Lesão, estado de perigo e de necessidade: causas de exclusão e abuso de direito

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22/07/2019 às 11:38

Resumo:


  • O estado de perigo ocorre quando uma pessoa assume uma obrigação excessivamente onerosa para salvar-se ou salvar um familiar de um grave dano, conhecido pela outra parte.

  • A lesão se caracteriza pela desproporção entre as prestações em um contrato, onde uma das partes, por necessidade ou inexperiência, se obriga a algo manifestamente desvantajoso.

  • O estado de necessidade é uma situação em que, para evitar um perigo atual, alguém precisa invadir a esfera jurídica de outrem, e apesar de ser um ato lícito, pode gerar dever de indenizar.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. DEMAIS ATOS LESIVOS QUE NÃO SÃO ILÍCITOS

Observemos a legítima defesa e ainda o exercício regular de direito que são também casos excepcionais que não constituem atos ilícitos apesar de causarem lesões aos direitos de outrem. Dá o dano, a relação de causalidade entre a ação do agente e o prejuízo causado a direito alheio. Mas o procedimento lesivo do agente, por motivos legítimos estabelecido em lei, não acarreta o dever de indenizar, porque a própria norma jurídica lhe retira a qualificação do ilícito. Observe-se assim além do estado de necessidade, a legítima defesa e o exercício regular de direito.

A legítima defesa é excludente de responsabilidade civil (CC, artigo 188, I, primeira parte) e ainda penal (artigo 25 do CP).

Exige-se para a legítima defesa:

1. repulsa a agressão atual ou iminente e injusta;

2. defesa de direito próprio ou alheio;

3. emprego moderado de meios necessários;

4. orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos.

São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o modo de repelir a agressão também pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame (RTJ 85/475-7). Nessa linha de pensar, o emprego de arma de fogo não para matar, mas para ferir ou para amedrontar (tiro fora do alvo) poderia ser considerado, em certas circunstâncias, o meio disponível, menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. Tal solução merece sérios debates numa sociedade que precisa combater o uso de armas.

Há a análise da questão da proporcionalidade, na legítima defesa.

O Código Civil, no artigo 188, I, segunda parte, trata do exercício regular ou normal de um direito reconhecido, onde ao se lesar direitos, se exclui qualquer responsabilidade pelo prejuízo, por não ser um procedimento prejudicial ao direito. Quem usa de um direto seu não causa dano a ninguém (o credor que penhora bens do devedor, proprietário que ergue um edifício em seu terreno prejudicando a vista do vizinho). Só haverá ato ilícito, na hipótese, se houver abuso do direito ou seu exercício irregular ou anormal.


5. O ABUSO DE DIREITO

A ilicitude do ato praticado com abuso de direito possui, segundo alguns doutrinadores e dados jurisprudenciais, natureza objetiva, aferível, independentemente de culpa e dolo (RSTJ, 120/370; 140/396; 145/446 e Súmula 409 do STF).

Como entendeu Maria Helena Diniz (Curso de direito civil, volume I, 24ª edição, pág. 553), “só haverá 'ato ilícito', se houver abuso do direito ou o seu exercício irregular ou anormal”.

Por outro lado, no ato abusivo há exercício manifesto, ou seja, o direito é exercido de forma ostensivamente ofensivo à justiça. Segundo jurisprudência, a ilicitude do ato praticado com abuso de direito possui segundo alguns doutrinadores, natureza objetiva, aferível de forma independente de culpa e dolo (RJTJRS, 28/373, dentre outros).

Dita o artigo 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Mas, sabe-se que no uso de um poder, direito ou coisa além do permitido ou extrapolando as limitações de um direito, lesando alguém, traz como efeito jurídico o dever de indenizar. Sob aparência de um ato legal, ou lícito, esconde-se a ilicitude. Há um ato abusivo dessa forma.

O abuso é excesso manifesto, ou seja, o direito é exercido de forma extensivamente ofensiva à justiça.

