Diferenças entre iatrogenia e erro médico sob a perspectiva da responsabilidade civil

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A DIFERENÇA CONCEITUAL ENTRE IATROGENIA E ERRO MÉDICO COMO ELEMENTO CARACTERIZADOR PARA SE DEFINIR SE HÁ OU NÃO OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO CIVIL PELO MÉDICO.

 

RESUMO

Os séculos XX e XXI propiciaram importantes evoluções sociais na humanidade, em especial na relação médico-paciente. Estas alterações provocaram uma mudança comportamental, no paciente e seus familiares, os quais passaram a visualizar este relacionamento como uma relação de consumo. Várias foram às implicações ocasionadas por essa transformação de conduta, especialmente o entendimento de acionar o poder justiça do Estado quando os resultados atingidos divergiam do inicialmente esperado. Esse entendimento ocasionou um vertiginoso aumento no número de ações judicial, nas quais se buscam a solução de um conflito originado na relação médico-paciente. Baseado nesse aumento, e tendo por referência a diferenciação entre a iatrogenia e o erro médico, estudaremos os elementos jurídicos, com ênfase na responsabilidade civil, que compõem a relação médico-paciente e, a partir de então, buscaremos definir quando ao médico deverá ser imputada a necessidade de reparar o paciente pelo resultado divergente do esperado e, quando esse resultado não desencadeará a necessidade de reparação civil, uma vez que o ato ilícito não ficou configurado. 

Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Iatrogenia. Erro Médico. Profissionais da Medicina.

 

ABSTRACT

The twentieth and twenty-first centuries have led to important social developments in humanity, especially in the doctor-patient relationship. These changes led to a behavioral change in the patient and his family members, who began to see this relationship as a relation of consumption. There were several implications of this transformation of conduct, especially the understanding of triggering the State's power of justice when the results achieved diverged from what was initially expected. This understanding led to a vertiginous increase in the number of judicial actions, in which the resolution of a conflict originated in the doctor-patient relationship is sought. Based on this increase, and with reference to the differentiation between iatrogeny and medical error, we will study the legal elements, with emphasis on civil liability, that make up the physician-patient relationship and, from then on, we will try to define when the physician should be imputed the need to repair the patient for the result divergent than expected, and when this result will not trigger the need for civil reparation, since the wrongdoing was not configured.

Keywords: Civil responsability. Iatrogeny. Medical error. Medical Professionals.

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva abordar a área jurídica dos serviços prestados pelos profissionais da medicina, com ênfase na diferenciação entre iatrogenia e erro médico, bem como as possibilidades de imputação da responsabilidade civil para estes atos médicos.

A problemática central desse artigo, isto é, deverá o médico ser responsabilizado civilmente toda vez que o resultado alcançado, por seus atos, divergir do esperado pelo paciente e/ou seus familiares? A abordagem teórica dispõe ainda da explanação acerca do conceito de iatrogenia segundo doutrinadores das ciências médica e jurídicas, como por exemplo: Stoco (2004), Carvalho (2013), Moraes (2002), entre outros. Em seguida, foram exibidos os elementos caracterizados da iatrogenia, a diferença entre o dano iatrogênico e o dano por erro médico, as implicações jurídicas de cada um deles e outros tipos de erros existentes na área médica. Para finalizar, apresentamos a jurisprudência dos tribunais brasileiros sobre a matéria.

Na conclusão, reforçamos as principais diferenças entre a iatrogenia e o erro médico, especialmente sob o enfoque da responsabilidade civil, com o intuito de que esse sistema imponha aos profissionais médicos desestímulo a adoção de condutas inadequadas, sem, no entanto, criar mecanismos que acabem por tolher a capacidade desses profissionais em ousar e labutar dentro de limites aceitáveis, objetivando métodos alternativos, quando os tradicionais não se mostrarem eficazes.

2 IATROGENIA E ERRO MÉDICO: DIERENÇAS E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS

2.1 A IATROGENIA COMO CONCEITO.

Segundo Lacaz (1980, p. 4) “Iatrogenia é o mal que vem da tentativa de salvação”. Destarte, podemos inferir desse conceito que, para o autor, caso ocorra algum mal durante o tratamento de um paciente, e desde que este tenha origem em uma tentativa de salvação, estaremos diante de uma situação caracterizada como iatrogenia.

