Teoria da cegueira deliberada.

O avanço dogmático do Direito Penal

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A teoria da cegueira deliberada surge como importante mecanismo do direito comparado, com objetivo de solucionar eventuais questões quanto a possibilidade de aplicar-se o dolo eventual nos crimes omissivos.

1. ORIGEM

1.1 ​​SISTEMÁTICA ANGLO-SACÔNICA

1.1.1 REGINA V. SLEEP

Historicamente, o surgimento da Teoria da Cegueira Deliberada nos remete ao caso Regina v. Sleep, ocorrido em 1861, na Inglaterra. Em verdade, foi nesse período que timidamente a teoria começou a tomar forma e desenvolvimento.

No caso, o referido senhor Sleep foi indiciado por “malversação de bens públicos”, infração que demandava o conhecimento da ilicitude do ato por parte do agente. Houve que o ferrageiro portou parafusos de cobre em uma embarcação mercantil particular, os quais continham marcas de flechas em suas pontas, sinal indicativo de que a propriedade pertencia ao governo.

Diante o caso, em primeiro grau, o júri o condenou. Em sede de recurso, Sleep alegou desconhecer que a propriedade pertencia ao Estado Inglês, argumento contundente, uma vez que o delito necessitava de prévio conhecimento. Deferindo o recurso, o juiz Willes justificou que não havia provas do contrário, ou de que o ferrageiro podendo ter o conhecimento se absteve voluntariamente de adquiri-lo.

Como fica evidenciado, essa decisão levou a indução de que, se restasse comprovada a ignorância proposital do agente, esta seria equiparada ao conhecimento real da ilicitude do ato e Sleep seria condenado pelo crime com fulcro na Teoria da Cegueira Deliberada[i]. A decisão do caso Regina v. Sleep serviu como base para diversas outras sentenças equiparadas.

1.1.2 BOSLEY V. DAVIES

Após quatorze anos, a doutrina da Cegueira Deliberada manifestou-se novamente nos tribunais ingleses perante o caso Bosley v. Davies que foi decidido em 1875.

Davies era proprietário de uma pensão e foi acusado de permitir jogos ilegais em suas instalações. O réu afirmava em sua matéria de defesa que não tinha ciência da prática ilegal que vinha ocorrendo em seu estabelecimento, e que tal conhecimento era essencial para a relevância penal da ação.

O Tribunal, todavia, discordou, afirmando que o conhecimento real não é obrigatório, mas deve haver circunstâncias concretas e inequívocas a partir das quais se pode presumir que Davies ou os seus empregados eram coniventes com a prática ilícita dos jogos[ii] e de que alguma forma, se beneficiavam dos atos. Logo, o tribunal acatou o fundamento de que a cegueira deliberada, diante um fato ilícito, é suficiente para o enquadramento do réu no tipo penal em vislumbre.

Ao final do século XIX a doutrina anglo-saxônica tornou-se pacífica no sentido de que a Willfull Blindness (Cegueira Deliberada) era similar ao conhecimento da ilicitude do ato e, portanto, poderia gerar condenações na mesma proporção.

1.1.3 PEOPLE V. BROWN

Sob a ótica da jurisdição norte americana, em 1887, a teoria aparece de forma embrionária para servir como resolução no caso People v. Brown, perante a Corte Californiana. In casu, o tribunal do júri em audiência de instrução entendeu que a mera negligência e falta de diligência para apurar ilicitudes ocorridas ao arredor do réu, era suficiente para condená-lo.

Todavia, de forma controvérsia, a Corte entendeu que o réu não tinha absoluta propriedade e necessidade de conhecimento da ilicitude do ato e que a mera negligência não era suficiente para condená-lo neste caso.

Apesar de ter arquivado a Teoria da Cegueira Deliberada, a Corte ressaltou que se “inequivocamente fossem constatados atos de cegueira perante uma ilicitude, o réu poderia ser condenado por seu mero conhecimento e abstenção dos atos ilícitos”.

1.1.4 SPURR V. UNITED STATES

Porém, somente em 1899, no caso Spurr v. United States[iii], a referida teoria foi aplicada de forma concreta pela Suprema Corte Norte-Americana. No caso, discutia-se a condenação do Sr. Spurr, presidente do Commercial National Bank of Nashville (Banco Comercial Nacional de Nashville).

O réu em questão era indiciado por ter emitido certificados de cheques para um cliente o qual carecia de fundos bancários. Diante a lei da época, para que o réu fosse enquadrado no tipo legal de fraude bancária, era necessária a comprovação de dolo na violação dos requisitos de emissão dos títulos de crédito próprios.

Em sede recursal diante o Tribunal, a defesa questionou a capacidade instrutória do juiz para com o júri, uma vez que este não teria informado o conselho de sentença que o delito em análise dependia de intenção dolosa do acusado para que restasse configurado o crime. É dizer, contrário sensu, que a conduta errônea de que a conta do cliente possuía fundos no momento de emissão do cheque é irrelevante para o caso.

Ademais, segundo a decisão do pleno da corte diante o recurso, o proposito doloso poderia ser presumido de forma eventual caso o réu se mantenha “deliberadamente em estado de ignorância acerca da existência ou não de fundos na conta do cliente ou ainda que mostre indiferença crassa a respeito de seu dever de assegurar-se de tal circunstância”( 174 U.S. 728 (1899), p. 735.)[iv].

Apesar do excerto ter evidenciado o surgimento tímido da teoria na referida corte, no caso Spurr v. United States, o Tribunal Supremo reconheceu o recurso da defesa e entendeu que perante os princípios do direito estadunidense, realmente o júri não havia sido bem instruído pelo magistrado acerca das exigências para configuração do tipo penal in judice.

1.2 SISTEMÁTICA DA CIVIL LAW

Apesar de apresentar-se como uma teoria fundada no sistema da Common Law[v], a Teoria da Cegueira Deliberada já foi utilizada no sistema da Civil Law. Exempli gratia, é o famoso caso do Supremo Tribunal Espanhol (STE) que, para resolver um litígio envolvendo lavagem de dinheiro, aplicou a referida teoria. Malgrado o crime de lavagem de capitais, STE possui precedentes de aplicabilidade da teoria no âmbito do tráfico de drogas e receptação.

A primeira resolução envolvendo a teoria ocorreu na Segunda Câmara do Supremo Tribunal em caso ocorrido no ano 2000[vi], cuja sentença foi proferida pelo Relator Gimenez Garcia. No processo, avaliou-se à alegação de que um sujeito teria praticado o crime de receptação, por transportar quantias monetárias para um “paraíso fiscal”.

Em sua defesa, o autor do crime afirmou que não detinha conhecimento que essas quantidades se originaram do tráfico de drogas. A Câmara rebateu essa alegação por meio dos seguintes argumentos:

Na entrega do dinheiro para José J. Miguel, acompanharam-no Hebe e José J., que cobraram uma comissão de 4%. A Câmara extrai a conclusão de que José J. estava ciente de que o dinheiro veio do negócio de drogas - o que ele nega – de fatos tão óbvios quanto a quantidade que era muito importante e da natureza claramente clandestina das operações, de modo que quem se coloca em uma situação de ignorância deliberada, isto é, não querendo saber o que pode e deve ser conhecido, e no entanto, beneficia-se desta situação - pagou 4% da comissão, está assumindo e aceitando todas as possibilidades da origem do negócio em que participa e, portanto, deve responder por suas consequências.

Apesar da falta de clareza e exatidão do excerto acima, podemos extrair de sua exegese dois argumentos que correspondem ao elemento cognitivo e volitivo que, de acordo com a jurisprudência firmada, são necessários para sustentar a alegação de que alguém atua com dolo direto ou eventual para fraude

O primeiro é detectado com o julgamento que, por sua vez, determina o elemento cognitivo do dolo ao afirmar que o réu “sabia que o dinheiro estava vindo do negócio ilícito do tráfico de drogas”. Tal dedução é sustentada com base em dois sinais: a) O fato de que a quantidade de droga era muito significativa e; b) A natureza claramente clandestina das operações.

