DA SUMA VULGATA DE LIBELUS ADVERSUS MORUM
“Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”
É a voz de Cícero em seu discurso de acusação, as célebres Catilinárias. Lá no Senado romano, tão enfadonhas quanto hoje no plenário virtual da mídia, ecoam nos seguidores de “Lulas Sérgio Catilina”. Lucius, aliás.
Ouso tomar de Cícero a licença para transcrever tal clássico que se faz moderno:
“Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?
A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?
Nem a guarda do Palatino,
nem a ronda noturna da cidade,
nem o temor do povo,
nem a afluência de todos os homens de bem,
nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado,
nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto conseguiu perturbar-te?
Não te dás conta de que os teus planos foram descobertos?
Não vês que a tua conspiração já é conhecida por todos estes?
Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?
Oh tempos, oh costumes!”
Marcus Tullius Cicero
Mas penso que se trata, hoje, de acusação vazia, sem conteúdo. Onde está algum erro?
Sirvo-me das lições do Promotor Valter Foleto Santin, e peço licença para transcrevê-las:
“O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CF; art. 1º do Estatuto do Ministério Público da União, Lei Complementar Federal nº 75, de 20.5.1993; e art. 1º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei Federal nº 8.625, de 12.5.1993).
Segundo a norma constitucional, o Ministério Público é o órgão estatal encarregado de exercer a ação penal pública (art. 129, I, CF). A sua legitimidade desaparece apenas no caso da ação penal privada subsidiária, em caso de inércia da promotoria (art. 5º, LIX, CF).
O Ministério Público possui legitimidade política e processual para a ação penal pública. É o ente estatal legítimo, autêntico e lídimo para tal mister, reconhecido e habilitado constitucionalmente (art. 129, I, CF) e também pelas normas estatutárias (art. 6º, V, Lei Comp. Fed. nº 75 e art. 25, III, Lei Fed. nº 8.625).
A legitimidade política decorre do preceito constitucional, oriundo da vontade popular expressa pelos constituintes de conferir privatividade da ação penal ao Ministério Público.”
Valter Foleto Santin, Promotor de Justiça – SP
Outro aspecto a ser pontuado é que, na busca pela verdade real, em substituição à verdade meramente processual, o processo penal se ancora em raízes constitucionais, verbis:
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
art. 5º, LIV, CF
De forma diversa, no processo civil busca-se a verdade presumida ou fictícia (arts. 319 e 343, § 2º, CPC).
No Brasil, como temos o princípio do garantismo e da participação processual, naturalmente que o princípio inquisitivo — no qual o protagonista é o juiz, e não as partes ou o Ministério Público — permite e deve permitir ao juiz instruir adequadamente um processo com provas substanciais.
Portanto, é truísmo, ou retórica doutrinária não predominante, afirmar que o juiz não tem o condão de investigar algo.
Não fosse assim, o Ministro Dias Toffoli não teria instaurado processo para investigar ameaças à Suprema Corte. Cá entre nós, tais ameaças — juridicamente e humanamente inconcebíveis — sempre terão a mais ampla repulsa da população, diante da torpeza contra o Poder Judiciário.
Eleva-se a voz, contudo, quando se trata da pretensão de restringir ou patrulhar a atividade jurisdicional, que colabora com o exercício do custos legis do Ministério Público. Repito: Quousque tandem?
É tão mesquinha e reprovável a acusação feita contra o Ministro Moro que me recordo da voz de um antigo advogado, que sabiamente me aconselhava: “melhor não contracenar”.
Outro princípio a ser registrado em prol do Ministro Moro é o Princípio do Livre Convencimento Motivado (art. 93, IX, CF). Esse princípio permite ao juiz julgar até mesmo contra as provas dos autos. Daí por que telefonemas em contextos conturbados ou teor retirado da “árvore dos frutos envenenados” devem ser repelidos, por se mostrarem inócuos processualmente, sem agredir a personalidade do juiz.
Não se deve confundir o juiz que proferiu atos de heroísmo em sentenças com o atual Ministro. O juiz pertence ao passado, a uma dimensão histórica. Quem existe agora é o político e jurista Moro.
Ninguém pode julgar intimidado pela opinião pública ou pela pressão da mídia. O livre convencimento do juízo é sagrado, e fundamentado na lei costuma ser tido como irretocável.
Em tese, o princípio do livre convencimento está para a sentença assim como o átrio da Igreja está para o púlpito: espaços sagrados, imunes a máculas morais.
E quando alguém decide com base no livre convencimento ou persuasão racional, não está atrelado apenas às provas, mas à busca da verdade real. Não creio que o interesse público da Lava Jato possa servir de cadafalso para devassar a vida de quem quer que seja.
A legalidade estrita não transforma o juiz do século XXI em figura inerte. Na obra Por Detrás da Suprema Corte, lembra-se que o bom juiz não pode fazer escola de ingenuidade. Melhor amparar-se em preceitos da Summa Theologica de São Tomás de Aquino do que em vulgata de interpretação filosófica, onde a liberdade de julgar seja patrulhada, restringindo juízes, Ministério Público ou demais intérpretes da lei, quando se trata da aplicação pro societate do Direito.