Para Riú (1981, p.50), a iatrogenia é uma “síndrome não punível, caracterizada por um dano inculpável, no corpo ou na saúde do paciente, consequentemente de uma aplicação terapêutica, isenta de responsabilidade profissional”. Esse entendimento vai ao encontro do conceito adotado pela medicina moderna, haja vista que, para essa corrente da medicina, a obrigação do médico é cuidar da saúde do paciente, fazendo uso das técnicas apropriadas. Desse modo, o profissional da saúde assume uma obrigação de meio.

Consoante Moraes (2003, p.489), a palavra iatrogenia tem origem nas expressões gregas iatrós e génos. A primeira faz referência aos profissionais da medicina, enquanto a segunda está relacionada à origem ou geração de determinada doença ou lesão. Logo, da junção dessas duas expressões podemos inferir que a palavra iatrogenia é utilizada para indicar lesões ou doenças ocasionadas por um médico no exercício da sua profissão.

Informa Carvalho (2009, p.4) que:

As enciclopédias e dicionários médicos, de forma diversa, referem-se ao termo iatrogenia como sendo um estado anormal ou condição causada pelo médico, quando produz ansiedade ou neurose por afirmativas não judiciosas; produção ou indução de qualquer modificação nociva na condição psíquica ou somática de um paciente por meio de palavras ou ações do médico; alterações na saúde de um paciente surgidas como consequências do uso de certos medicamentos indicados pelo terapeuta; a provocação de problemas adicionais ou complicações resultantes do tratamento de um clínico ou cirurgião.

Para Gonçalves (2014, p.344), “a iatrogenia, expressão usada para indicar o dano que é causado pelo médico, ou seja, o prejuízo provocado por ato médico em pessoas sadias ou doentes, cujos transtornos são imprevisíveis e inesperados.” Segundo esse autor, tais danos estão amparados na limitação do conhecimento científico e na possibilidade de efeitos adversos, não esperados, no caso concreto.

Grinberg (2010, p.7) afirma que o conceito de iatrogenia pode ser dividido em duas vertentes, a saber: a latu sensu e a stricto sensu. Na vertente latu sensu, o conceito de iatrogenia engloba todo e qualquer dano causado, pelo médico, ao paciente, independente de culpa do profissional da medicina. Por outro lado, a vertente stricto sensu caracteriza como iatrogenia apenas os danos causados, pelos médicos, ao paciente decorrentes de fatores estranho a atuação do médico. Para esta vertente, o profissional da medicina procedeu corretamente, de forma precisa e de acordo com as normas e princípios ditados pela ciência médica. Este é o entendimento que vem sendo adotado pela maioria dos tribunais brasileiros.

Ao analisarmos criticamente a evolução cronológica e doutrinária dos conceitos de iatrogenia, chegamos à conclusão de que, apesar de ser bastante conhecida no meio médico, e também correlacionar-se com outras áreas da saúde (Odontologia e Enfermagem), o tema ainda carece de discussões e aprofundamentos, principalmente na sua aplicabilidade na área jurídica. Entretanto, podemos considerar inicialmente a iatrogenia como toda e qualquer lesão ou dano, ocasionada no paciente, pela atuação médica correta e adequada na busca de salvaguardar a sua saúde. Ao seguir esse raciocínio, podemos dizer que essas lesões possuem uma certa previsibilidade. Todavia, podem ou não ser esperadas. Deste modo, torna-se pertinente dividir as lesões iatrogênicas em dois grupos: um grupo formado pelas lesões previsíveis e esperadas e, outro grupo formado pelas lesões previsíveis, porém inesperadas. A seguir detalharemos cada um desses grupos.

