INTRODUÇÃO
O que é o trabalho? Seria um castigo divino, um motivo de orgulho e prestígio social, ou apenas uma forma de sobreviver em um mundo inóspito? A Bíblia, no Antigo Testamento, já o considerou um castigo, como ensinam Gonzalez e Octaviano ao comentar Gênesis 3:19: “com a expulsão de Adão e Eva do paraíso terrestre, Deus cominou para o homem a pena do trabalho, como forma essencial de subsistência.” Nesse mesmo sentido, os autores comentam a Segunda Carta de Paulo aos Tessalonicenses 3:10: “O trabalho é forma essencial de subsistência humana; ninguém ofereça sustento ao vadio.”1
A filosofia grega clássica considerava o trabalho manual uma atividade produtiva mundana e material, e, portanto, indigna do cidadão livre. Platão via os escravos (a força de trabalho de sua época) como seres desprovidos de alma racional, intermediários entre animais e pessoas. Aristóteles louvava o ócio (lazer dedicado à contemplação e à política) como condição fundamental para a filosofia2, afirmando que “o escravo é escravo porque tem alma de escravo, é essencialmente escravo, sendo destituído por completo de alma noética, a parte da alma capaz de fazer ciência e filosofia”3. Sócrates, por sua vez, considerava uma missão divina ser um “vagabundo loquaz”, dedicando-se ao diálogo filosófico4. Cabe aqui, entretanto, mencionar Hesíodo, poeta da aurora da civilização grega, que em sua obra Trabalho e Dias descreve a vida como o labor no decorrer do tempo, já conferindo certa dignidade ao esforço produtivo5.
A origem etimológica da palavra "trabalho" em diversas línguas remete a algo penoso. Em grego, a execução do trabalho era expressa por ponos (grande esforço), kámatos (ocupação exigindo capacidade e esforço especial) ou kopos (esforço corporal extenuante)6. No latim, deriva de tripalium, um instrumento de tortura composto de três paus, a partir do qual a ideia de sofrer evoluiu para a de se esforçar, lutar e, por fim, trabalhar7. No francês, sua etimologia vem de travail (o que faz sofrer); no alemão, Arbeit, que antigamente designava moléstia ou fardo8.
Durante a Antiguidade e grande parte da Idade Média, predominava a escravidão ou a servidão. O trabalhador era frequentemente visto como um objeto ou um instrumento, não como um sujeito de direitos. Na servidão, embora pudesse haver proteção política e militar do senhor feudal, os trabalhadores não tinham condição livre, não podiam exercer plenamente seus direitos nem tinham instâncias superiores a recorrer9.
Isto posto, veremos como o conceito de trabalho se transformou ao longo da história, impulsionado pelo pensamento filosófico, religioso e pelas mudanças socioeconômicas, pois é por meio do trabalho que o homem busca suprir suas necessidades materiais e, por vezes, espirituais10.
1. O trabalho ganha seu reconhecimento, mas vem a exploração
O trabalho começa a ganhar reconhecimento, não inicialmente legal ou jurídico, mas social, deixando de ser visto predominantemente como um castigo. No Renascimento, inicia-se uma visão do trabalho como um valor a ser buscado, concebendo seus frutos como algo positivo para a humanidade11. A partir daí, surge uma valorização crescente do trabalho, não mais como uma maldição, mas como um valor que traria suas recompensas. John Locke, por exemplo, acreditava que todos os homens são iguais com direito à propriedade, que seria adquirida pela transformação da natureza através do trabalho12. Adam Smith afirmaria: “Um homem deve sempre viver por seu trabalho, e seus ganhos devem, pelo menos, ser suficientes para sua manutenção.”13
Os teólogos, especialmente com a Reforma Protestante, passam a conceituar o trabalho como forma de moldar o mundo à imagem e semelhança de Deus14. João Calvino chegou a ensinar que o trabalho e a poupança seriam virtudes essenciais do indivíduo, associando a salvação à diligência e à economia15. Começam a surgir ditados como o que diferencia a preferência católica (dormir bem, sossegado) da protestante (comer bem, prosperar)16 e a ideia de que “o diabo acha trabalho para mãos desocupadas”17. O calvinismo trouxe a concepção de comprovar a fé do indivíduo por meio de suas atividades seculares18. Max Weber, em sua análise, menciona o surgimento de uma ética burguesa, onde o empreendedor, abençoado, pode, dentro dos limites da conduta moral, enriquecer. Até as divisões sociais, segundo Calvino, seriam parte de um plano divino, para que a classe dos trabalhadores se mantivesse obediente a Deus19. Leo Huberman explica: “Esse é o espírito capitalista. Para o calvinista, tal ensinamento não era um conselho, no sentido comum, mas um ideal da conduta cristã. A melhor forma de trabalhar para a glória de Deus era colocá-lo em prática.”20
Quando a burguesia capitalista se sobrepôs ao sistema feudal, o trabalho "livre" (assalariado) triunfou sobre a servidão, e o trabalhador passou, em tese, a vender sua força de trabalho a quem melhor pagasse21. Claro que esta é uma visão idealizada; a ausência de legislação protetiva e a ambição dos industriais levaram a uma situação de exploração generalizada. Não havia mais espaço para a mendicância ou o ócio tolerados em épocas anteriores. A ideia do trabalhador cumprindo suas funções como um chamado divino tornou-se comum para justificar a disciplina laboral22.