Ao se definir o abuso de direito como ato ilícito, deve ser, como dizem Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, “interpretado como uma referência a uma ilicitude lato sensu, no sentido de contrariedade ao direito como um todo, e não como uma identificação entre a etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são claramente diversas.

O Código Civil de 2002, no artigo 1.277, no âmbito das relações de vizinhança, reprime o uso anormal da propriedade, consignando um exemplo de abuso de direito. Tem-se os casos em que alguém, em sua propriedade produz ruído que excede a normalidade; usa cerca eletrificadas que possam causar mortes; utiliza aparelhos que interfere em TV ou rádio de vizinho; deposita lixo em terreno próximo a uma moradia, situações que serão passíveis de ações inibitórias por parte do lesado.

Toda vez que houver excesso no exercício regular do direito, dá-se o abuso de direito (RT 434/239; 403/218, dentre outros). Estamos diante de atos emulativos, tratados no artigo 1.228, § 2º, que são os atos praticados dolosamente pelo agente, no exercício normal de um direito, em regra o de propriedade, isto é, com a firme intenção de causar dano à outem e não de satisfazer uma necessidade ou interesse do seu titular. Assim o ato abusivo do propriedade ou locatário que cause dano à saúde, à segurança, o sossego de seu vizinho.

O uso da propriedade, dentro do que rezam os artigos 5º, XXIII; 170, III; 186, I a IV, está condicionado ao bem estar social.

O Código, portanto, confere proteção contra atos que impliquem risco à segurança, ao sossego e saúde, Como exemplifica Washington de Barros Monteiro (Curso de Direito Civil. Direito das Coisas. Editora Saraiva. 37ª edição. São Paulo, 2003, p. 135/136.):

“São ofensas à segurança pessoal, ou dos bens, todos os atos que possam comprometer a estabilidade e a solidez do prédio, bem como a incolumidade de seus habitantes. Constituem exemplos a exploração de indústrias perigosas, como a de explosivos e inflamáveis, o funcionamento de indústrias que provoquem trepidações excessivas, capazes de produzir fendas ou frinchas no prédio, e armazenamento de mercadorias excessivamente pesadas, acarretando o recalque do terreno, as escavações muito profundas, a existência de árvores de grande porte, que ameaçam tombar na propriedade vizinha.

São ofensas ao sossego ruídos exagerados que perturbam ou molestam a tranquilidade dos moradores, como gritarias e desordens, diversões espalhafatosas, bailes perturbadores, atividades de discotecas ou danceterias, artes rumorosas, barulho ensurdecedor de indústria vizinha, emprego de alto-falantes de grande potência nas proximidades de casas residenciais para transmissões de programas radiofônicos ou televisivos e instalação de aparelhos de ar condicionado ruidosos.

Finalmente, constituem ofensas à saúde as emanações de gases tóxicos, as exalações fétidas, a poluição de águas pelo lançamento de resíduos, a presença de substâncias putrescíveis ou de águas estagnadas e o funcionamento de estábulos ou de matadouros.”

A segurança que a lei trata é a material e é a pessoal e moral. No ensinamento de Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, tomo XIII, ed. Bookseller, pág. 382), tanto ofende a segurança, ou pode vir a ofendê-la quem trabalha na casa vizinha com explosivos quanto quem acoita bandidos ou recebe jogadores que costumam brigar a tiros. O bordel e a casa de tolerância podem ser ofensivos ao sossego, podem mesmo criar situação de insegurança para os vizinhos. O calor excessivo, as trepidações perigosas, os corpos gaseiformes que possam produzir uma explosão, a penetração de líquidos nas paredes-nuas deve ainda ser enquadrados nessas situações do artigo 554 do Código Civil de 1.916 que são nocivas à vizinhança.

A indenização com base naquele artigo 554 do Código Civil de 1916 não exige culpa por parte do responsável.

É certo que questões surgidas envolvendo enfermidades têm de atender à localização dos prédios e às leis sanitárias têm importante papel.