O segundo argumento diz respeito ao elemento volitivo de eventual má conduta do réu, vale dizer, este atou com assunção ou aceitação da origem ilícita do dinheiro transportado.

Essa extração interpretativa ocorre a partir de duas indicações: a) O fato de que o sujeito havia se colocado em uma situação de cegueira deliberada sobre a natureza do negócio e; b) Pelo fato de que vai se beneficiar economicamente a partir de tal situação[vii]. Não restam dúvidas de que está caracterizada a aplicabilidade da Cegueira Deliberada na Civil Law.

Outro precedente adveio com o caso STS 4.934/2012, julgado em 9 de julho de 2012, em que o Supremo Tribunal Espanhol utilizou a teoria, autorizando a aplicação do dolo eventual ao crime de lavagem de dinheiro[viii]. Ademais, restam configurados também os casos: STS 1637/99; 946/2002; 236/2003; 420/2003; 628/2003; 16/2009, etc.

Por fim, vale ressaltar que no ATS de 4-7-2002 argumentou-se que a cegueira deliberada era doutrina consolidada na Câmara Espanhola em relação aos casos que envolvam tráfico de drogas, em que o réu alega desconhecer o conteúdo de alguns contêineres que transporta. Segundo o Tribunal, esta abordagem é baseada na "teoria do assentimento", que vem centrar a essência da eventual fraude, cujo o agente embora não tenha conhecimento de todos os detalhes do ato criminoso ilegal em que ele está envolvido, ele assume eventual risco na medida em que ele aceita as consequências do ato ilícito.

1.3 PRECEDENTES BRASILEIROS

1.3.1 APELAÇÃO CRIMINAL ACR Nº 5520/CE

No tocante ao direito brasileiro, a Teoria da Cegueira Deliberada encontra respaldo mais precisamente nos crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens e Valores, previsto na Lei 9.613/98. A primeira grande manifestação ocorreu na Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, cuja relatoria foi do Desembargador Rogério Fialho Moreira.

O acórdão em questão analisou um dos casos mais emblemáticos do Brasil, em que gerentes de uma concessionária teriam alienado onze veículos aos indivíduos responsáveis pelo furto do Banco Central de Fortaleza, que pagaram o montante total das compras com dinheiro em espécie.

No caso, houve subtração de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais) do Banco Central da cidade de Fortaleza. Posteriormente ao ato, os assaltantes dirigiram-se à concessionária Brilhe Car e compararam onze veículos luxuosos para transportar os malotes de dinheiro de forma despercebida.

Ao aceitarem o pagamento em espécie, no valor de R$ 980.000,00 (novecentos e oitenta mil reais), por meio de notas de cinquenta reais, sem verificar sua origem e autenticidade, os dois gerentes foram condenados em primeira instância pela prática do crime previsto no artigo 1º, V e VII, §1º, I, e §2º, I e II, da Lei 9.613/98.

Na ocasião, o pretor entendeu que ambos agiram com dolo eventual ao ignorar deliberadamente a situação ilícita do dinheiro. O juiz ainda complementa dizendo que os vendedores optaram por se beneficiar daquela situação ao inserirem-se em circunstâncias “ignorantes” ante o fato ilícito.

Em sede recursal, a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a sentença condenatória do juízo monocrático e absolveu os acusados pela prática do crime de Lavagem de Capitais. Tal foi o entendimento da corte, conforme os dizeres do Des. Fed. Rogério Fialho Moreira:

Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willfull blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do § 2.º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso II do §§ 2º [...]. Aplicou, assim, a teoria da CEGUEIRA DELIBERADA ou de EVITAR A CONSCIÊNCIA (willfull blindness ou conscious avoidance doctrine), segundo a qual a ignorância deliberada equivale a dolo eventual, não se confundindo com a mera negligência (culpa consciente). [...] A sentença recorrida procura justificar a adequação daquela doutrina, originária das ostrich instructions (instruções do avestruz), utilizadas por tribunais norte-americanos, ao dolo eventual admitido no Código Penal brasileiro [...] entendo que a aplicação da teoria da cegueira deliberada depende da sua adequação ao ordenamento jurídico nacional. No caso concreto, pode ser perfeitamente adotada, desde que o tipo legal admita a punição a título de dolo eventual[ix].

Em suma, o tribunal entendeu que não havia elementos concretos na sentença de primeiro grau que comprovassem a real ciência dos acusados acerca da ilicitude dos valores por eles recebidos na compra dos automóveis, ciência esta indispensável para a configuração do crime de lavagem de dinheiro à margem da lei vigente na época[x].  

A 2ª Turma fundamentou-se, ainda, que a conduta descrita no tipo penal a qual se pretendia imputar aos gerentes não admitia o dolo eventual[xi] e que a condenação seria impossível uma vez que restou configurada a atipicidade formal da conduta, já que à época existia um rol numerus clausus de delitos na lei e o “furto” não se enquadrava.

Destarte, expôs-se de forma inequívoca a aplicação da teoria da cegueira deliberada quando permitida, ou seja, na ocasião em que o tipo legal admita a punição a título de dolo eventual.

2. DOLO

2.1 A EVOLUÇÃO DOGMÁTICA DO DOLO

O estudo da dogmática penal do dolo diante à cegueira deliberada imprescinde de um aparato histórico, filosófico e teórico. Para maior sustentabilidade argumentativa e enquadramento lógico-teórico, ter-se-á adiante uma análise da evolução epistemológica do dolo e do direito penal.

No final do século XIX diante do positivismo científico, houve a necessidade de se estruturar o Direito Penal em um método dotado de cientificidade que, por consequência, resultaria na segurança jurídica, de modo a evitar a arbitrariedade dos juízes pela construção sólida de uma teoria do delito. Foi a partir de então, que o conceito analítico do crime surgiu.

O primeiro deles foi o sistema clássico, criado no final do século XIX e início do século XX por Franz Von Liszt e Ernest Beling. Este sistema conceituava o crime como fato típico, ilícito e culpável. Porém os dois primeiros requisitos do crime, fato típico e ilícito, eram constituídos de aspectos puramente objetivos, e a culpabilidade, de aspectos subjetivos, quais sejam, dolo e culpa.

De maneira a corrigir algumas falhas do sistema clássico, emergiu o sistema neoclássico no início do século XX, inspirado no neokantismo. Os adeptos a esta corrente, como Edmund Mezger, admitiam que, excepcionalmente, o fato típico compunha-se de elementos subjetivos exigidos pelo tipo penal, como o fim especial de praticar determinadas condutas. A grande mudança deste sistema encontra-se no plano da culpabilidade, esta não era mais constituída somente de elementos subjetivos, passando a conter além do dolo e culpa, a exigibilidade de conduta diversa, inserida através da doutrina de Reinhar Frank.

Entre 1930 e 1960 o alemão Hans Welzel contribuiu para o direito penal de forma brilhante ao desenvolver a teoria finalista da ação. A visão auspiciosa de Welzel diante o subjetivismo do neokantismo, fez com que surgisse um novo movimento jurídico-penal que sustentasse a formulação de um conceito pré-jurídico acerca dos pressupostos do crime.

Para o jurista, não é o homem quem determina a ordem real dos acontecimentos, mas ele está inserido em tal ordem[xii]. Isso cria uma ideia lógica-objetiva dos fatos e não puramente subjetivista.

