Crimes de ódio, discursos de ódio: para o Direito,as palavras importam (Tradução)

05/07/2019 às 18:41
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Tradução do artigo de Karlos Castilla Link do texto original: https://www.idhc.org/es/investigacion/publicaciones/discriminacio-intolerancia-i-odi/crimen-de-odio-discurso-de-odio-en-el-derecho-las-palabras-importan.php#_ftnref9

Crimes de ódio, discursos de ódio:  para o Direito,as palavras importam.

tradução por Matheus Maciel 

Karlos Castilla neste breve texto traz questões sobre a origem dos termos "crime de ódio" e "discurso de ódio" nos sistemas jurídicos. Quais características pessoais estão protegidas? Quais ações e/ou expressões podem ser consideradas como crimes ou incitação ao ódio?

  Antes dos debates que estão sendo apresentados tanto na Espanha quanto no México, sobre quais pessoas devem ser efetivamente protegidas desses crimes, o texto faz uma breve análise do modo como os dois países tratam os genericamente denominados "crimes de ódio", ás pessoas ou grupos que por suas características pessoais em cada caso podem ser considerados protegidos, mas não da simples análise tradicional dos grupos ou categorias historicamente discriminadas, mas da maneira como nos dois países princípio da não discriminação estabelecido nos seus textos constitucionais.

Karlos Castilla procura questionar e inaugurar um debate que vai além de saber se a extensão dessas definições é boa ou ruim, e resume da seguinte maneira:O verdadeiro problema não é que tudo possa ser considerado discriminatório ou dar origem a crimes ou discursos de ódio, mas, mais uma vez, serão aqueles que têm mais vantagens e sempre tiveram  que terão acesso (e estão tendo) aos sistemas de justiça para reivindicar os danos que afirmam sofrer.

Crimes de ódio, discursos de ódio:  para o Direito,as palavras importam.

 Nos últimos dias e meses, tanto no México quanto na Espanha, tem crescido a quantidade de vezes que se fala em "discurso de ódio" ou até mesmo "crimes de ódio" para qualificar discursos, mensagens, palavras ou ações que não são bem aceitas ou que sejam consideradas discriminatórias, insultuosas e agressivas. Em ambos os casos, finge dar a palavra "ódio" alvos que não correspondem necessariamente ao que foi originalmente procurado para ser protegido com esse termo.

 Nesse sentido, a primeira coisa que pode ser dita é que o que deve ser entendido por "crime de ódio" e "discurso de ódio", que não são a mesma coisa. Ou seja, esses dois termos não se referem a um único comportamento, mas a dois comportamentos diferentes.

 Mas, além disso, não há um acordo generalizado nem mesmo no âmbito da Organização dos Estados Americanos, do Conselho da Europa ou das Nações Unidas (para mencionar as esferas multilaterais em que o México e a Espanha participam) com relação ao que esses termos significam precisamente. O que existem são parâmetros do que pode ser considerado como tal, mas não acordos bem definidos. O mesmo acontece nas áreas acadêmicas, onde as opiniões são muito diversas e nem sempre coincidem em todos os seus pontos.

 Nesse sentido, é muito importante estabelecer que a palavra "ódio" que acompanha "discurso" ou "crime" não deve ser entendida em termos genéricos como antipatia e/ou aversão a algo ou a alguém cujo mal é desejado, mas que esse termo foi incluído com uma conotação emocional, porém não genérica, objetivando descrever a situação sofrida por pessoas ou grupos específicos nos Estados Unidos. Assim, o termo "hate crime" (crime de ódio) surgiu naquele país em 1985, quando havia um grande número de crimes baseados em preconceitos raciais, étnicos e nacionalistas. Quando esses crimes foram investigados pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), tanto esta instituição quanto a mídia adotaram esse termo por causa de seu grande impacto nas manchetes e na mensagem que transmitiu.

 É evidente, portanto, que o acréscimo do termo "ódio" procurou ter impacto na mídia ou na comunicação, pois o próprio FBI, ao esmiuçar o conteúdo das áreas que investiga, expressamente afirma que "investigou o que hoje é chamado de crimes de ódio desde a Primeira Guerra Mundial”. Nosso papel aumentou após a aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964. Ou seja, o termo foi uma criação com propósitos específicos em um momento específico, apesar de que fatos semelhantes foram investigados há várias décadas. Esclarece o FBI até mesmo que "ódio" por si só não é um crime, não é um delito.

 Desta forma, é evidente que os termos "crimes de ódio" e "discurso de ódio" procuravam proteger pessoas que têm características típicas de categorias ou grupos historicamente discriminados, marginalizados ou desfavorecidos em relação a outros ou a maioria em um país ou região. Isto é, em princípio, nem todas as categorias ou grupos de pessoas teriam que ser abrangidos por aquela proteção especial ou reforçada que foi buscada e enfatizada na comunicação.