Nas sociedades tribais, o trabalho era dividido por critérios como idade, sexo e força física. Posteriormente, prevaleceu a divisão entre agricultura e outras atividades artesanais/industriais23. Com o advento da Primeira Revolução Industrial, a mecanização e a máquina a vapor fizeram com que as forças humanas e animais deixassem de ser a principal fonte de energia do processo produtivo. Artesãos, camponeses, mulheres e crianças foram para as fábricas24. Houve uma quebra da divisão tradicional de trabalho, mas isso não resultou em benefício para a maioria, que foi jogada na exploração. A acumulação de capital e a existência de uma classe trabalhadora despossuída (proletariado) marcaram o início do capitalismo industrial25.
O fenômeno do fechamento das terras comunais (enclosures) na Inglaterra, transformadas em pastos pelos grandes latifundiários, expulsou os camponeses, criando uma massa de desocupados nas estradas e cidades, pronta para ser explorada nas novas fábricas26. Esses fechamentos representaram uma tragédia para os camponeses expropriados, ao mesmo tempo que criavam essa nova classe de trabalhadores urbanos. Os artesãos, arruinados pela competição com as indústrias, juntavam-se aos camponeses na formação do proletariado27. As cidades incharam com essa nova classe, completamente desamparada de proteção legal. Thomas Malthus, em seu Ensaio sobre o Princípio da População, chegou a propor como solução para a pobreza crescente negar aos pobres toda assistência e aconselhá-los à abstinência sexual28. Tais condições, aliadas a um parlamento focado na defesa da propriedade privada e sem representação da classe trabalhadora, criaram o ambiente para tornar a Inglaterra a “Oficina do Mundo”29.
Adam Smith trouxe a ideia de que a riqueza das nações não repousava no acúmulo de metais preciosos, mas sim nos frutos do trabalho30. A fonte de toda riqueza viria do trabalho31. Ele ensinava que o trabalho diferenciava nações "selvagens" das prósperas, onde até a classe mais pobre poderia gozar de uma quota de bens maior que qualquer "selvagem". Acreditava que o desenvolvimento das indústrias aumentaria os ganhos dos empregados pela crescente procura de mão de obra, mas a mecanização maciça acabou, em muitos casos, por desvalorizar o elemento humano32.
Huberman (1986) ensina:
“Os capitalistas achavam que podiam fazer como bem entendessem com as coisas que lhes pertenciam. Não distinguiam entre suas ‘mãos’ [trabalhadores] e as máquinas. Não era bem assim – como as máquinas representavam um investimento, e os homens não, preocupavam-se mais com o bem-estar das primeiras. Pagavam os menores salários possíveis. Buscavam o máximo da força de trabalho com o mínimo necessário para pagá-las. Como mulheres e crianças podiam cuidar das máquinas e receber menos que os homens, deram-lhes trabalho, enquanto o homem ficava em casa, frequentemente sem ocupação. A princípio, os donos de fábricas compravam o trabalho das crianças pobres, nos orfanatos; mais tarde, como os salários do pai operário e da mãe operária não eram suficientes para manter a família, também as crianças que tinham casa foram obrigadas a trabalhar nas fábricas e minas.”33
David Ricardo convenceu-se de que a substituição do trabalho humano por máquinas acabou sendo, em muitos casos, prejudicial à classe dos trabalhadores e que mesmo um aumento do rendimento líquido de um país poderia deteriorar a condição de vida dos trabalhadores34.
