novamente à escravidão, que nada mais é que a ausência de direitos que guarneçam o indivíduo de um mínimo de garantias. A prisão nova não é com grilhões, mas online, para tentar buscar o sustento da família, pois, não se olvide, ninguém trabalha dezesseis horas diárias por puro prazer, salvo se for masoquista.

Essa forma de trabalho acabou, em certa medida, chancelada pelo STF[6] que decidiu com base na livre iniciativa e na livre concorrência. Alguns ministros argumentaram que se tratava de movimento “disruptivo”, “destruição criativa” dos monopólios.

É certo que a discussão, a questão de mérito, era a regulação do serviço por leis estaduais e municipais, mas esqueceu-se de discutir também a “destruição criativa” dos direitos sociais.

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Falou-se também que o transporte por aplicativo é uma forma, num momento de desemprego, de buscar atingir o “pleno emprego”, conforme prevê o art. 170, VIII, da Constituição Federal, mas esqueceu-se que motorista de aplicativo não é empregado e o trabalho, por si só, não pode ser equiparado a emprego. Pensar dessa forma pode levar também a defender a mendicância também como busca por pleno emprego. Falacioso argumento, portanto, que deve ser rechaçado[7].

Dentre os princípios gerais da atividade econômica, da livre iniciativa, esta a “existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Por isso, avalizar o afastamento total dos direitos sociais de trabalhadores que estão desempregados e buscam seu sustento por meio de transporte por aplicativos não encontra guarida, à toda evidência, na Constituição Federal, mesmo sob o argumento da livre iniciativa.

O Tribunal Superior do Trabalho – TST já decidiu que o descumprimento reiterado de normas trabalhistas, com várias irregularidades cometidas pelo empregador, “transgride valores fundamentais à própria coletividade, dando ensejo à reparação por dano moral coletivo, independentemente da demonstração efetiva do dano”. No caso julgado, entendeu-se que as condutas ilícitas, por não observar os direitos sociais, macularam a proteção constitucional dada à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho, além de fomentar lógica perversa de depreciar as condições de trabalho para manter a competitividade no mercado[8].

Espera-se que essa matéria também chegue à baila para o STF discutir o tema específico e, quem sabe, buscar rever seus conceitos sobre o que seria pleno emprego. Em outras palavras, buscar compatibilizar direitos sociais com a livre iniciativa, valorizando um sem descurar do outro.

Pleno emprego se consegue com economia aquecida, empresas produzindo no máximo, gerando renda para todos, e não retirando direitos sociais dos trabalhadores, reduzindo renda dos menos favorecidos. Senão estar-se-á, apenas, retrocedendo a tempos obscuros que não devem regressar jamais.

À luz do exposto, vê-se que, no Brasil, ocorreu vários avanços sociais ao longo do tempo, mas parece que, no momento, vivenciam-se retrocessos nos direitos sociais, para não dizer aniquilação, que deve ser revisto o quanto antes, para que a economia volte a crescer para todos os segmentos sociais e não apenas para os mais abastados.


Notas

[1] Art. 1º da CF/88.

[2] Art. 60, § 4º, da CF/88: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais”.

[3] Art. 7º, caput, da CF/88.

[4] ADI 5938.

[5] Art. 3º da CLT: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.

[6] RE 1.054.110 e ADPF 449.

[7] Art. 170 da CF: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VIII - busca do pleno emprego”.

[8] TST-E-ED-ED-ARR-3224600-55.2006.5.11.0019, SBDI-I.

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Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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