O Caso Moro e a estrutura do processo penal brasileiro e italiano

30/06/2019 às 19:05
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Sistema penal acusatório. Equidistância do juiz das partes processuais. Análise comparativa dos modelos brasileiro e italiano que prevê a distinção entre giudice per le indagine preliminare, giudice dell'udienza preliminare e giudice del dibattimento.

As mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador chefe da força-tarefa da Lava Jato Deltan Dallagnol, divulgadas pelo site Intercept Brasil, vêm suscitando controvérsias acerca do comportamento do ex-juiz. Para os advogados de defesa do ex-presidente Lula trechos das mensagens reveladas indicam que Moro não agiu de forma imparcial em suas atribuições na 13ª vara criminal da Justiça Federal em Curitiba. O teor dessa objeção ao comportamento de Moro remete a uma suposta violação por parte do então juiz àquele que pode ser considerado como o mais importante dos princípios que informam o processo penal de tipo acusatório, supostamente adotado no Brasil: o princípio da imparcialidade.

Em um processo penal de tipo acusatório fundado, entre outros aspectos relevantes, na separação das funções de acusar e julgar, o juiz é um terceiro chamado a dirimir controvérsias de direito entre partes que se opõem (defesa e acusação). Esse juiz é imposto às partes, que não podem escolhê-lo (juiz natural), e devem acatar suas decisões. Enquanto agente da jurisdição do Estado, o juiz examina as pretensões das partes e resolve o conflito por meio de uma decisão vinculante que põe fim à disputa, contribuindo assim para a promoção da pacificação social. O exercício da jurisdição pelo juiz deve ocorrer com base no processo, instrumento de pacificação pela via da eliminação de conflitos por meio da aplicação do direito pelo juiz, agente estatal da jurisdição do Estado.

É porque o juiz não é escolhido pelas partes e profere decisões impositivas que a eficácia da função judiciária e sua legitimação dependem de que o juiz mantenha equidistância da defesa e da acusação e seja e apareça como estando acima das partes. Nesse sentido, as regras do processo podem ser vistas como um conjunto de limites formais aos poderes do juiz e como garantia àqueles que devem submeter-se às suas decisões.

Exatamente por isso, nossas democracias procuram assegurar aos juízes condições adequadas para o exercício da jurisdição: garantias de independência que lhe permitam honrar o princípio da imparcialidade. Tais garantias de independência procuram regular as relações entre os juízes e os diferentes atores do ambiente político e social (incluído aí o Ministério Público) e são pré-condição para a imparcialidade do juiz.

Ora alguns dos trechos de conversas vazados pelo Intercept Brasil têm sido interpretados como violações a alguns dos dispositivos de nosso Código de Processo Penal e de nosso Código de Processo Civil especialmente voltados para a necessidade da preservação da imparcialidade do juiz.

CPP. Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

IV - se tiver aconselhado qualquer das partes[1];

CPC. Art. 145. Há suspeição do juiz:

II - que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;

IV - interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes[2].

Moro vem sendo acusado ainda da violação do Código de Ética da Magistratura Nacional que estabelece:

Art. 8º. O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.[3]

Se a separação entre as funções de acusar e julgar é algo fundamental para a caracterização de um sistema penal como sendo de tipo acusatório - ainda que para muitos essa seja uma condição necessária, mas não suficiente, sendo ainda imprescindível que a gestão das provas seja entregue inteiramente às partes – parece inaceitável sob a ótica de um processo judicial garantista que o juiz que será o responsável pelo julgamento da causa aproxime-se de uma das partes ainda que na fase de investigações, violando, portanto, seu compromisso com o princípio da imparcialidade.

A título de comparação, na Itália um magistrado que atua na fase de investigação não atua na fase de julgamento. Enquanto um mesmo juiz no Brasil pode decidir acerca de pedidos da acusação na fase de investigação (pedidos de prisões preventivas, quebras de sigilo, buscas e apreensões etc.), sobre o acolhimento ou não da denúncia do Ministério Público e ainda conduzir o processo na fase em que são examinadas as provas e ouvidas as testemunhas até sua conclusão; na Itália essas atribuições são distribuídas entre três diferentes tipos de juízes: o juiz das investigações preliminares (giudice per le indagine preliminare), o juiz da audiência preliminar (giudice dell’udienza preliminare) e o juiz que deverá proferir a sentença (giudice del dibattimento).

O juiz das investigações preliminares (GIP) foi introduzido no ordenamento judiciário italiano em 1988 em substituição ao antigo juiz instrutor. Ao contrário deste, o GIP não tem poder de iniciativa probatória, atuando apenas a pedido de parte. Tem como principal função a garantia dos direitos dos investigados e decide sobre os pedidos do Ministério Público. Além disso, tem atribuições nos procedimentos especiais que visam decidir as controvérsias apenas com base nos autos do Ministério Público, antes que se atinja o debate entre as partes perante o juiz. O juiz da audiência preliminar (GUP) é aquele encarregado de decidir sobre o acolhimento ou não da denúncia do Ministério Público. Também foi introduzido no ordenamento judiciário italiano em 1988. Já o juiz julgador é aquele que preside a fase do processo em que são examinadas e debatidas as provas da acusação e da defesa e ouvidas as testemunhas das partes.

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O pressuposto essencial adotado na Itália é o de que são grandes as chances de que um juiz que atue na fase de investigações adquira vieses de análise que terminarão por contaminar sua função julgadora na fase de debate das provas em juízo e de sentença do juiz.

Note-se que a exigência de imparcialidade é algo que alcança toda a magistratura judicante italiana, desde o juiz de paz até o juiz de cassação, incluídos aqueles cuja atuação ocorre na fase de investigação e oferecimento de denúncia (GIP e GUP). Nos termos ao art. 111 da Constituição italiana: “Ogni processo si svolge nel contraddittorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a giudice terzo e imparziale”.

A divisão de trabalho entre diferentes tipos de juízes no ordenamento judiciário italiano dá ao processo penal italiano uma melhor conformação para lidar com o risco de que uma eventual aproximação entre um GIP ou um GUP e o Ministério Público durante a fase de investigações, algo supostamente ocorrido no episódio envolvendo o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, tenha repercussão na qualidade da sentença proferida pelo juiz na fase do dibattimento do processo penal italiano.

Provavelmente as suspeitas de parcialidade que hoje recaem sobre a figura do ex-juiz Moro responsável por uma das condenações do ex-presidente Lula não teriam surgido se, no Brasil, adotássemos uma fórmula que prevê a completa separação entre o juiz que atua na fase pré-processual de investigação daquele que atua na fase processual de debate das provas em juízo e de sentença do juiz. É por isso que ressurgem neste momento discussões acerca da atuação de um mesmo juiz em todas as etapas do processo e sugestões no sentido da adoção de mudanças legislativas que estabeleçam que um mesmo juiz não pode atuar na fase de investigação e depois na fase de julgamento de um mesmo processo penal.


Notas

[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm.

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.

[3] https://www.cnj.jus.br/publicacoes/codigo-de-etica-da-magistratura.

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Sobre o autor
Eduardo Meira Zauli

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Sociais (1986) e Mestre em Sociologia (1991) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1996) e Pós-doutor em Ciência Política (2013) pela Università di Bologna.

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