A miséria dos trabalhadores da época foi retratada nos livros de Charles Dickens e Émile Zola, com homens, mulheres e crianças trabalhando até dezesseis horas por dia. O Deputado Inglês John Roebuck, após visitar um cotonifício, disse ter saído “gelado”: “é um lugar cheio de mulheres, todas jovens, algumas grávidas, obrigadas a ficar de pé durante doze horas. Trabalham das 5 da manhã às 7 da noite, com apenas meia hora de descanso. Em certas salas o calor é sufocante e o cheiro desagradabilíssimo.”35
Adam Smith, em sua Riqueza das Nações, relata que as manifestações dos trabalhadores eram severamente reprimidas pelos magistrados civis, resultando em nada, senão em punição para os envolvidos36.
2. Surge o Direito do Trabalho
Tal situação demonstra como as leis podiam ser, na verdade, um instrumento de opressão. É neste cenário sombrio que a classe operária começa a se mobilizar, e o pensamento da época começa a mudar, buscando um maior equilíbrio entre capital e trabalho, entre a classe patronal e a operária.
Essa situação de penúria obviamente causava revolta nos trabalhadores. A Europa estava em ebulição, com as revoluções de 1848 (Primavera dos Povos), a queda de Luís Felipe na França, e as jornadas de trabalho extenuantes. Começava a surgir a ideologia marxista, com a fundação da Liga dos Comunistas em Bruxelas. No segundo congresso da Liga, Marx e Engels prepararam o Manifesto Comunista, com a análise da luta de classes e a convocação dos operários à união. Reduzidos a uma pobreza crescente, conforme a sociedade se tornava mais rica, os operários sonhavam com uma sociedade sem classes. O Manifesto Comunista trazia a necessidade de os operários se apropriarem dos meios de produção, atingindo pela raiz o funcionamento do modo de produção capitalista. Nesse ano de 1848, o rei Leopoldo da Bélgica respondia à agitação popular dissolvendo toda associação operária no país37. Em Colônia, Marx fundou a Nova Gazeta Renana, onde escreveu numerosos artigos em favor dos operários38. Em 1867, em Londres, Marx publicou sua obra mais significativa, O Capital, onde expôs as principais críticas à sociedade capitalista e suas contradições39.
O Marxismo visava fazer da classe operária a classe predominante na sociedade, inicialmente pelos meios possíveis na democracia, para depois apoderar-se do poder político40. Classificou o capital como a propriedade que garante ao capitalista explorar o trabalho alheio41 e o capitalismo como um sistema baseado na exploração do trabalho42. O Marxismo teve na Comuna de Paris (1871) um exemplo de tentativa de organização política e social. Valentin descreve a Comuna: “A feição socialista era nova. O governo provisório comprometeu-se por meio de decretos a garantir a existência dos trabalhadores pelo trabalho e proporcionar trabalho a todos os cidadãos.”43 A Comuna foi combatida e derrotada pelas forças da burguesia, resultando em milhares de mortes e exilados44.
Na Inglaterra, surgiu o movimento dos Luditas, que lutavam contra as máquinas, vistas como responsáveis pela opressão do trabalhador, buscando sua destruição. O parlamento inglês respondeu transformando, em 1812, a destruição de máquinas em crime passível de pena de morte45. Na mesma época, surgiu o movimento Cartista, em que a classe trabalhadora reivindicava: o sufrágio universal masculino, o pagamento aos membros eleitos da Câmara (para que não apenas os ricos pudessem exercer a atividade parlamentar), parlamentos anuais, o fim da restrição de propriedade para os candidatos, o sufrágio secreto para evitar intimidações dos patrões, e a igualdade dos distritos eleitorais. O Cartismo desapareceu lentamente conforme suas reivindicações foram sendo, em parte, aceitas, tendo sido um movimento fundamental de origem da classe trabalhadora46.
Neste contexto, nasce a ideia de justiça social, apoiada pelo Marxismo (e outras correntes socialistas), que encontraria um contraponto na doutrina social da Igreja47. Em Roma, o Papa Leão XIII, preocupado com a "questão operária", desenvolveu, com as nações industriais da época, uma política de conciliação entre patrões e trabalhadores48.
