2. Supranacionalidade
Por ser o modelo escolhido pelo bloco mais avançado no processo de integração, a supranacionalidade é uma característica desejada por muitas nações e suas regiões, pois tem grande importância no “sucesso” alçando pela UE, ainda que para chegar nessa fase de comunitarismo não seja tão simples e rápido. “Um dos principais suportes do Direito Comunitário é o instituto da supranacionalidade, que contribuiu decisivamente para a consolidação dos objetivos da União Europeia, possibilitando o desenvolvimento de políticas comunitárias compatíveis com a legislação dos Estados-membros e uniformidade na tomada de decisões, com base no primado e na aplicabilidade direta das normas comunitárias.” (GOMES, 2018).
Preliminarmente, é correto afirmar que a supranacionalidade tomou o caminho oposto da tradição de que a economia e a política são governadas através de uma visão nacional, já que nas últimas décadas foi criado esse sistema organizacional, que abraça várias nações da mesma região, com a intenção de incluir o caráter supranacional.
2.1. Conceito
Basicamente, a supranacionalidade é a cessão parcial das atribuições estatais de cada país em detrimento de um órgão superior, ou seja, é criado uma superestrutura, onde as nações abrem mão, em parte, da soberania, para ativar um conjunto de alianças entre os estados membros, com o objetivo de desenvolver a região. É o que vem confirmar Pedroso (2007, 85 p.): “Para analisar o instituto da supranacionalidade, não há como deixar de abordar o significado do termo supranacional, o qual expressa um poder de mando que supera os poderes dos Estados, resultando na transferência de parcelas de soberania pelas unidades estatais em benefício da organização comunitária. [...] os aspectos políticos, embora conduzam mais à apreensão da estrutura existente e da sua orientação, acabam por exercer influência no modo e no ritmo da sua evolução, devendo, portanto, combinar diagnose e perspectiva.”.
O Tratado da Comunidade Europeia não categorizou o conceito de supranacionalidade, mas ganhou vida concomitantemente a criação da Comunidade Europeia do Carvão e Aço - CECA, através do Tratado de Paris em seu artigo 9º. Foi neste artigo que foi empregado pela primeira vez o termo “supranacionalidade” e identificou a existência de um poder superior ao das autoridades nacionais dos Estados-membros, o qual foi chamado de Alta Autoridade, com a capacidade de emanar decisões obrigatórias as nações do bloco. As características do sistema supranacional ficaram integradas da seguinte maneira: “La creación de organismos diferenciados de los estatales, a los cuales los proprios Estados y por voluntad soberana le transfieren diferentes cuotas de competencias y facultades que antes eran ejercidas en forma autônoma por cada país en particular y que ahora en virtud de tal transformación passan a ser desarolladas, algunas de ellas en forma exclusiva por las nuevas instituiciones y otras, en forma concurrente com los estados. [...] estos entes supranacionales debe quedar representado el interés de la comunidad [...]”. (PEROTTI, 1999, p. 127 e 128).
A supranacionalidade é um instituto peculiar e característico do direito comunitário, permitindo a eficaz aplicação e interpretação das suas normas. A sua definição foi sendo construída através do entendimento do direito procedido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias – TJCE e pelos tribunais nacionais dos Estados-partes da EU, somado aos princípios da aplicabilidade, do direito direto, da primazia do direito comunitário e a uniformidade.
A legitimidade regional está diretamente ligada a supranacionalidade e ela somente tem coerência quando é instrumento das necessidades sociais, principalmente a de integração regional.
A preferência por direitos supranacionais e seus órgãos, não depende apenas das vontades dos Estados-membros, mas sim das possibilidades e metas sociais. Dito isso, deverá então a supranacionalidade ser alicerçada em um estudo e pesquisa profunda da sociedade e da economia, todavia jamais poderá ser balizada em modelos formais, pois teria como consequência a rejeição regional.
Ainda sobre as características da supranacionalidade, Pires (2014) destaca algumas que se sobressaem, quais sejam: “i) há instâncias de decisão independentes do poder estatal (sistema jurisdicional que tem a colaboração dos Tribunais internos dos Estados-membros, como fiscais da aplicação do ordenamento jurídico comunitário e viabilizadores do sistema de integração); ii) o modelo de resolução de conflitos tem por base a decisão majoritária, com a transferência de soberania à autoridade comum; iii) objetivos comuns aos membros interessados na formação da comunidade (por tratado), sobrepondo-se esses objetivos a qualquer outro interesse estatal individualmente considerado, sem abandonar a idéia de que os órgãos comunitários não são superiores aos Estados. As matérias ditadas pela comunidade, objeto da delegação de competências estatal é que são hierarquicamente superiores às normas nacionais sobre mesmo tema.”.
Nesse instituto, ainda que os Estados-membros deleguem poderes e competências constitucionais, eles os retêm originariamente, porém os transmitem temporariamente aos organismos supranacionais, e durante esse lapso temporal de transferência de poderes e competências, as nações se abnegam de legislar acerca das matérias correspondentes.