A nomenclatura do movimento se deve ao fato de que Welzel enxergou que os significados intrínsecos aos fatos procedem de tal forma que sempre estão guiados pelo objetivismo visado pelo ser, no caso, por sua finalidade humana. Com efeito, para Welzel, “ação humana é o exercício de sua atividade final. A ação é, portanto, um acontecer final e não puramente causal”.

A partir dessa teoria, adotou-se em demasia a concepção de que toda atividade humana é conscientemente dirigida a uma finalidade, enquanto o resultado ocorre em virtude das causas existentes desta intenção[xiii].

Dentre as contribuições mais marcantes, destaca-se o fato de o finalismo retirar os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade, deslocando assim, o dolo e a culpa para o fato típico. Nasce aqui, em verdade, uma verdadeira concepção puramente normativa da culpabilidade. Destarte, Hans Welzel afirma que a teoria finalista continua adotando como conceito de delito o fato típico, ilícito e culpável, com a ressalva que o dolo e a culpa fazem parte da conduta humana inserido no primeiro elemento, e não mais no último, além de que a culpabilidade decorre de pressuposto da sanção penal, e não estritamente do crime.

2.2 CONCEITO MODERNO

Dolo é a “consciência – livre - e a vontade – voluntária – de realização de uma conduta descrita em um tipo penal”[xiv]. O dolo é, portanto, uma coalisão dos elementos volitivo e cognitivo.

O elemento volitivo constitui na vontade do agente de realizar a conduta, comissiva ou omissiva, livre de qualquer vício que a macule ou a descaracterize.

Tal elemento pressupõe a previsão do ato, somente pode ser objeto da norma jurídica penal algo que o agente possa e queira realizar ou omitir. Dessa forma, a intenção puramente psicológica se completa com o nexo causal entre a vontade e a consciência da ação, o que leva ao resultado e a tipicidade.

O elemento cognitivo ou intelectual consiste na ciência do agente diante todos os elementos objetivos descritos na norma penal que configuram o ato criminoso. Essa consciência deve ser atual, isto é, deve estar presente concomitantemente no momento da ação.

Por fim, cumpre notar que a consciência do dolo não se confunde com a consciência de ilicitude presente na culpabilidade. Segundo Bustos Ramírez e Hormazábal Malarée "A exigência do conhecimento se cumpre quando o agente conhece a situação social objetiva, ainda que não saiba que essa situação social objetiva se encontra prevista dentro de um tipo penal"[xv].

3. O CÓDIGO PENAL E AS ESPÉCIES DE DOLO

O Código Penal Brasileiro conceituou o crime doloso como sendo aquele em que o agente quis o resultado danoso, ou ao menos assumiu o risco de produzi-lo.

Tal redação propiciou uma dicotomia ao recepcionar as teorias conceituais do dolo. Percebe-se de um lado, na primeira parte do artigo citado, que para o dolo direto adotou a teoria da vontade. Esta teoria, nas palavras de Carrara, explana que dolo é a vontade dirigida ao resultado. O agente age dolosamente tendo consciência do resultado almejado.

Por outro lado, na segunda parte do artigo, adotou para o dolo indireto a teoria do consentimento, uma vez que tal teoria traça que o agente assume o risco de produzir o resultado, representado como possível. Assumir é o mesmo que consentir ou aceitar a consequência prevista.

Doutrinariamente entende-se que o dolo direto se constitui de um único grau, ou seja, há dolo direto quando a vontade do agente é dirigida a um resultado, independentemente dos meios escolhidos. Bitencourt complementarmente entende que o dolo direto se subdivide em primeiro e segundo grau, sendo este a consecução necessária dos meios escolhidos para atingir o resultado.

 Exemplificativamente, se o indivíduo almeja eliminar uma determinada pessoa, porém para isso será necessário matar seu segurança particular, para Bitencourt, responderá a título de dolo direto em primeiro grau para com a vítima almejada e responderá a título de dolo direto de segundo grau com o segurança, uma vez que a morte deste era imprescindível para o resultado visado.

O dolo indireto se divide em dois, dolo eventual e dolo alternativo, este, porém, não convém dissertar pela falta de relação com o presente trabalho.

Há o dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir um determinado resultado. Não precisamente há finalidade de produzir um resultado penalmente ilícito, mas caso este sobrevenha, o agente não se importa já que, com seu comportamento anterior, anuiu com tal resultado.

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Para o direito penal, portanto, a conduta do agente tem maior relevância que o resultado tido como provável.

Ressalta-se que, nesta espécie de dolo também estão presentes seus dois elementos constitutivos, quais sejam, vontade e consciência. Porém, a vontade, no dolo eventual, é guiada pela conduta e não pelo resultado. Quem anui com o resultado é equiparado a quem quer, pois em ambos os casos, o bem jurídico protegido pela norma penal não tem importância para o agente que praticou o ilícito penal.

Faz-se mister demonstrar, pelas palavras de Damásio de Jesus, o modo de averiguação do dolo eventual, para que então, em um próximo tópico, possamos fazer a comparação deste com a teoria da cegueira deliberada:

O juiz, na investigação do dolo eventual, deve apreciar as circunstâncias do fato e não o buscar na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento. Daí valer-se dos chamados “indicadores objetivos”, dentre os quais incluem-se quatro de capital importância: 1.°) risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex.: a vida); 2.°) poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3.°) meios de execução empregados; e 4.°) desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico. Consciente do risco resultante da conduta, apresenta-se ao autor a opção de comportamento diverso. Prefere, porém, sem respeito à objetividade jurídica a ser exposta a perigo de dano, realizar a ação pretendida.

Por fim, haverá o crime culposo quando o ato criminoso decorrer da inobservância do dever objetivo de cuidado, manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, mas claramente previsível.

A culpa consciente é caracterizada por esta descrição somada à previsibilidade subjetiva do agente perante o resultado. Em outras palavras, o agente conhece a periculosidade da sua conduta, representa a produção do resultado como possível, mas age deixando de observar a diligência que estava obrigado, porque confia convictamente que ele não ocorrerá ou que pode ao menos evita-lo.

A distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente está na valoração que o agente faz sobre o bem jurídico protegido no âmbito penal. No primeiro caso, é indiferente para o agente que pratica o delito será haverá o resultado ou não. Contudo, para quem pratica a conduta com culpa consciente o bem jurídico tem relevância, já que sobrevindo o resultado, o agente deixaria de agir ou se omitir quando fosse obrigado por lei.

Nos ensinamentos do ilustre doutrinador Regis Prado:

No dolo eventual, o agente presta anuência, consente, concorda com o advento do resultado, preferindo a arriscar-se a produzi-lo a renunciar a ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agente afasta ou repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento e empreende a ação na esperança de que este não venha ocorrer - prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente. (...)

(...)O ponto nodal em matéria de dolo assenta no fato de que sempre há uma vontade de lesar determinado bem jurídico. Para afirmar-se a existência de dolo eventual é necessário que o autor tenha consciência de que com sua conduta pode efetivamente lesar ou pôr em perigo um bem jurídico e que atue com indiferença diante de tal possibilidade, de modo que implique a aceitação desse resultado.

Portanto, não se pode confundir dolo eventual com culpa consciente, já que se tratam de institutos diferentes e, uma vez averiguados de forma incorreta, pode-se levar a grandes injustiças sob a ótica processual penal. Trata-se de uma verificação minuciosa diante ao caso concreto que deverá ser realizada pelo pretor.

3.1 ENQUADRAMENTO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

De forma a responder a indagação elaborada na origem, fez-se necessária a explanação conceitual do dolo, ainda que de maneira simplificada e resumida. Como dito, a teoria da cegueira deliberada se materializa quando um agente ‘deliberadamente’ cria mecanismos externos que obstam sua plena consciência diante a consumação de um fato penalmente típico, para que assim, internamente possa ‘amenizar’ sua culpa diante os fatos, a fim de se beneficiar do ato ilícito praticado por terceiro.