A princípio, precisamos caracterizar a previsibilidade, para tanto, distinguimos os critérios objetivos e subjetivos da previsibilidade. Logo, quanto aos critérios objetivos, consideraremos previsível a lesão a qual possa ser prevista por um médico que possua conhecimento mediano, devido às circunstâncias concretas em que o fato aconteceu. Por conseguinte, pelos critérios subjetivos, serão consideradas previsíveis as lesões que possam ser antevistas, pelo profissional médico, devido ao estado em que o agente se encontra. Importante ressaltar ainda que a análise da previsibilidade deve ser feita no momento em que o médico for realizar determinada conduta, conduta esta que possa causar algum dano ao paciente, não podendo, consequentemente, projetá-la para o futuro. Neste momento, o paciente deverá ser informado, de maneira adequada, sobre as possíveis lesões iatrogênicas decorrentes daquele procedimento, bem como, das outras opções terapêuticas indicadas ao seu estado de saúde, mesmo que estas sejam menos eficientes.

Consideram-se lesões previsíveis e esperadas aquelas que, antes do início do procedimento médico, clínico ou cirúrgico, já se tem conhecimento da sua ocorrência, inclusive com a certeza de que haverá uma sequela, como, por exemplo, podemos citar a mastectomia total, isto é, a retirada do seio. Neste procedimento cirúrgico, para retirar toda a área infectada pelo câncer de mama com segurança, o médico cirurgião opta pela extração total da mama da paciente. Este protocolo indica a melhor técnica médica a ser utilizada para esses casos, mesmo que ocasione uma sequela permanente na paciente.

São lesões previsíveis e inesperadas aquelas que podem ocorrer durante ou após o procedimento terapêutico, clínico ou cirúrgico. Contudo, no momento da realização desse procedimento, não há indícios que ela ocorrerá, tampouco, se deixará sequelas, como, por exemplo a reação alérgica decorrente do uso de contraste iodado. Nesse caso, o paciente desconhecia que tinha alergia ao iodo e, por isto, não a informou no formulário de informações relevantes. Por mais que seja previsível a reação alérgica de determinados pacientes ao contrates iodado, no caso concreto, devido às informações prestadas pelo próprio paciente ou seus familiares, não se podia esperar a ocorrência dessa lesão.

Destarte, desde que, a atuação médica esteja dentro das técnicas e métodos aceitos, indicados e reconhecidos pela ciência médica, o paciente seja devidamente informado sobre os riscos inerentes ao procedimento a ser executado, e haja previsibilidade sobre a ocorrência de lesões, podemos afirmar que, caso ocorram lesões ao paciente, estas serão consideradas iatrogênicas e, por conseguinte, lesões lícitas, uma vez que foram necessárias para atingir um resultado mais favorável ao paciente. Desse modo, a conduta praticada pelo médico deve ser considerada como exercício regular de um direito profissional.

Para Grinberg, (2010, p,57): “Não pode ser esquecido o comportamento do paciente como causa de iatrogenia, uma extensão necessária da etimologia e da semântica.”

A prática de determinadas condutas (comissivas ou omissivas) pelo paciente também pode ocasionar lesões iatrogênicas, senão vejamos: a realização de condutas incompatíveis com a prescrição/orientação médica e a omissão ou sonegação de informação sobre uma doença preexistente prejudicando o processo de diagnóstico e tratamento, além das características orgânicas do paciente (cicatriz hipertrófica – queloide, alargamentos ou estrias etc). Nesses casos, não podemos estabelecer nenhum nexo causal entre essas iatrogenias e o agir do médico, haja vista que sua origem ocorreu de uma especificidade do paciente.

 

2.2 O DANO IATROGÊNICO E O ERRO MÉDICO: O DEVER DE INDENIZAR

Na Idade Antiga, foram elaborados vários códigos tratando sobre as responsabilidades dos médicos no exercício de sua profissão. Desses códigos, destacamos o Código de Ur-Nammu (2111 – 2084 a.C.); o Código de Hamurabi (1686 – 1750 a.C.); o Código de Manu (1300 – 800 a.C) e a Lex Aquília. Desses códigos, selecionamos alguns artigos do Código de Hamurabi para demonstrar como a responsabilidade do médico quando do exercício da medicina era abordada, conforme visualizamos abaixo:

215 - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.

(...)

218 - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.

219 - Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo.