  A diferença entre "crime" e "discurso" parece óbvia, mas é melhor especificá-lo. O primeiro envolve atos materiais concretos, como lesões, assassinatos, incêndios criminosos ou vandalismo. Isto é, ofensas ou atos criminosos (tipificados como crime) contra pessoas ou bens. A segunda são palavras ou expressões, não qualquer uma, mas aquelas que espalham idéias de superioridade e inferioridade de "casta" ou que tentam justificar a violência, ódio ou discriminação contra pessoas, comunidades ou grupos de pessoas com base nas características pessoais que os identificam, bem como o incitamento a todos os itens acima. Como é evidente, este segundo gera grandes debates contra a liberdade de expressão porque não é tão simples considerar qualquer insulto ou mesmo desprezo dentro como um discurso dessa natureza. Ao contrário, requer análises muito particulares em cada caso.

 Seja crime ou discurso, o que é relevante por trás ou além de atos e palavras são os elementos adicionais de preconceito e discriminação dirigidos a uma pessoa ou grupo por suas características pessoais.

 Ou seja,  praticar (crime) ou expressar (discurso) é motivado, no todo ou em parte, por uma suposta superioridade ou por um preconceito, em pretender causar dano porque as pessoas ou grupos aos quais as ações são dirigidas têm características pessoais que geram aversão àquele que o pratica, porque são diferentes (em regra) em características pessoais.

           A pergunta obrigatória é: que características pessoais são protegidas? Quais características pessoais dão origem a crimes e / ou crimes de ódio?

            É justamente aí onde as palavras importam na lei. Neste ponto, é onde não há acordos globais ou regionais, nem nas leis nem nos estudos. A resposta a estas questões não é generalizável para nenhuma parte do mundo, pois cada sistema jurídico nacional define quais características pessoais são protegidas, quais pessoas ou grupos de pessoas consideram-se dignos de proteção reforçada ou qual pessoa ou grupo de pessoas  podem ser vítimas desse "ódio" que no final nada mais é do que uma expressão de discriminação violenta ou ao menos pretensamente violenta.

            No caso da Espanha e do México, independentemente do que estabeleça especificamente o Código Penal de cada país, é especialmente relevante o conteúdo das normais constitucionais que proíbem a discriminação.

Portanto no país onde nasceu o termo “Hate Crime”,atualmente, essas características pessoais especialmente protegidas,e que dão origem a esses crimes, estão ligadas à raça, religião, deficiência, orientação sexual, etnia, gênero ou identidade de gênero. Em outras palavras, qualquer crime, direta ou indiretamente motivado por essas características pessoais da vítima, pode ser considerado um "crime de ódio".

Na Espanha, o Artigo 14 da Constituição é neste quesito relevante (sem esquecer o conteúdo de todos os tratos de que a Espanha faz parte) que proíbe a discriminação com base em: nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.

            Para o México, o parágrafo 5º do artigo 1º da Constituição é relevante (não esquecendo os trato que reconhecem os Direitos Humanos) pois proíbe qualquer discriminação baseada em: origem étnica ou nacional, gênero, idade, deficiências, status social, condições de saúde, religião, opiniões, preferências sexuais, estado civil ou qualquer outro que viole a dignidade humana e visa anular ou prejudicar os direitos e liberdades dos indivíduos.

            Como pode ser visto com conteúdos normativos como "qualquer outra condição" ou "qualquer outra condição que viole a dignidade humana",  as interpretações são ampliadas, o que, por um lado, é bom pois torna mais abrangente o número de situações em que se proíbe a discriminação, o que nos leva a supor que haveria uma redução das discriminações. Por outro lado, também abre o número de pressupostos que devem ser protegidas e que, portanto, poderiam ou deveriam ser consideradas como sujeitos passivos de crimes ou discursos de ódio, já que, se a sua discriminação é genericamente proibida, o que justificaria a sua exclusão da proteção por meios penais?

 No caso da Espanha, os artigos 22.4 e 510 do Código Penal vão além do estabelecido na Constituição ao incluir: ideologia, crenças, situação familiar, etnia, nação, orientação ou identidade sexual, gênero, doença ou deficiência; todos admissíveis sob a descrição de "qualquer outra condição".

 No México, o artigo 149  do Código Penal Federal também vai além do estabelecido na Constituição, incluindo: raça, cor da pele, idioma, origem nacional ou social, condição econômica, gravidez, opiniões políticas; todos admissíveis sob a caracterização de  "qualquer outro que ameace a dignidade humana". Enquanto a Lei Federal para Prevenir e Eliminar a Discriminação (que não estabelece infrações) vai além no seu Artigo 1º, inciso III, ao incluir, além de alguns dos anteriores, o status legal, aparência física, características genéticas, situação migratória, identidade ou afiliação política, estado civil, responsabilidades familiares e antecedentes criminais.