A Teoria da Cegueira Deliberada, como salientado, obteve os seus primeiros passos na Inglaterra, no final do século XIX. Hoje, é possível visualizar sua forte aplicação nos Estados Unidos e o recente uso no Brasil nos casos do ‘Mensalão’ e na recente ‘Operação Lava-Jato’. No entanto, esta técnica, como se pode perceber é uma espécie de dolo eventual praticada na modalidade de conduta omissiva. Todos os requisitos do dolo eventual estão presentes, quais sejam, a consciência e a vontade, sendo esta, dirigida em relação a conduta omissiva.

Não se pode negar que o agente tinha consciência dos elementos objetivos do tipo penal que pratica, uma vez que possui a previsibilidade subjetiva e. mesmo assim optou por agir de maneira intencional criando meios que obstassem a sua plena consciência perante terceiros. Quem se mantêm na inércia de procurar a verdade dos fatos criminosos, quando se era obrigado a procurar, para de alguma forma auferir vantagem além de anuir e consentir com o resultado, deve responder igualmente pela atividade delituosa.

É de se observar-se que a presente teoria surgiu quando sequer o conceito analítico de crime existia. Não se tinha uma definição do que era delito. Não existia a concepção do dolo eventual, tal é o motivo pelo qual se faz mister tecer a tese do dolo no estudo da Cegueira Deliberada.

Defendemos o entendimento de que a Teoria da Cegueira Deliberada deva ser utilizada em nosso sistema jurídico, visto que este admite o dolo eventual em crimes omissivos. Destarte, é necessário que não reste dúvidas que a referida teoria possa ser aplicada ao caso concreto, uma vez que seu errôneo uso geraria uma insegurança jurídica com efeitos irreparáveis.

A fim de evitar incongruência no processo penal, salientamos que o erro de tipo, uma vez comprovado, exclui a aplicação desta tese defendida por nós.

Concluímos que o uso do direito comparado para civil law sempre foi de grande valia para o direito penal, contribuindo com uma verdadeira justiça que alcance a concretização dos direitos fundamentais. Importar a aplicabilidade da teoria em estudo já se mostrou eficiente no combate aos crimes organizados, políticos e patrimoniais no Brasil.

Seu uso, portanto, é imprescindível para um avanço da teoria geral do direito penal moderno, construindo assim um Estado Democrático de Direito velado nos pilares da modernidade e na efetivação dos dogmas principiológicos penais-constitucionais.

4. CONDUTAS PUNÍVEIS

Como retratado em momento anterior, a conduta se insere no fato típico diante a teoria geral do crime (sic). A conduta do agente ante o fato punível ocorre de duas maneiras, sendo comissivas ou omissivas, ou simplesmente, ação e omissão.

Quando o agente, através de uma ação, descumpre um mandamento contido na norma penal cujo qual o proibia de agir de determinada forma, recebe uma punição por ter infringido o preceito normativo. Ou seja, o sujeito age, quando na verdade deveria se omitir diante um fato. Destarte, a omissão ocorre de maneira oposta. As condutas omissivas desatendem mandamentos imperativos. O agente, obrigado por lei a agir, recebe a punição por se manter inerte diante um fato.

4.1 CRIMES OMISSIVOS

Para o estudo da cegueira deliberada a conduta que será estudada, será a praticada na forma omissiva. Esta pode ser própria e imprópria. A primeira modalidade se refere aos crimes com tipificação penal própria, prescindindo de norma de extensão. Caso o agente se abstenha de praticá-la, incorrerá nas sanções cominadas a tais tipos penais. São crimes formais e de mera conduta, que não necessitam da ocorrência do resultado e do nexo causal. Podem ser citados como exemplos os delitos tipificados nos artigos 135 e 269 do Código Penal.

Os crimes omissivos impróprios dependem de uma norma de extensão contida na parte geral do Código Penal, mais precisamente localizada em seu parágrafo 2º, art. 13. Neste caso, o agente é punido pelo resultado de um delito, cujo qual não deu causa, porém tinha o dever jurídico de tentar evitá-lo e, podendo fazer, nada fez.

O Código Penal embora tenha adotado a teoria naturalística do resultado, a qual o conceitua como consequência da conduta modificadora do mundo exterior, abre uma exceção nos crimes omissivos impróprios. Para estes, o CP adota a teoria normativa do resultado, a qual não o considera fruto de uma conduta modificadora do mundo exterior, e sim decorrência jurídica da omissão do agente.

Nestes casos, se o autor é enquadrado em uma das hipóteses do art.13, §2º e se omitiu quando poderia agir é equiparado como causador do resultado, presente o elemento subjetivo, quais sejam dolo ou culpa.

Nas palavras de Rogério Greco:

[...] nos crimes omissivos impróprios, considerados tipos abertos, não há prévia definição típica. É preciso que o julgador elabore um trabalho de adequação, situando a posição de garantidor do agente aos fatos ocorridos, considerando, ainda, a sua real possibilidade de agir. Não há, portanto, definição prévia alguma de condutas que se quer impor ao agente. [...]

[...] Enquanto nos crimes omissivos próprios a conduta prevista no tipo é negativa, ou seja, o tipo prevê uma inação, nos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão a conduta é positiva, isto é, comissiva, só que praticada via omissão do agente que, no caso concreto, tinha o dever de agir para evitar o resultado

Na composição do fato típico dos crimes materiais é imprescindível que além da conduta e da tipicidade, que hajam também o resultado e o nexo causal, diferentemente dos crimes formais e de mera conduta. Contudo, nos crimes omissivos impróprios, nos quais o resultado de um crime material é imposto ao omitente por uma norma de extensão, não se pode falar em nexo causal, uma vez que não se tem o resultado naturalístico e sim normativo extraído do dever jurídico de ação. Para Bitencourt, o correto é dizer, nestes casos, que ocorre o nexo de não impedimento.

Como dito anteriormente, a norma de extensão é extraída do art. 13, §2º, do CP, na seguinte redação:

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Na primeira hipótese tem-se o dever legal, o qual é decorrente de lei, como o dever de cuidar de um filho contido no art. 1.634, do Código Civil, o dever de preservação da ordem pública dos policiais extraído do art. 144, da CF/88, entre outros.

Na segunda hipótese, a responsabilização do resultado de um delito é imposta para quem assumiu a responsabilidade de evitar o resultado. Ou seja, aquele que se colocou na posição de garantidor por anuência voluntária, como a vizinha que aceita cuidar de uma criança enquanto o pai trabalha, mesmo que sem remuneração.

Como terceira e última hipótese, o Código Penal responsabiliza o agente que com má ingerência de seu comportamento anterior criou o risco do resultado. A título de exemplo, nas palavras de Rogério Greco, essa alternativa se encaixa no campista que não apaga a fogueira, após ter a utilizado, provocando em seguida, um incêndio. Ou ainda, segundo Damásio, do nadador que convida alguém para acompanhá-lo, e vendo aquele que este está se afogando nada faz.

Ressalta-se além disso, que o art. 13, §2º, do CP, compõe-se de dois requisitos, o dever e o poder de agir. Isto é, faz-se necessário um juízo da possibilidade de ação do agente diante cada caso, pois a ninguém se pode cobrar ato heroico.

4.1.1 CEGUEIRA DELIBERADA E A OMISSÃO IMPRÓPRIA

Como mencionado no item 2.4, a willfull blindness ficou conhecida como a teoria pela qual o agente, para se eximir de um delito e auferir vantagem com este, simula não enxergar a realidade dos fatos através da abstenção de seu comportamento, de maneira que possa alegar posteriormente que era alheio aos acontecimentos.