Podemos Inferir da leitura dos dispositivos transcritos acima que quando a ação do médico ocasionava um resultado positivo, qual seja: a cura; o médico deveria ser recompensado financeiramente. Entretanto, se o atuar médico desencadeasse um resultado divergente da cura esperada, ao médico seria imputada uma penalização, que poderia ser financeira – o pagamento de outro escravo, ou em seu próprio corpo – mutilação de suas mãos. O juízo feito para a aplicação dessas penalidades baseava-se exclusivamente na ocorrência do resultado indesejado e desconsiderava qualquer hipótese de exclusão de culpa do médico. Penalidade totalmente injusta, pois estava baseada apenas no resultado, desconsiderando totalmente a atuação do médico.

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Para Gonçalves (2014, p.48), o embrião da reparação do dano surgiu com a Lei Aquília, vejamos:

É na Lei Aquília que se esboça, afinal, um princípio geral regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que na continha ainda “uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno”, era, sem nenhuma dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e “fonte direta da moderna concepção da culpa Aquíliana, que tomou da Lei Aquília o se nome característico”.

Tais códigos perduraram por toda a Idade Média e parte da Idade Moderna. Até que o médico inglês -Thomas Percival, especialista em ética médica, elaborou o primeiro código moderno de ética médica. Em seu compêndio, Thomas abordou a conduta do médico na prática geral, hospitalar e privada, a metodologia da administração de medicamentos, bem como assuntos legais afetos à profissão do médico.

Com o passar dos séculos, vários outros códigos de éticas foram emitidos pelos mais diversos países, abordando, de forma mais concisa ou mais completa, questões relacionadas à responsabilidade do médico frente aos atos por ele praticados no exercício da medicina e a possibilidade de penalidades/indenizações pela prática de condutas inadequadas.

Destarte, a matriz definidora da responsabilidade médica concentrava-se no resultado da conduta realizada pelo médico. Em outras palavras, o que definia se o médico seria ou não responsabilizado era o produto final do seu labor. Logo, se ao final de um procedimento cirúrgico, em que havia grande probabilidade do paciente vir a óbito – por exemplo, o médico não conseguisse salvar a vida do paciente, mesmo que ele houvesse praticado tudo o que estava ao seu alcance e o que havia disponível na área médica – o profissional especializado seria condenado a responder pela morte do paciente.

No início do século XIX, a concepção da responsabilidade dos médicos sofreu profundas alterações e, por conta disto, os profissionais de medicina passaram a ser responsabilizados apenas pelos danos ocasionados em razão de falta grave, imperícia e imprudência, cabendo ao paciente provar essa falta. Esta alteração teve por fundamento basilar a nova tônica da relação médico-paciente, uma vez que agora o médico era visto como uma pessoa da confiança do paciente, e não apenas como um profissional capaz de assegurar o restabelecimento de sua saúde.

Entretanto, com a intensificação da sociedade de consumo, a “lua-de-mel” vivida entre médico e paciente foi ficando com seus dias contados, haja vista que a relação médico-paciente foi deixando de ser uma relação entre amigos, para uma relação de consumo, ou seja, entre consumidor e prestador de serviço.

Daí, então, surge a necessidade de aclarar as situações em que o médico não cometeu falta grave, das que ele cometeu faltas graves. Dessa diferenciação surgem os termos dano iatrogênico e erro médico, este englobando as situações em que o médico cometeu falta grave, imperícia ou imprudência; aquele, absorvendo os casos em que os profissionais da medicina agiram de acordo com as técnicas apropriadas e os protocolos adequados.  É mister compreender que somente após esta diferenciação conseguiremos analisar a linha divisória desses dois institutos e, consequentemente, atribuir responsabilidade aos médicos.

Para Grinberg, (2010, p,57) torna-se um “erro empregar iatrogenia como erro médico.” Sendo assim é imprescindível que se caracterize a lesão ocorrida no caso concreto para evitar julgamentos inapropriados e juízos de valor sobre o trabalho de um determinado profissional.