De forma oposta, é possível encontrar a transferência de poderes constitucionais de maneira definitiva, deixando os Estados sem o poder de praticá-los, porém isso ocorre particularmente na concepção de novos Estados.
A integração europeia, não dispensou o papel dos Estados, nem fez desaparecer o conceito de soberania. O motor da integração tem sido a ambivalência dialética entre integração versus soberania e interestadualidade. “A escolha pelo modelo de cooperação ou de integração, [...] está diretamente relacionada com os objetivos a serem alcançados pelos países que pretendem se unir. O modelo de cooperação está voltado essencialmente às trocas comerciais e, em certos casos, à liberação de serviços, o que ocorre com limites, em razão da soberania dos Estados. De outro lado, a integração, ao tempo que engloba a cooperação, ultrapassa as fronteiras geográficas na busca de um interesse coletivo, permitindo o desenvolvimento de políticas comuns, que serão geridas pela organização em causa, através de órgãos que terão poderes supranacionais ou intergovernamentais. No modelo supranacional, os Estados delegam parte da sua soberania a órgãos criados pelos tratados, para que estes atuem apenas e tão somente com relação aos objetivos comuns. Ao delegarem seus poderes soberanos, os Estados aceitam se submeter à ordem jurídica supranacional em detrimento da ordem jurídica interna.” (MARQUES, 2014).
Para finalizar o estudo da supranacionalidade, conclui-se que: “[...] a ideia de soberania compartilhada, na qual se funda o instituto da supranacionalidade, constitui-se na resposta mais eficaz ao problema da soberania dos Estados que passam a integrar uma mesma comunidade internacional, em razão de terem que se submeter a um regramento jurídico comum. Os resultados que a União Europeia tem obtido indicam para o sucesso da adoção de tal instituto na busca do compartilhamento das soberanias.”. (SILVA; SILVA, 2003).
Fica compreendido então, que a supranacionalidade é uma ferramenta utilizada pelos Estados que desejam ajustar algumas adversidades regionais em conjunto, proporcionando a evolução da sociedade local, porém em contrapartida, precisam abrir mão de parte de suas soberanias em prol do bem maior.
2.2. Supranacionalidade na União Europeia
O caso mais avançado de integração regional é o procedido na União Europeia, neste bloco podemos observar características únicas no âmbito jurídico, político e institucional, mas a característica que mais se destacada é a supranacionalidade. Neste contexto, na maioria dos casos, o Direito de cada um dos Estados é submisso as normas do Direito Comunitário. Sendo assim, os órgãos de integração emitem certas normas que prevalecem até sobre as constituições nacionais.
É considerado uma forma de soberania compartilhada, esta que é usada na União Europeia, pois seu sistema mostra diversos graus de governança, podendo ser chamado também de governança multinível. Até os dias atuais esse procedimento abriu portas para a construção de um sistema político inerentemente institucionalizado e determinado por processos que se sobrepõem e se intercruzam entre diferentes Estados e níveis acima e abaixo do antigo locus da soberania estatal. Acrescentando informações acerca da supranacionalidade no bloco europeu, Machado (2011) entende que este bloco comunitário: “[...] pode ser considerado uma organização internacional supranacional, com personalidade jurídica própria. Não pode ser classificado como uma federação de Estados. No entanto, quanto ao seu caráter subjetivo (actorness), em razão de seu profundo desenvolvimento, poderia também ser elevada a uma categoria acima das organizações internacionais, com peculiaridades que a transformariam em uma instituição sui generis. O seu diferencial seria exatamente o compartilhamento da soberania, em que os Estados delegam parcelas de suas competências estatais internas para serem exercidas por instituições supranacionais, que são aptas a conduzir os interesses do bloco.”.
O sistema jurídico do Direito Comunitário europeu é descrito como sui generis pois não se confunde com o direito interno dos países, assim como não se confunde com o Direito Internacional Público, considerando-se que a aplicação de suas normas é regida por princípios próprios.
Para melhor esclarecer do que se trata o “Direito Comunitário” aqui abordado de forma repetitiva, é interessante constar que ele é composto pela supranacionalidade, adicionado à delegação de poderes soberanos e ao princípio do primado da uniformidade da interpretação da aplicabilidade e dos efeitos diretos das normas comunitárias. É também conhecido como ordenamento jurídico proveniente do Direito Internacional, porém em nível superior, independente das ordens jurídicas nacionais, capaz de sobrepor-se a elas.