O ponto nodal da questão é a falta de consciência alegada pelo sujeito, a qual é inverídica, uma vez que o agente não está de fato ignorante à situação. Ao invés de procurar meios para obter elementos comprobatórios, o agente se abstém, pois, sabe que com esta inércia conseguirá alcançar o resultado almejado, que se materializa em qualquer espécie de vantagem ou na manutenção de uma situação conveniente, como exemplo, no recebimento de dinheiro ou na estabilidade de seu cargo.

Aquele que se abstêm, quando obrigado a agir, presumindo que com sua abstenção poderá gerar determinado resultado, o qual se beneficiará e ainda assim prefere continuar com a sua omissão, efetivamente anui e assume a ocorrência do resultado. Vale dizer, este conceito nada mais é do que o dolo eventual praticado na modalidade de conduta omissiva.

É neste cenário que sustentamos a aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada, a fim de defender os direitos coletivos e os anseios de uma população cansada das mazelas da justiça.

Conquanto, vale lembrar que o papel do jurista é o de aplicar a lei, sem desrespeitar o Poder Legislativo. Não corroboramos com a corrente pela qual sustenta a ideologia de uma justiça a qualquer custo, ainda que esta ponha em risco a segurança jurídica, princípio pelo qual temos o maior respeito.

Por conseguinte, contata-se que a teoria pode ser perfeitamente aplicada em nosso sistema da civil law, se respeitados os critérios de aplicação estabelecidos em nosso Código Penal. Sendo assim, para que alguém possa ser responsabilizado por cegar-se deliberadamente ao fato, tem que restar configurado o dolo eventual somado a conduta omissiva.

Como pode ser observado, a willfull blindness não é sinônimo de responsabilidade objetiva, uma vez que nada mais é do que o dolo eventual em sua modalidade de conduta omissiva, institutos estes plenamente permitidos em nosso sistema. De fato, é possível aliar a justiça com a segurança jurídica, sem que para isto tenhamos que suprimir os direitos individuais e coletivos dos indivíduos.

4.2 CONCURSO DE AGENTES

Dá-se a nomenclatura de concurso de pessoas quando o delito é realizado por mais de um agente, o qual poderá ser necessário ou eventual. Estará caracterizado o concurso necessário de pessoas sempre que o tipo penal exigir, para a configuração de um delito, a atuação de mais de uma pessoa, como por exemplo o crime de rixa do art. 137 do CP. 

Em contrapartida, no concurso eventual de pessoas, prescinde a necessidade de mais de um agente para a configuração da tipicidade, entretanto o crime é praticado por duas ou mais pessoas por vontade destas as quais se classificarão em coautores ou autor e partícipe.

Com a evolução do direito penal, ocorreu a divisão dos sujeitos que atuam em concurso de agentes diante um delito, classificando-se os sujeitos em autor ou partícipe. De tal forma, surgiu o questionamento sobre qual crime incidiria e em qual proporção para os sujeitos individualmente diante um determinado caso concreto.

O Código Penal brasileiro em seu art. 29, adotou, como regra, a teoria monista ou unitária, a qual determina a aplicação do mesmo tipo penal para os agentes (autores e partícipes), quando estes, atuando com diversidades de condutas, provocarem o mesmo resultado.

 Excepcionalmente nosso Código Penal adota a teoria pluralística, a qual determina que a pluralidade de agentes corresponde a pluralidade de crimes. São duas as hipóteses em que a exceção ocorrerá, quais sejam, quando o próprio tipo penal punir o partícipe em um delito autônomo, ou quando algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave que o(s) outro(s), como estabelecido no § 2º do art. 29. Em verdade, esta reserva tem o fim de evitar responsabilidades penais objetivas.

No que tange a conceituação de autor, o Código Penal adotou a teoria restritiva, embora tenha acolhido a teoria unitária no enquadramento do tipo penal. A teoria restritiva divide os sujeitos do crime em autores e partícipes, a depender da conduta realizada por estes. Será autor, segundo critérios objetivo-formal, aquele que praticar o verbo núcleo do tipo penal, ou seja, aquele que praticar a conduta típica. Em contraposto, será participe, aquele que não pratica o verbo núcleo do tipo, mas que induz ou instiga ou auxilia materialmente o autor do delito.

Malgrado este conceito satisfazer grande parte dos delitos, apresenta pontos falhos, uma vez que considera mero partícipe o agente que executa o fato utilizando outrem como instrumento (autor mediato), bem como, trata como tal, o sujeito pelo qual emite ordem para que se concretize a realização de um delito, tendo o aparato organizado de poder.

É neste cenário que emerge a teoria do domínio do fato[xvi] com o objetivo de complementar o conceito restritivo de autor. A teoria traga que é autor todo aquele que: a) realizar por mãos próprias a conduta típica; b) realizar o fato através de outrem como instrumento - autor mediato; c) realizar parte necessária de um plano global, exercendo sobre ele o domínio funcional do fato, diante de um aparato organizado de poder - coautoria[xvii].

Vale dizer, esta teoria só é passível de ser aplicada em crimes dolosos e comissivos, uma vez que para ser caracterizada é necessário que o autor tenha domínio do fato, o qual obrigatoriamente necessita dos elementos constitutivos do dolo. Ademais, no que tange aos crimes omissivos, faz-se necessário a transcrição do trecho do livro de Damásio Jesus, o qual explica didaticamente a questão posta:

Na omissão, autor direto ou material é quem, tendo dever de agir para evitar um resultado jurídico, deixa de realizar a exigida conduta impeditiva, não havendo necessidade de a imputação socorrer-se da teoria do domínio do fato. Tratando-se de crime próprio, não é admissível coautoria, uma vez que os omitentes, possuindo a qualificação jurídica exigida pelo tipo, são autores, mas não coautores.

Forçoso, portanto, a conclusão de que a teoria da cegueira deliberada também não admite a coautoria, uma vez que necessita para sua configuração da conduta omissiva imprópria. Não obstante, a participação é plenamente possível, contanto que seja por via comissiva.

A teoria do domínio do fato possui a função primordial de cumprir as lacunas deixadas na definição de autor no concurso de pessoas, utilizando-se do critério objetivo-subjetivo, o qual leva em consideração não só quem executa o verbo núcleo do tipo, como também a importância material da parte que cada integrante assume no fato, ou seja, se realiza a pratica de uma conduta relevante para o direito penal ainda que não execute diretamente o verbo descrito no tipo incriminador.

Tem-se como partidários doutrinário desta teoria grandes juristas, tais como: Damásio E. de Jesus, Hans Welzel, Stratenwerth, Maurach, Wessels, Roxin, Schröder, Jescheck, Gallas, Blei, Zaffaroni, Muñoz Conde, Córdoba Roda, Rodriguez Devesa, Mir Puig, Bacigalupo, Enrique Cury e Bockelman, Manoel Pedro Pimentel, Alberto Silva Franco, Nilo Batista, Luis Régis Prado, Cezar Bitencourt, Pierangeli e Luiz Flávio Gomes[xviii].

O cenário nem sempre foi favorável à teoria. Ao ser defendida no Brasil, muito se falava que o domínio do fato era em verdade uma espécie de responsabilização penal objetiva. Tal ponderação equivocada caiu em ostracismo à medida que a teoria do domínio do fato passou a ser estudada e aplicada corretamente, conforme os verdadeiros parâmetros indicados pelo professor Claus Roxin.

Concluiu-se que a teoria do domínio do fato veio para corroborar o princípio constitucional da individualização da pena e suprir lacunas deixadas pelo conceito restritivo de autor.

Por conseguinte, faz-se imprescindível a correlação que a teoria do domínio do fato tem com a cegueira deliberada. É certo que são institutos diferentes e inconfundíveis, visto que a primeira se insere no concurso de pessoas ao definir o que venha ser autor, ao passo que a segunda se refere a aferição da conduta do agente.