 

2.2.1. O Dano Iatrogênico

Ultrapassada a fase conceitual da iatrogenia, abordaremos a seguir o dano iatrogênico. Este, nada mais é, que, a lesão ou sequela prevista, esperada ou não, sofrida pelo paciente em virtude de um procedimento médico, clínico ou cirúrgico, realizado em fiel observância aos protocolos aceitos pela ciência médica. Fica evidente que, mesmo que o profissional da medicina tenha utilizado as mais apropriadas técnicas e seguido fielmente todo o protocolo indicado para aquele procedimento, isto ainda não foi suficiente para evitar a ocorrência de uma lesão ou sequela. Desse modo, não se pode imputar ao médico culpa pela constatação do dano iatrogênico, uma vez que não existe um nexo de causalidade entre esse dano e o procedimento realizado. Além disso, os requisitos identificadores do dano iatrogênico foram caracterizados (previsibilidade do dano e a necessidade de sua realização).

Para Carvalho (2009, p.6 e 7), o dano iatrogênico não caracteriza a responsabilidade civil do médico e, consequentemente, enseja o direito à indenização reparatória. Essa afirmação encontra supedâneo na adoção pelo médico de técnicas e fármacos necessários a superar a patologia acometida pelo paciente. Logo, essa conduta médica não pode ser encarada como fato típico e antijurídico a ser reprovado pelo ordenamento jurídico pátrio.

Diante do exposto, quando restarem comprovados os requisitos caracterizadores do dano iatrogênico, isto é, a previsibilidade do dano e a necessidade de sua realização, não há previsão jurídica para o dever de indenizar do médico para com o paciente, uma vez que aquele procedeu consoante as técnicas médicas adequadas e, com isso conseguiu um resultado mais favorável ao paciente.

 

2.2.2.  O Erro Médico

Em virtude das particularidades que envolvem a ciência médica, a culpa do profissional é fator que extrapola a esfera jurídica, pois transita entre as esferas científica e deontológica. Dessa maneira, há que se salientar que nem todo mau resultado é sinônimo de erro médico. Resultados atípicos ou indesejados podem, sim, decorrer de condutas que não caracterizam erros médicos,

Para Stoco (2004, p.531), “Cabe esclarecer, desde logo, que o “erro de técnica” – que não se confunde com o “erro médico” – é visto com prudência e especial cuidado pelo Poder Judiciário e seus membros, no exercício da atividade de julgar”. Em outras palavras, não caberá ao Poder Judiciário opinar sobre a adequação ou a escolha de determinada técnica.

Na visão de Giostri (2010, p.125), erro médico “pode, então, ser entendido como uma falha no exercício da profissão, do que advém um mau resultado ou um resultado adverso, efetivando-se através da ação ou da omissão do profissional”.  Consoante (2003, p.422), “erro médico é, portanto, a falha do médico no exercício da profissão”

Da leitura desses conceitos, fica-nos evidente a diferença entre erro médico e dano iatrogênico. No erro médico, o mau resultado ou resultado adverso decorre de uma falha por ação ou omissão do médico, o qual não era previsível, tampouco ocorreu para que se obtivesse um resultado melhor para o paciente. Desse modo, o médico deverá ser responsabilizado pela conduta praticada e, consequentemente, terá o dever de indenizar o paciente.

No entanto, consoante Moraes (2003, p.426) para que essa indenização ocorra, faz-se necessária à comprovação dos seguintes requisitos: a ação do médico, o dano ao paciente, o nexo de causalidade entre a ação do médico e o dano ao paciente, e a ocorrência de uma das três espécies de falha – negligência, imperícia ou imprudência. Portanto, é mister comprovar, na caracterização do erro médico, se houve ou não culpa médico. A ausência de um desses requisitos descaracteriza o erro médico e, por conseguinte, o dever de indenizar.

Para Carvalho (2009, p.49) “a culpa médica, por fim, pressupõe uma falta de diligência ou prudência em relação ao que era esperado de um bom profissional escolhido como padrão”. Em outras palavras, o profissional médico que não se mantém atualizado, executa condutas e procedimentos obsoletos e não mais indicados pela comunidade médica, inclusive sem seguir os protocolos indicados, está bastante vulnerável a cometer falhas em seu labor diário, e, desse modo, poderá ser responsabilizado por essas falhas.