Foi revolucionária a ideia do modelo europeu na esfera do Direito Internacional quanto a criação de órgãos com poderes independentes dos Estados-membros, com propósitos integracionistas e capazes de estabelecer normas tidas como obrigatórias a todos os participantes, destacando-se a preponderância das decisões comunitárias sobre o interesse individual dos integrantes do bloco. As normas emitidas pelos órgãos nascem dotadas de primazia e aplicabilidade direta, considerando a colaboração de um Tribunal de Justiça permanente, com a função de aplicar uniformemente as regras comunitárias. Pires (2014) comenta sobre o assunto, e destaca também pontos positivos e negativos do Direito Comunitário: “Não há na essência da União Europeia um posto político separado do povo. Ou um posto político que a separa de seus respectivos Estados-Membros e estes dos seus respectivos cidadãos. Existe um verdadeiro paradoxo, posto ser impossível que cada decisão tomada pela União Europeia seja vantajosa para os seus vinte e sete membros concomitantemente. Compartilham-se bônus e ônus. É dever do Estado o cumprimento e a aplicação do Direito Comunitário na ordem interna. Em consequência, as disposições comunitárias podem produzir efeitos jurídicos por si mesmas, criando direitos e obrigações sem necessidade de normas nacionais para sua aplicação, podendo os particulares fazer valer ante os poderes públicos nacionais os direitos que derivam das normas comunitárias, devendo estes assegurar e proteger os direitos individuais. A União Europeia, referência do Direito Comunitário, obviamente tem seus problemas, dentre eles: a falta de homogeneidade no grau de adesão de transferência de soberania; o elevado número de Estados-Membros (vinte e sete) e o grande número de subentidades (Banco Central Europeu, Banco Europeu de Investimentos, Polícia Europeia, Ofício de Luta Antifraude ao orçamento comunitário, Coordenação de órgãos judiciais nacionais para aperfeiçoamento da cooperação judicial).”.
Inevitável é a comparação do Mercosul com a União Europeia, haja vista o sucesso internacional deste último, e quando se fala da possibilidade da composição de uma ordem jurídica supranacional no bloco latino-americano, e ainda, sobre a necessidade de usar como espelho a experiencia da criação de um Tribunal de Justiça permanente, utilizado pelos países europeus e no ordenamento originário do Direito Comunitário europeu, é imprescindível um nível de maturidade, de inovação e de adaptação da norma superior em cada um dos Estados-membros do bloco do Cone Sul, para que os quatro países consigam, com a criatividade e flexibilidade, evoluir mais rapidamente no processo de integração.
Retornando aos objetivos criados na concepção da União Europeia, pode-se afirmar que nunca houve a intenção do bloco ser um ente federado, em verdade, as intenções eram ter sucesso e desenvolvimento no máximo de esferas possíveis, onde entra a supranacionalidade, que mostrou particularidades acima do esperado. “O foco primordial seria uma Europa unida e integrada dentro daquilo que desde o início os tratados se dispuseram, uma evolução de seus Estados-membros a partir do grau de comprometimento de cada um de seus integrantes. O fenômeno europeu tem particularidades próprias porque a construção do espaço ocupado pela União Europeia se efetivou pela via do tratado internacional, o que quer dizer que o consentimento dos Estados-membros foi fundamental: neste sentido, a formação da União Europeia mais se assemelha à norte-americana no exercício de uma força centrípeta. Por outro lado, levando em consideração que se formou o Direito Comunitário e os órgãos supranacionais europeus, muitas das decisões destes vinculam os Estados-membros, no exercício de uma força que sai do centro rumo às extremidades, fazendo isto com que a configuração europeia passe a se parecer com o momento em que se delineou a federação brasileira.”. (FURTADO, 2016).
Para alcançar os objetivos expressos no art. 2º do Tratado da Comunidade Europeia, que eram “o desenvolvimento harmonioso e equilibrado das atividades econômicas (...), um elevado nível de emprego e de proteção social, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Estados Membros”, foi fundamental extinguir ao máximo, toda e qualquer impedimento econômico e político entre os países membros. A CEEE tinha como propósito a coordenação pautada na livre circulação de bens, pessoas, serviços e capitais, fazendo uso de um estabelecimento de um mercado comum, somado a uma crescente aproximação político-econômica. Roberto e Costa (2013) fazem uma ressalva deste processo: “Importante ressaltar que todos os países membros continuam coordenando sua política interna, mas agora passam também a fazer parte de um quadro de coordenação de nível comunitário. Dessa forma, o Tratado de Amsterdã buscou resguardar ainda mais as condições relativas à legislação social. O acordo dos Quinze contemplou questões que até então diziam respeito apenas ao próprio país como exemplo tem-se a segurança social, demissões, proteção a saúde e segurança nos locais de trabalho.”.
Mesmo a União Europeia sendo referência do Direito Comunitário, claramente tem seus defeitos, alguns deles podem ser destacados, como: o elevado número de Estados-membros; o grande número de subentidades e a falta de homogeneidade no grau de adesão de transferência de soberania.
Falando sobre a soberania, esta era a realidade de tempos passados, sendo sua utilidade considerada primitiva frente a supranacionalidade. Porém, é válido refletir até que ponto poderá ser possível aceitar o conceito de supranacionalidade, com cessão da soberania estatal, seja com a subordinação da ordem estatal a uma ordem supranacional, seja verificando até que ponto a ordem interna aceitará a ordem supranacional. Ocorre que o integracionismo e a criação de organismos de integração supranacionais não diminuíram o poder soberano do Estado. Na verdade, o que mudou foi o prisma sobre o qual esse exercício de poder passou a ser analisado.