Pois bem, ao discorrermos, em apertada síntese, o que venha a ser a teoria do domínio do fato, extraímos pontos pelos quais a fizeram se solidificar em nossa jurisprudência. Dentre estes, podemos destacar seu critério objetivo-subjetivo, o qual provou que a utilização de critérios puramente objetivos ou puramente subjetivos não são suficientemente satisfatórios.

Igualmente a teoria da cegueira deliberada utiliza-se do critério objetivo-subjetivo para a averiguação do dolo eventual em crimes omissivos impróprios, posto que não é um conceito fechado, dependendo das circunstâncias do fato. A característica que o sujeito possui, bem como o cargo que exerce, não farão com que ele seja responsabilizado por um delito, mas somente se constatados o dolo eventual somado a sua conduta omissiva imprópria com o fim de auferir qualquer vantagem, é que se permitirá a responsabilização penal do sujeito. A ausência de um dos requisitos expostos descaracteriza a teoria, e frise-se que desta forma não pactuamos, porquanto estaríamos diante da responsabilidade penal objetiva.

O objetivo de alcançar uma justiça a qualquer custo, mesmo que para isto tenha-se que atropelar e denigrir direitos fundamentais, representa o retrocesso jurídico. A Teoria da Cegueira Deliberada encontra parâmetro na própria Constituição Federal, sendo dotada de estrita legalidade, legitimidade e constitucionalidade, como se verá diante.

5. CONSTITUCIONALIDADE DA TEORIA

Sob o ponto de vista da constitucionalidade da teoria, há diversos argumentos contrários à sua aplicabilidade. Dentre os quais, prepondera a ideia de que a cegueira deliberada não encontra amparo nos princípios constitucionais.

Por vezes, ao buscar a compreensão do ordenamento jurídico pátrio, o intérprete se depara com hermenêuticas que limitam a aplicação de determinados institutos. Isso ocorre pelo recorrente medo de fossilizar o sistema jurídico ou de gerar insegurança ao sistema.

Neste ponto do presente artigo, trabalharemos a exposição de fatos e direitos que se contrapõem aos argumentos anti-teoria da cegueira deliberada. Para tanto, vemos como necessária a explicitação de algumas observações penais-filosóficas quanto ao assunto.

Por não estar expressa em nosso ordenamento jurídico, a cegueira deliberada se constitui como teoria estrangeira a ser interpretada, limitada e guiada pelo pretor conforme os preceitos da Constituição. É certo salientar também que, uma vez transportada para o sistema positivista, surgem outros obstáculos normativos-dogmáticos, sobretudo na perspectiva da teoria geral do crime, a qual prevalece ser de base finalista.

É de grande relevância para o estudo, relembrar uma breve distinção entre norma e texto normativo, a fim de levar à distinção entre princípios e regras constitucionais.

Na concepção de Humberto Ávila:

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto de interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte[xix].

Deste modo, texto normativo e norma não são equivalentes. Haverá casos em que diante a interpretação do texto constitucional é que se aduzirão normas. Destas é que se produzirão princípios ou regras a serem seguidas. Os princípios em nossa Constituição são encontrados de forma explicita ou implícita. Em verdade, a diferença é pouca, já que basta sua existência e validade para que seja eficaz.

É desta forma que a cegueira deliberada se instala em nosso ordenamento. Sua base é guiada por princípios que visam a justiça, a verdade real tão almejada pelo direito penal finalista, a fim de garantir veracidade nos julgamentos e eficiência nas normas cominatórias de sanções.

O processo penal não se conforma com ilações fictícias ou afastadas da realidade. O magistrado pauta o seu trabalho na reconstrução da verdade dos fatos, superando eventual desídia das partes na colheita probatória, como forma de exarar um provimento jurisdicional mais próximo possível do ideal de justiça, criando a própria cognição originária do assunto.

Dentre o emaranhado probatório da persecução penal, encontra-se o princípio derivado da Constituição que mais aproxima a Cegueira Deliberada de seu caráter constitucional. Qual seja: a verdade real.

É de se observar que a verdade real ou substancial (566 CPP) pode se revelar inatingível. Aduzimos tal ‘intangibilidade’ da essência dos procedimentos processuais penais, uma vez que ao buscar a verdade real, a teoria em estudo visa a materialização formal daquilo que se verifica ter ocorrido, garantindo-se a substancialidade da verdade no processo.

Por exemplo, o art. 5º, LVI da CF e seu equiparado art. 157, CPP estabelecem disposições sobre provas ilícitas, tragando a limitação da verdade real e prescrevendo a inadmissibilidade de provas inverossímeis e ilícitas ao processo. Não se vê qualquer vedação ao uso dos métodos da Cegueira Deliberada ante o processo, o que permite sua aplicabilidade para atingir a verdade real e a justiça social-retributiva.

Contudo, respeitamos os posicionamentos contrários que malogram o entendimento de que o instituto em questão avilta outros princípios impostos em nossa Carta Maior. Isto é, traga um real conflito principiológico.

A individualização da pena guarda especial peculiaridade com a Teoria da Cegueira Deliberada. Muito se diz que há mácula ao princípio, já que estaria transpassando-se da pessoa do condenado para além, um terceiro que ‘não possuía conhecimento da ilicitude’, não sendo, portanto, culpável à luz do Código Penal.

Discordamos à medida que há sim culpa lato sensu do ‘terceiro’, uma vez que se há omissão diante um fato criminoso com a finalidade de atingir um benefício. Desta forma, há uma verdadeira autoria/participação ao crime cometido, lesando-se a objetividade jurídica e permitindo-se a aplicação da pena ao indivíduo que se cegou deliberadamente.

Corolário ao discorrido há o princípio da proporcionalidade que, por óbvio, guarda estreita relação com a Cegueira Deliberada. A teoria deve ser aplicada com cuidados, não permitindo excessos ou discrepâncias por mera deliberação do aplicador da pena.

O Direito Penal moderno se assenta em determinados princípios fundamentais, próprios do Estado Democrático de Direito, entre os quais sobreleva o da legalidade, expresso no art. 5º, XXXIX, da CF; Segundo Teles (2003, p. 58), “é o mais importante do Direito Penal, a base, a viga mestra, o pilar que sustenta toda a ordem jurídico-penal”.

Contudo, malgrado o sentido jurídico-legalista do princípio, vemos seu lado político. O princípio da legalidade ou reserva legal, apresenta um anteparo de liberdade individual em face da expansiva autoridade do Estado, malogrando um avanço que o direito positivo não acompanha. É a fórmula explicita que une direitos fundamentais, punição proporcional e justa com a legalidade fria do ordenamento jurídico.

Desta forma, extrai-se que somente é possível aceitar como legítima a imposição de uma pena, ou melhor, só se reconhece como crime determinada conduta, se houver prévia determinação, sendo para tanto necessária uma análise jurídica e política do ato, evitando-se interpretações restritivas ou extensivas que obstem direitos fundamentais.

É justamente nesse basilar que a Cegueira Deliberada atua ao exercer um expansionismo penal que se coaduna com a letre da lei e com a política penal moderna, não limitando-se aos dizeres impositivos do Estado. A base da teoria é enraizada tanto na common law e o liberalismo do Estado, bem como com os dizeres juspositivistas da civil law.

Registre-se, ainda, que o postulado da legalidade com a Cegueira Deliberada dá ao direito penal uma função de garantia e segurança jurídica, posto que tornando certos o delito e a pena, asseguram ao cidadão que só por aqueles fatos previamente definidos como delituosos, e naquelas penas previamente fixadas pode ser processado e condenado. Eliminando, dessa forma, a responsabilidade penal objetiva ou incerta.