No Direito Civil Brasileiro a forma típica da culpa é a culpa inconsciente. Todavia, também há a previsibilidade da culpa consciente. A diferença entre essas duas modalidades de culpa está fundamentada na possibilidade de o agente prever ou não o resultado desencadeador da culpa. Na culpa inconsciente, o agente não prevê o resultado, enquanto que na culpa consciente o agente prevê o resultado, contudo não acredita que ele ocorrerá.

Há, ainda, segundo o entendimento doutrinário a distinção da culpa em própria e imprópria. Na culpa própria, o agente não prevê o resultado, não quer que ele ocorra e nem assume o risco de produzi-lo. Já na culpa imprópria, o agente prevê o resultado e deseja que ele ocorra, porém a sua causa é originada em um erro.

Feitas essas considerações, a seguir, mostraremos as espécies de erro médico, que, por questões didáticas, dividiremos em duas: o erro escusável ou profissional e o erro de diagnóstico.

 

2.2.2.1. Erro Escusável ou Profissional

Considera-se erro escusável ou profissional aquele, decorrente de falha não imputável ao médico, que tem origem nas peculiaridades no exercício da ciência médica. Em geral, essas falhas são desencadeadas por limitações das técnicas ou equipamentos médicos, os quais impossibilitam o profissional da Medicina de realizar o correto diagnóstico e, consequentemente, definir a conduta apropriada a ser executada. Trata-se de um erro intrínseco as deficiências da profissão médica, e por isto, o expert não poderá ser obrigado a indenizar o paciente.

E, é, sob a ótica da responsabilidade civil, mais especificamente sobre o dever de indenizar que podemos correlacionar o erro escusável ou profissional com a iatrogenia. Desse modo, nem sempre que existir um erro médico, este será motivo de penalização do especialista.

 

2.2.2.2. Erro de Diagnóstico

Nas palavras de Ferreira (1998, p.584) “diagnosticar é conhecer ou determinar uma doença pelo(s) sintoma(s) e/ou mediante exames diversos (radiológicos, laboratoriais etc)” A tarefa de diagnosticar está umbilicalmente ligada ao exercício da medicina, pois através desta técnica o médico, com base na sua capacidade subjetiva de interpretação, associa os sintomas relatados pelo paciente, bem como, os apresentados no exame clínico, aos seus conhecimentos científicos, sendo assim incapaz de identificar as condições atuais da saúde do paciente.

É no diagnóstico que se exige mais diligência e prudência dos profissionais da medicina, uma vez que após esta etapa, o profissional determinará as rotinas e os protocolos a serem seguidos, inclusive definirá a necessidade da realização de exames complementares ou de opiniões de especialistas em outras áreas da medicina.

Gonçalves (2014, p.344) aborda o erro de diagnóstico, ponderando as situações em que não se pode culpar o médico. Vejamos:

O erro de diagnóstico, que consiste na determinação da doença do paciente e de suas causas, não gera responsabilidade, desde que escusável em face do estado atual da ciência médica e não lhe tenha acarretado danos. Porém, diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar-se em exames de laboratório, ultrassom, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu-se a tratamento inócuo e teve sua situação agravada.

De tal modo, a falha médica nesta etapa, ocasionada por imprudência ou negligência, acarretará sérias consequências à recuperação da saúde do paciente, podendo, em alguns casos, ocasionar lesões irreversíveis e/ou a morte. Portanto, entendemos que o erro de diagnóstico fruto de uma anamnese mal feita, deve ser elemento desencadeador de responsabilidade do médico, e, por conseguinte, um fator do dever de indenizar do profissional da medicina.  

Destarte, a responsabilidade será examinada tomando-se por base as ações feitas pelo médico que não deveriam ter sido feitas, aquilo que ele deixou de fazer e deveria ter feito, aquilo que ele falou e não deveria ter falado ou, ainda, aquilo que não foi comunicado, mas era fundamental para o conhecimento do paciente.

 

2.3 ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS SOBRE IATROGENIA E O ERRO MÉDICO

Em face das alterações ocorridas na relação médico-paciente, em especial no século XX com a intensificação das relações de consumo, o número de ações judiciais nas quais se buscam a responsabilidade civil dos médicos e o dever de indenizações remuneratórias vem crescendo de forma relevante. Logo, a análise de julgados sobre a iatrogenia e o erro médico é relevante para a compreensão da aplicabilidade deste instituto na prática forense. Sendo assim, analisaremos brevemente o entendimento de alguns tribunais brasileiros sobre a matéria em discussão.