Buscando um acordo entre capital e trabalho dentro dos quadros do cristianismo, ele estimulou a criação de círculos operários. Dentre esses, destacou-se a “União de Friburgo”, que analisava os problemas sociais da classe operária, concluindo que eram solucionáveis pela fé cristã. Em 15 de maio de 1891, com a encíclica Rerum Novarum, a Igreja Católica apresentou sua posição oficial sobre os problemas dos trabalhadores. Buscava, entre outras coisas, a dignificação da condição do trabalhador, um salário justo (suficiente para manter as necessidades de sua família), rejeitava a teoria marxista de antagonismo entre as classes e orientava os ricos a não tratar o operário como escravo. Definia o trabalho como “...uma honra, não uma vergonha, constituindo um nobre meio de sustentar a vida...”. A Rerum Novarum foi uma resposta ao marxismo, crescente devido à opressão dos trabalhadores, ensinando que “o socialismo, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicará o operário, se for posto em prática: viola os direitos legítimos dos proprietários, vicia as funções do Estado e tende a subverter completamente o edifício social.” A encíclica foi muito importante, pois orientava patrões e empregados a formarem organizações de ajuda mútua, para auxiliar os operários em caso de doença ou acidente, e a limitar o trabalho, incluindo um repouso semanal. Assim, a Rerum Novarum e a doutrina social da Igreja foram tentativas de conciliar, pela fé, patrões e empregados49.
Surgiram os sindicatos, que lutavam por melhores condições de trabalho. Diante de tais demandas, começaram a surgir as primeiras leis limitando as horas de trabalho e coibindo o trabalho infantil. Iniciaram-se os primeiros fundos destinados a auxiliar os desempregados, e os patrões passaram a assumir, gradualmente, a responsabilidade por acidentes de trabalho, pagando indenizações. Assim, os sindicatos adquiriram influência política para alterar as leis em favor dos trabalhadores. Na Inglaterra, as Trade Unions realizaram seu primeiro congresso em 1868, sendo legalizadas em 1871 e conquistando o direito de greve em 187550. Sobre o sindicalismo, Friedrich Engels escreveu em 1844: “Se a centralização da população estimula e desenvolve a classe dos proprietários, força também o desenvolvimento dos trabalhadores, ainda mais rapidamente. Os trabalhadores começaram a se sentir como uma classe, como um todo; começaram a perceber que, embora fracos como indivíduos, formam um poder quando unidos.”51
Pode-se dizer que o surgimento do sindicalismo contribuiu para o Direito do Trabalho e foi motivado pela urgência de coibir os abusos contra os operários e a exploração de mulheres e crianças. Destaca-se na Inglaterra o Factory Act (Lei das Fábricas) de 1819, que estabelecia a idade mínima do trabalhador assalariado em 9 anos52, e a “Lei de Peel” de 1802, limitando a jornada de trabalho de menores a 12 horas. Na França, houve a proibição do trabalho de menores de 8 anos (1841); na Alemanha, a lei proibindo o trabalho de menores de 9 anos (1839) e as leis sociais de Bismarck (década de 1880); e na Itália, as leis de proteção ao trabalho de mulheres e menores53. A Rerum Novarum teve papel importante, haja vista que muitas leis surgiram inspiradas em seu texto. Em quase todos os países industrializados, o Estado passou a fixar limites para as horas de trabalho, salário mínimo (incipiente), férias e seguro social. Igreja, capital e Estado entraram em um arranjo para executar alguma justiça social em troca da manutenção da estrutura social, evitando as mudanças radicais propostas pelo socialismo54. Assim, podemos dizer que o nascimento do Direito do Trabalho foi uma resposta da sociedade para evitar um rompimento profundo do tecido social.
Biavaschi relata:
“Na Grande Indústria Inglesa do século XIX em tempos de capitalismo constituído e da venda assalariada da força de trabalho preponderante, estavam dadas as condições materiais para o nascimento de um novo ramo do Direito, que viria mais tarde, fundado em princípios forjados no campo das lutas sociais e em um cenário em que a natureza do Estado foi sendo modificada, passando a intervir nas relações econômicas e sociais, produzindo normas.55”
Segundo Huberman, os pobres ingleses seguiram o conselho dos padres e pastores, não tomando a fortuna dos ricos, mas buscando um melhoramento gradual e progressivo, como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho para 10 horas diárias56. A redução da jornada de trabalho acabou por permitir à classe operária adquirir cultura e instruir-se para elevar-se socialmente, formando um proletariado consciente e, em alguns casos, levando operários a ascenderem socialmente ("aburguesar-se"), o que, para alguns analistas, evitou o colapso do capitalismo e o esgarçamento mais profundo do tecido social57. Entretanto, tal redução apenas veio com muita luta dos trabalhadores, pela qual o Direito do Trabalho foi sendo forjado. Assim, no início do século XX, o Direito do Trabalho ganha status constitucional e surgem leis que visam equilibrar de forma mais efetiva a relação entre empregados e empregadores.