Portanto, princípios, como bem leciona a doutrina constitucional moderna, não se anulam, mas se contrapõem. Essa sutil diferença morfológica permite que, com base no princípio da proporcionalidade, aquele princípio que for sobrelevado, não estará inutilizando a incidência do outro princípio, uma vez que este poderá incidir em outros casos concretos.

Assim o princípio pormenorizado não prevalecerá neste caso específico, entretanto, permanece válido e vigente a fim de que possa incidir nos demais casos[xx]. Há uma verdadeira ponderação de direitos, uma razoabilidade invocada pelo juiz a fim de dirimir eventuais teratologias jurídicas.

Essa explicação é usada por nós como base para sustentar que a cegueira deliberada é constituída de constitucionalidade e revestida de proteção em nosso ordenamento jurídico.

Destarte, sua contraposição com outros dogmas do direito pátrio é necessária para que haja ponderabilidade entre o direito penal e a constituição, a fim de garantir eficiência e segurança jurídica aos institutos mais delicados como a teoria em análise.

5.1 RÉGIS PRADO E A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA

Como dito, a aplicação de qualquer instituto jurídico de origem estrangeira em nosso ordenamento requer cautela, a fim de afastar qualquer hermenêutica diletante ou de ocasião, que causariam uma verdadeira “improbidade epistêmica” e normatização judicial descabida, com afronta ao princípio da legalidade e demais garantias penais conquistadas à luz do Estado de Direito.

Mas não é só. Para parcela da doutrina, como dito, a cegueira deliberada é uma ampliação da “actio libera in causa”, perfazendo um modelo de responsabilidade objetiva à luz do direito penal do autor, pois o agente que recebe, adquire ou oculta o bem atuaria sem consciência e vontade para a prática delituosa.

Dentre os mais consagrados juristas penalistas do Brasil, Regis Prado é ferrenho opositor à cegueira deliberada. Dita o ilustre jurista que essa teoria é um “elemento estranho” que gera risco à segurança jurídica e à legalidade penal.

Complementa:

Isso porque é absolutamente impositivo ter-se em conta que o ordenamento jurídico brasileiro está assentado sobre o princípio da responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (artigo 18, CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo. Neste último caso, sua aplicação dá lugar a uma normatização judicial indevida, e ao arrepio da Constituição[xxi] .

Em estrito respeito ao ilustre autor, discordamos de seu entendimento. Como exemplificado, de fato rechaçamos a autoridade de uma responsabilidade penal objetiva que crie obstáculos ao processo penal e à Constituição. Todavia, como consagrado nos dispositivos legais e pacificado em doutrina, aplicar a omissão imprópria à título de eventualidade no dolo, é uma das hipóteses de enquadramento penal perfeitamente cabível.

A Teoria da Cegueira Deliberada atua justamente neste último paradigma citado. Não há quaisquer individualizações de autores que permita um ‘direito penal do inimigo’. Essa imagem deturpada é, por vezes, criada pelo julgamento midiático. Em verdade, são esses julgamentos que, de forma indireta, a Cegueira Deliberada visa eliminar e evitar.

O garantismo penal guarda estreito laço com a responsabilidade subjetiva. Não é punindo-se ao aleatório e em desrespeito ao ordenamento jurídico que o direito penal irá evoluir, mas sim com estudos, aplicabilidades de teorias que unam o Direito, hermenêutica e a sociedade. É nesta senda de garantismo, legalidade e de responsabilidade subjetiva que a Cegueira Deliberada alcança efetividade, como já visto nos casos do Mensalão e Lava-Jato.

Outro argumento contrário salienta que o instituto em tela, oblitera os princípios da lesividade e da ofensividade, uma vez que criminaliza condutas meramente morais, inadequadas socialmente e que são objetos da justiça social e não retributiva. De fato, entendemos diferente. Ao invés de contrapontos, há corolários de um ato ao outro.

Quando a sociedade anseia por mudanças, clamando por uma justiça social, é que o direito se materializa na resolução dos litígios pela ordem Legal. Neste ponto, ao invés de deixar a moral social à frente do Direito, há uma coalização de objetivos, atingindo-se o bem comum ao usar de um instituto derivado da common law em proveito da sociedade massificada na civil law.

A ideia de um ‘julgamento moral’, pautado nas mazelas de um sistema punitivista, decorre da própria imposição midiática que sustenta o teor de que o direito penal hoje é um direito penal do autor, persecutório de ética e moral, havendo ferimento aos princípios da adequação social e da intervenção mínima “ultima ratio legis”.

Ainda agindo em contrapartida ao pregado por Régis Prado e pela mídia, a Cegueira Deliberada corrobora com a imparcialidade do juiz, uma vez que permite ao pretor realizar um julgamento justo, pautado na sistemática de prova, sem que para isso haja máculas à sua cognição com o processo e o réu.

Por fim, ressaltamos o desprezo à responsabilidade penal objetiva e registramos a necessidade de garantir a segurança jurídica ao processo penal, realizando-se um conjunto probatório isento de disfunções, procedido de sentença motivada e de forma fundamentada e originária, conforme o preceito constitucional contido no art. 93, IX da CF.

6. CONCLUSÃO

Originária das terras anglo-saxônicas e do sistema jurídico da common law, sobretudo na Inglaterra em sentença datada de 1861, no caso Regina v. Sleep, a teoria da cegueira deliberada (willfull blindness) ganha visibilidade no Brasil com o julgamento da Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, cuja relatoria foi do Desembargador Rogério Fialho Moreira. Desde então, tal teoria vem criando adeptos e opositores no meio social e jurídico. Afinal, estaria a responsabilidade penal objetiva sendo aceita no Brasil?

Diante o âmbito social da teoria, há aqueles que se posicionam favoráveis à sua aplicação, para maior sustentabilidade da tese, esse grupo baseia-se na vontade de alcançar um verdadeiro conceito de justiça social. Corroboramos com esse pensamento, acrescentando que o uso da cegueira deliberada cria um vínculo com a obra Ética e Nicômaco de Aristóteles, uma vez que, verdadeiramente, estaríamos aliando a justiça substancial com a justiça convencional, valores estes tão perdidos e confusos no panorama jurídico-político atual do Brasil.

Por outro lado, a teoria cria opositores da “massa”. Para este grupo surge um verdadeiro juiz-estado e que por sua vez estaria utilizando o direito penal do autor para criar tribunais políticos. Em suma, a ideologia de uma massa alienada, vendida aos dizeres da mídia coaduna-se com um argumento puramente político e partidário que vem obstando o caminho da justiça social. A tese contrária à teoria da cegueira deliberada apresenta no âmbito social uma verdadeira ideologia partidária, que, para nós, em um estado democrático de direito, se faz atrasada e vencida.

Em nosso atual panorama político, vê-se que os indivíduos presam por uma moral, ou seja, um verdadeiro elemento cultural-social que converge à justiça. É com esse rigor sociológico que sustentamos a aplicabilidade da teoria da cegueira deliberada em seu âmbito social, a fim de defender os direitos coletivos e os anseios de uma população cansada das mazelas da justiça. Por outro lado, para os opositores, vê-se um verdadeiro egoísmo, um falso convencimento ideológico que se confunde com a ética do ser. Argumento este que é insustentável em um período de conflitos e transições.Em nosso entendimento, tal conflito social pode ser respondido por uma análise sociológica.

Na atualidade de antagonismos éticos e transições culturais que vivemos, deixar-se levar por mera convicção ética-ideológica acaba por colocar em risco todo equilíbrio social e a própria justiça em si. Sem a teoria da cegueira deliberada, inúmeras condutas contrárias ao ordenamento penal e à sociedade sequer seriam analisadas, o que repercutiria em impunidade, ferindo além dos preceitos jurídicos expressos, os também implícitos, tal qual adequação social de uma conduta que por si só é tão importante quanto a mera exposição de um crime no código penal.