Antes, porém, de apresentarmos alguns acórdãos, os quais demos ênfase os do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, merece atenção a informação de que, após pesquisa no site dos Tribunais de Justiça de todos os estados da federação brasileira, inclusive o do Distrito Federal, apenas 08 unidades da federação (Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo) possuem acórdãos utilizando o termo iatrogenia. Nos demais, mesmo para os casos de iatrogenia, são utilizados termos como a descaracterização do erro médico para os casos de dano iatrogênico. Diante do exposto, exibiremos esses acórdãos.

No julgamento de recurso de apelação do processo nº 3000142-96.2013.8.26.0292, julgado em 29/11/2016, tendo como relator o Des. Alexandre Marcondes, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao recurso do autor por entender que a responsabilidade do anestesista é de meio e que a prova pericial não constatou a existência de culpa e nexo de causalidade entre a ação do médico e o dano ocorrido no paciente.[1]

Ao analisar o recurso de apelação do processo nº 0044350-22.2010.8.19.0001, publicado em 14/09/2017, tendo como relator o Des. Cherubin Helcias Schwartz Junior, a Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro conheceu e proveu o recurso do réu e julgou prejudicado o recurso do autor por entender que houve a observância da boa técnica, inclusive com a indicação do procedimento adotado pelo médico, e, ainda que a responsabilidade do médico é subjetiva, mesmo em se tratando de relação de consumo, ademais a paciente que era portadora de outras doenças que contribuíram para as intercorrências.[2]

No julgamento de recurso de apelação do processo nº 4001099-64.2013.8.26.0362, julgado em 15/12/2017, tendo como relator o Des. Donegá Morandini, a Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao recurso do réu e manteve a sentença autor por entender se tratar de erro médico, uma vez que houve uma inserção de cateter venoso central por via periférica, causando lesão de plexo braquial no paciente, logo, o acesso deveria ter sido feito pela via jugular. Desta forma, descartou a hipótese de iatrogenia e manteve a responsabilidade objetiva do hospital[3].

Analisando o recurso de apelação cível da ação de indenização por danos morais e materiais; julgado em 15/10/2018, tendo como relator o Des. Fernando Luiz Ximenes Rocha, 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará conheceu o recurso da parte autora, mas negou-lhe provimento por entender que não foi comprovada a ocorrência de conduta indevida ou equivocada na ocasião do atendimento médico da promovente e a indefinição sobre a causa da tromboflebite[4].

No julgamento da apelação cível da ação de indenização por danos morais e materiais; julgado em 01/10/2018, tendo como relator o Des. Paulo Francisco Banhos Ponte, 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará acordou em conhecer o recurso de apelação do autor negando-lhe provimento por entender não haver provas do nexo de causalidade entre a conduta dos agentes públicos municipais, junto ao médico e a morte do paciente.[5]

Na apelação da ação indenizatória; julgado em 09/05/2018, tendo como relatora a Des. Lira Ramos de Oliveira, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará julgou improcedente o recurso de apelação por entender que não houve defeito na prestação de serviço e, que conforme por prova pericial e testemunhal, o que aconteceu com a recorrente foi uma reação do seu próprio organismo, comum após esses procedimentos médicos.[6]

Na análise do recurso de apelação cível da ação de indenização por danos materiais e morais, julgada em 21/02/2108, pelo relator o Des. Carlos Alberto Mendes Forte, a 2ª Câmara Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará conheceu do recurso, mas negou-lhe provimento nos termos do relator por julgar que não houve indício de que o médico recorrido procedeu com negligência, imprudência ou imperícia no procedimento cirúrgico. [7]

Finalmente, no julgamento das apelações cíveis nº 0090966-52.2009.8.06.0001, interpostas pelo MUNICÍPIO DE FORTALEZA/CE e por LUZINETE RODRIGUES CORDEIRO em Ação de Indenização por Danos Morais e Materiais, julgada no dia 19/06/2017, pela relatora a Des. Lisete de Sousa Gadelha, da 1ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará conheceu os recursos, mas desproveu o recurso do município e deu provimento ao recurso apelatório da autora, reformando a sentença apenas para afastar a sucumbência recíproca, por entender haver provas suficientes para suportar o pedido autoral[8].