Pontes de Miranda exemplifica alguns casos (obra citada, páginas. 384. e 385):

1. A queima de detritos, com produção de fumaça que invada as propriedades vizinhas, causando prejuízos pessoais e incômodos à saúde;

2. O badalar de sinos das igrejas sem a necessidade de culto (2ª Turma do STF, 3 de julho de 1947, RF 116/432);

3. As queimadas, a poluição de águas, os rumores excessivos, os odores fortes ou outras imissões que causem dano;

4. O deixar de cortar as árvores que causem dano se o dano sem o corte é inevitável;

5. O ter apiário cujos incômodos que causa desgarram dos hábitos do lugar;

6. Construir ou mandar construir de modo que causa danos, ainda se a construção obedeceu exigências das posturas municipais (RT 170/748);

7. Qualquer imissão ofensiva ao sossego ou à saúde do vizinho;

8. O ter açudes de que resultem casos de impaludismo na vizinha (Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 9 de maio de 1928, RT 67/118);

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9. Haver enxurradas e barreiras devidas à elevação de nível em aterros ainda se necessários à construção no prédio (RT 76/145);

10. Exceder a carga que a construção pode suportar, pondo em risco a vizinhança (não é de exigir-se culpa, imprudência, que adentre no ato ilícito);

11. Usar pulverizador de óleo, de modo que se manchem ou impregnem paredes ou outras partes ou pertenças do prédio vizinho ou objetos aí postos, como alfaias, tapeçarias e mobiliário;

12. Montar garagem ou posto de gasolina ou lubrificação ou de consertos de automóveis;

13. Ter ou plantar árvores que sejam ruinosas;

14. Não aterrar o prédio na parte abaixo do nível da rua ou não a rebaixar até onde evite danos aos vizinhos;

15. Fazer derivarem águas com detritos industriais ou agrícolas para a propriedade vizinha;

16. Não murar o terreno na faixa que não corresponde ao prédio com que confina no resto;

17. Manter salões de clubes que façam algazarra;

18. Construir ou manter fossa junto ao prédio de outrem;

19. Deixar de construir muro de arrimo para evitar invasão de águas pluviais;

20. Lançar pontas de cigarro, carteiras de cigarro, brinquedos de criança, papeis, fósforos ou outros objetos, no prédio vizinho, de modo que causem danos, obstruam calhas ou ralos ou manchem paredes, ou simplesmente sujem o terreno alheio.

O sossego que se exprime é a relativa tranquilidade, o ter-se o que permite a normalidade da vida com as horas de atividade e as de descanso, que hão de ser especialmente distintas.

Assim o proprietário que produz ruído de sorte a incomodar seus vizinhos é obrigado a se abster de tais atos, mas o ruído que autoriza um procedimento judicial deve ser o ruído excessivo ou anormal, que extrapolem as exigências do meio.

O proprietário, morador de recanto sossegado, tem ação contra quem, com a instalação de indústria, lhe vem perturbar a paz e a comodidade.

Nenhum vizinho tem o direito de produzir os danos, as importunações, os incômodos, o desassossego e o perigo que entender, só porque ocupou a vizinhança antecipadamente, fazendo tábula rasa do direito alheio e da legislação que regula a boa convivência entre proprietários confinantes ou próximos.

O sossego não é perturbável apenas pelo som. Também o é pela luz, pelo cheiro, por apreensões e choques psíquicos, ou outros motivos de inquietação.

A licença administrativa que for dado pelo Município é dada sob a reserva implícita de não serem lesados os direitos alheios; e só tem o efeito de isentar o proprietário da responsabilidade penal, em que incorreria, se levasse a termo a obra, sem a devida licença e observância dos preceitos regulamentares.

O fato de estar o prédio situado em via pública de intenso movimento diurno e noturno, com os ruídos causados pela passagem de veículos de transporte, não faz com que os seus habitantes sejam obrigados a suportar outros barulhos que não são estritamente indispensáveis à vida de uma cidade.

Saúde de que fala a lei é a saúde do que habita, ou tem de frequentar o prédio, ou de qualquer ser, que viva no prédio, se pode aí ser alojado.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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