Em um país pluricultural que ainda sofre com os pesares da alienação estatal diante os hipossuficientes, nada mais difícil do que a incessante cruzada do direito penal em lograr-se para um direito de equilíbrio, proporcional e que atenda, a um só tempo, os anseios de todos. Diante disso, a cegueira deliberada se propõe a dar causa e efeito aos conceitos de justiça ao se lançar como mecanismo de resolução dos crimes políticos, e em alguns casos, como abordado no trabalho, aos crimes de tráfico.

Debatida a questão social e ideológica, coloca-se outro empecilho no tortuoso caminho de aplicação da cegueira deliberada. Tal é a juridicidade. Em outras palavras, o formalismo positivo e rigoroso de nossa civil law. Não obstante, é também um empecilho na aplicação da teoria, o excesso de conservadores disfarçados de “cientistas políticos neoconstitucionalistas” ou de “doutrinadores penais-constitucionais”.

Ora, não nos parece correto que um “jurista” moderno – cujo objetivo é defender a ordem democrática - aceite cegamente os dogmas de um ordenamento apenas por mera expressão literal dos fatos, sem ao menos realizar um juízo de valores sociais.

Quando uma nova teoria como a da cegueira deliberada emerge e vai de encontro aos interesses pessoais de uma classe massivamente política - porém, disfarçada de jurídica - os mesmos socorrem-se do próprio direito positivado para sustentar a impossibilidade de sua aplicação, mesmo que contrária à adequação social do direito, ou seja, criticam e se opõem à teoria utilizando, para tal, argumentos ideológicos e políticos maquiados de tecnicismo jurídico-positivo.

Diante do excerto, percebe-se que há aqueles doutrinadores e juristas que acreditam que a teoria da cegueira deliberada se trata de uma afronta ao direito brasileiro, para tanto, admitem que a teoria em questão seja uma verdadeira responsabilidade penal objetiva, como é o caso do doutrinador penal Régis Prado.

Para este, a teoria deveria ser expurgada no âmbito prático do direito brasileiro. Como evidenciado no trabalho, discordarmos de tal afirmação. Afinal, seria aplicada ao indivíduo uma pena proporcional e individualizada, ou seja, o indivíduo que de fato desconfia de uma prática criminosa, mas coloca-se em posição de desconhecimento para beneficiar-se daquele ato, seria punido a título de dolo eventual e não meramente por presunção. Acreditamos que a teoria é uma espécie sui generis do dolo eventual, podendo sim ser aplicada em nosso país, mesmo que adotemos o sistema jurídico romano-germânico, in verbis, civil law.

Em face do dolo eventual é importante caracterizar, como exposto no trabalho que são necessários dois requisitos para sua averiguação: a) potencial consciência de ilicitude do ato; b) assunção do risco de produzir o resultado ilícito, o qual é equiparado ao elemento volitivo.

Na Teoria da Cegueira Deliberada embora o agente por vezes não saiba em qual tipo legal penal esteja inserido, tem plena consciência de que seu ato se trata de um ilícito penal, pois há meios objetivos e concretos para que o homem médio chegue a esta conclusão. O agente, também, tem plena consciência que se encaixa na subsunção legal, o que descaracteriza qualquer semelhança ao erro de tipo.

Há ainda a assunção de produção do resultado, uma vez que o agente conscientemente prevê as vantagens que advirá com a conduta. Como dito, em verdade, a vantagem que extrair com o ato criminoso tem maior valor pessoal do que o resultado que venha causar efetivamente.

Como forma de corroborar nosso entendimento de que da teoria da cegueira deliberada está diretamente ligada ao dolo eventual, não restando dúvidas que aquela não se trata, portanto, de responsabilidade penal objetiva, utilizamos para isto, a Teoria do domínio do fato, o art. 239 do Código de Processo Penal e a Teoria da Abdução.

Na teoria do domínio do fato, cuja função primordial é cumprir as lacunas deixadas na definição de autor no concurso de pessoas, vimos que o critério puramente objetivo (conceito restritivo de autor) e a critério puramente subjetivo (conceito extensivo de autor) não consegue abarcar todos os tipos de autoria, como a mediata, a funcional e a intelectual, resultando em recorrentes injustiças.

A teoria do domínio do fato, introduzida por Hans Welzel, em 1939, na mesma época em que introduziu o finalismo, complementa o conceito restritivo de autor adotado pelo Código Penal em seu art. 29. Esta teoria utiliza o critério objetivo-subjetivo, o qual leva em consideração não só a finalidade - à vontade do agente - como também a importância material da parte que cada integrante assume no fato, ou seja, se realiza a pratica de uma conduta relevante para o direito penal ainda que não execute diretamente o verbo descrito no tipo incriminador.

Desta forma a teoria do domínio do fato vem para consubstanciar a teoria da cegueira deliberada. Não aplicar esta teoria seria o mesmo que rechaçar o princípio constitucional da individualização da pena e ignorar a introdução do finalismo na ação adotado por nosso sistema normativo.

Assim, como a teoria do domínio do fato, a teoria da cegueira deliberada utiliza critérios objetivo-subjetivos para a averiguação do dolo eventual. Não é um conceito fechado, depende das circunstâncias do fato e, estas poderão ser utilizadas como provas para a conclusão de uma decisão condenatória.

O atual Código de Processo Penal, em seu art. 239, admite a utilização de provas indiciárias, também chamadas de circunstanciais, como meios de comprovação capazes de possuírem força probatória suficiente para fundamentar uma decisão através do método “indutivo-dedutivo”. Equipara-se, assim, o valor de provas indiretas ao valor de provas diretas. Conceitos estes, semelhantes à teoria da abdução e que claramente são capazes de fundamentar o dolo eventual na teoria da cegueira deliberada.

Portanto, a teoria da cegueira deliberada condiz com a Constituição Federal, com o sistema penal vigente e com as teorias como a do domínio do fato, a finalista da ação e com nosso Código de Processo Penal. Não se trata, pois, de ferir o princípio da legis scripta ou da máxima nullum crimen, nulla poena sine lege, muito pelo ao contrário, busca-se a efetiva aplicação da lei aliada a princípios constitucionais e a justiça substancial. Afastar a incidência de posicionamentos políticos-ideológicos contrários é de suma importância para que a teoria ganhe espaço e possa efetivamente ser aplicada no Brasil a fim de garantir o Estado Democrático de Direito.

Sobre os autores
Paulo José Freire Teotônio

Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP - turma de 1990), Pós-graduado (especialização) pela Faculdade de Direito Municipal de Franca. Mestre pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP-SP). Foi Coordenador dos Cursos de Direito das Faculdades Unificadas de Barretos (UNIFEB) e do Instituto Municipal de Ensino de Bebedouro (IMESB-VC). Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, na Comarca de Ribeirão Preto, atuando junto ao Jecrim, ministrando aulas no Curso de Direito das Faculdades ESTÁCIO-UNISEB e UNAERP.

Gabriel Vinicius de Souza

Acadêmico de Direito da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Orientador de Iniciação Científica na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Pesquisador científico pelo Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Vice-Presidente do Centro Acadêmico 1º de Setembro Laudo de Camargo – CALAUD. Representante do curso de Direto da Faculdade Laudo de Camargo no Colegiado Geral de Universidades. Ex-estagiário da Câmara Municipal. Ex-estagiário do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. Servidor Público por equiparação na 1ª Vara de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça, na comarca de Ribeirão Preto – SP. Coordenador de grupos de estudos, aulas extras e projetos de extensão.

Patrícia Kelly Rocha

Pesquisadora e estudante de direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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