Ao observar esses julgados, identificamos que o entendimento desses tribunais em considerar a obrigação do médico, exceto o cirurgião plástico, como obrigação de meio e, definir como necessária a caracterização da responsabilidade civil a relação de causalidade entre a conduta do agente (ação ou omissão) e o dano vai ao encontro do estabelecido na legislação brasileira. E, que a não utilização do vocábulo iatrogenia não está causando nenhuma complicação, uma vez que a essência da diferença entre iatrogenia e erro médico está sendo adotada.

 

3.  CONCLUSÕES

É entendimento pacífico que, ao final de cada procedimento médico – clínico ou cirúrgico – se faz necessário, pelo médico, uma explicação, ao paciente e/ou seus familiares, sobre a condução do procedimento, se houve ou não intercorrências durante a sua realização, quais as condutas previstas a partir do procedimento e quais os resultados esperados. Considerando estas informações, o paciente e/ou seus familiares decidirão o que será feito caso esse procedimento ocasione algum dano ou lesão no paciente, uma vez que não, necessariamente, esse dano ou lesão possa ser considerado com uma falha médica.

Desse modo, surge, então, a necessidade de caracterizar o dano ou lesão sofrida pelo paciente em dano iatrogênico ou lesão por erro médico. Por dano iatrogênico entendemos as lesões previsíveis, esperadas ou não, que acometem o paciente em virtude da realização de um procedimento médico necessário a assegurar um bem maior ao paciente. Sendo assim, mesmo ocasionando lesão no paciente, aquele procedimento deveria ser feito, haja vista que o seu objetivo era resguardar a vida do paciente. Quanto à lesão por erro médico, concluímos que a sua ocorrência se deve a culpa, em sentido estrito, do médico uma vez que durante a realização do procedimento sua ação foi maculada ou pela imperícia, ou pela imprudência ou pela negligência, ou por ambas.

Conceitualmente, parece-nos fácil fazer essa caracterização. Entretanto, ao nos depararmos com uma situação fática, logo concluímos que se trata de uma tarefa árdua e complexa, pois nem sempre os profissionais da medicina informam os dados do procedimento ao paciente e/ou seus familiares. Tampouco, registram detalhadamente todas as informações no prontuário do paciente, mesmo que essas atribuições estejam previstas como dever do médico no Código de Ética Médica. Destarte, não resta outra saída ao paciente, senão buscar o Poder Judiciário para, na análise do caso concreto, realizar essa caracterização por intermédio da produção de provas periciais. A necessidade da intervenção do Poder Judiciário para a caracterização do dano, aliada as alterações sociais da relação médico-paciente respondem por grande parte do aumento no número de ações judiciais pleiteando a responsabilidade civil dos médicos. Essa intervenção, de maneira desenfreada, poderá desencadear um novo paradigma na área médica, no qual os profissionais da medicina hesitarão em adotar novos tratamentos e condutas, ainda não certificadas pelos órgãos competentes, mas que, para o caso concreto, apresenta melhores resultados do que os métodos tradicionais, haja vista que poderão ser interpretados como uma imprudência.

Neste sentido, devemos entender que, mesmo sendo o trabalho médico uma atividade, que por sua própria natureza envolva riscos, onde os resultados indesejados fazem parte da realidade do seu cotidiano, o trabalho deve exigir do profissional da medicina a cautela para o esclarecimento adequado do paciente e/ou seus familiares acerca de seu diagnóstico e, de todos os riscos envolvidos incluindo prognóstico e possíveis sequelas advindas do tratamento que será submetido e da própria resposta do paciente. Evitando assim, o entendimento de que para todo resultado indesejado deve haver um responsável a ser condenado pelo malfeito, seja do ponto de vista do paciente ou do profissional, pois, poderíamos retornar a uma apreciação, guardadas as devidas proporções, semelhantes ao do Código de Hamurabi.

 

REFERÊNCIAS:

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