  O que tudo isso significa? Que as palavras importam na lei e que atualmente, por causa dessa amplitude normativa, não apenas pessoas ou grupos historicamente discriminados podem ser considerados sujeitos passivos dos chamados crimes ou discursos de ódio, mas que isso foi ampliado pela inclusão de categorias específicas ou por meio de formulações normativas abertas que deixam espaço para caracterização de quase qualquer possibilidade de discriminação.

 Isso é positivo? Isso é negativo? Sem dúvida, é em princípio positivo do ponto de vista da não discriminação ao buscar incluir qualquer situação que possa gerá-la. Mas torna-se negativo quando a grafia "qualquer outra condição" leva os historicamente discriminados a serem mais uma vez relegados por essas outras condições que mesmo que possam ser discriminados estão melhor posicionados (em geral e, portanto, para reivindicar seus direitos), quebrando o sentido e propósito requerido por pessoas e grupos específicos que necessitam de proteção especial, por terem sido historicamente excluídos do princípio da igualdade.

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            Em última análise, o problema real não é que tudo pode ser considerado discriminatório ou dar origem a crimes de ódio ou discursos de ódio, mas que, mais uma vez, serão os mesmos que terão mais vantagens e terão acesso (e estão acessando) os sistemas de justiça para reivindicar a discriminação que afirmam sofrer; mais uma vez aqueles que originalmente procuram proteção especial são e serão provavelmente os mesmos que receberão as sanções, aqueles que não têm acesso à justiça, que continuam a sofrer discriminação, em muitos casos, herdada pela cor da sua pele, nacionalidade, gênero e outras características pessoais.

  Em grande medida, é isso que acontece em geral com os Direitos Humanos,quando se aparenta que tudo é um direito humano. Em muitos casos, banaliza-se o conceito e perdem a força os direitos mínimos que na verdade são essenciais para toda pessoa.

 Quando pensamos fracionariamente sobre Direitos Humanos ou, neste caso sobre discriminação, apenas por um dos seus ângulos, perdemos de vista o fato de que, por vezes, ao expandir a proteção para um lado, enfraquece as ferramentas por outro. Às vezes, com nossas fortes convicções éticas e morais, não necessariamente universais ou universalizáveis, parece que também esquecemos que na lei as palavras importam e que às vezes, mais pode realmente se tornar menos, pois as normas jurídicas formam sistemas e não nichos isolados que são usados individualmente.

            Hoje em muitos âmbitos, a preocupação é de que "qualquer coisa" a respeito de qualquer pessoa possa considerar-se motivo ou especificamente "crime de ódio" ou "discurso de ódio”, ainda que em outro período nos parecesse uma grande ideia das normas antidiscriminatórias abertas que fossem além dos grupos historicamente discriminados e excluídos do princípio da igualdade.

 Primeiro de tudo, eu não tenho uma solução. Além disso, muito do que foi descrito foi simplificado em seus debates para este breve espaço. O tema ainda requer grandes análises e reflexões.

            Portanto, prefiro deixar aberto o convite para continuarmos pensando e debatendo ideias sobre se tomamos os caminhos certos, mas acima de tudo, sobre como podemos corrigir a rota, para que a proteção efetiva de uma parte dos direitos ou direitos específicos, mais tarde, não se torne justamente a nova falta de proteção daqueles que queríamos proteger.

Em que pese minha fala, não sou contra buscar mais e melhor proteção, mas pensar nisso como um sistema, sem esquecer que as palavras importam na lei e, portanto, não devemos perder de vista o fato de que a interdependência e indivisibilidade dos Direitos Humanos devem nos levar a pensar em todos os ângulos possíveis de incidência, para que o mais não se converta em menos (mais uma vez) para as pessoas de sempre.

 Sendo assim,por exemplo, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) define como crime de ódio: qualquer infração penal, inclusive infrações contra pessoas ou bens, onde a vítima, o local ou o objetivo da infração são escolhido por sua,  real ou assim interpretada, conexão, simpatia, afiliação, apoio ou pertencimento a um grupo, tal como definido na parte B. (B) Um grupo é baseado em uma característica comum de seus membros, como sua "orientação ou identidade sexual", real ou assim interpretada.

            Por sua vez, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) define como discurso de ódio: ... o uso de uma ou mais formas específicas de expressão - por exemplo, a defesa, promoção ou instigação do ódio, humilhação ou a depreciação de uma pessoa ou grupo de pessoas, bem como o assédio, descrédito, disseminação de estereótipos negativos ou estigmatização ou ameaça em relação a essa pessoa ou grupo de pessoas, e a justificativa para essas manifestações - com base em uma lista não exaustiva de características pessoais ou estados que incluem raça, cor, idioma, religião ou crença, nacionalidade ou origem étnica bem como ascendência, idade, deficiência, sexo, gênero, identidade de gênero e orientação sexual.

* Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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