O pensamento de Gustav Radbruch e a influência do jusnaturalismo no constitucionalismo moderno

02/08/2019 às 11:54

Resumo:


  • A ética grega aborda duas dimensões da autodeterminação humana: pessoal e comunitária.

  • Gustav Radbruch, após a Segunda Guerra Mundial, defendeu uma teoria de proteção dos direitos humanos, priorizando a justiça sobre a lei.

  • A fórmula de Radbruch estabelece critérios para resolver conflitos entre a segurança jurídica e a justiça, dando preferência à justiça em casos de extrema injustiça.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo tem por objetivo apresentar brevemente a teoria de Gustav Radbruch e perceber como a conexão entre direito e moral é retomada no século XX e incorporada às democracias constitucionais.

INTRODUÇÃO

Ética vem da palavra grega ethos, e possui duas conotações: por um lado, significa o caráter, o modo de ser de uma pessoa, mas também significa o modo de ser de uma comunidade, o conjunto de valores que caracteriza determinado povo. A ética grega trata, portanto, de duas dimensões da autodeterminação humana: pessoal ou individual, e comunitária ou pública[1].

Gonçalo (2008) afirma que comumente se credita à ética características que são da moral, posto que esta é voltada para problemas eminentemente práticos e concretos. Nesse sentido, a ética não estabelece normas de conduta, mas se caracteriza pela reflexão crítica que analisa, discute e interpreta os valores que fundamentam a moral[2]. Nesse sentido, para o autor,

Do ponto de vista ético, os valores são os fundamentos que orientam as ações, normas e regras do comportamento humano, possibilitando a emissão de juízos sobre o que se apresenta, ao sujeito, como susceptível de apreciação ou avaliação (GONÇALO, 2008, p. 116).

Sob esses pressupostos conceituais, o trabalho versa sobre a “guinada” jusnaturalista de Gustav Radbruch no pós Segunda Guerra Mundial, em clara oposição ao Positivismo Jurídico. Para tanto, será analisada a trajetória pessoal do autor – uma vez que o direito nazista mudou o rumo de seus trabalhos –, bem como a obra Cinco Minutos de Filosofia do Direito, que inaugura a nova fase do professor de Heidelberg e expõe, brevemente, os pressupostos de sua nova teoria.

  1. A “guinada” jusnaturalista de Radbruch

Gustav Radbruch foi o mais importante jusfilósofo alemão do século XX. Pertencia à Escola de Baden (sudocidental alemã, que defendia a validade científica das ciências humanas) e sofreu a oposição da Escola de Marburgo (na qual somente as ciências exatas são verdadeiras ciências). Representante da filosofia dos valores de origem neokantiana, sua obra se dividiu em duas fases: antes do nazismo – onde se posicionava como positivista – e pós Segunda Guerra Mundial.

Em linhas gerais, para o Positivismo jurídico, o critério de validade da norma é formal, não dependente de seu conteúdo ou do fato de ser ou não justa: é válida a norma jurídica emanada do órgão competente, que seguiu os procedimentos para sua feitura e sua aprovação e que não afronta as normas jurídicas que lhe sejam superiores.

Após o período nazista, no qual, em sua concepção, o Direito passou não a promover a Justiça, mas sim a atender à vontade do Führer e a legitimar arbitrariedades, Radbruch desenvolveu uma teoria de proteção dos direitos humanos, tendo em vista a ausência positivista de uma percepção de valores fundamentais que transcendam o governo posto e elevou a Justiça como valor principal do ordenamento jurídico.

Para ele, os direitos humanos, expressão atualizada dos direitos naturais, são parâmetros pelos quais as leis de qualquer nação devem se adequar, sob pena de serem consideradas inválidas. Radbruch, então,

Passa a conferir um caráter absoluto e universal aos direitos humanos, ainda que continue a propugnar para os mesmos um caráter de construção racional e formal, dentro da tradição neokantiana. (...) Este é o jusnaturalismo axiológico de Radbruch, e a reestruturação de seu ideário conjuga-se nessa compreensão de um Direito Natural racional renovado normativamente, atuante socialmente e concretizável axiologicamente (Lima, 2015).

Depois da experiência jurídica alemã da Segunda Guerra, o autor abandona a segurança jurídica como valor por excelência do Direito – para os positivistas –, e afirma que a Justiça é que deve ser o valor ou a finalidade que inspira o direito. Ela não se resumiria ao direito escrito ou estatal, mas estaria acima dele, seria algo natural, racional ou mesmo intuitivo. Dessa forma, a justiça seria um valor superior aos demais e se firmaria como garantidor dos direitos humanos.

  1. Cinco minutos de Filosofia do Direito e a Fórmula de Radbruch

Como um dos grandes nomes engajados na reconstrução das universidades alemãs após a Segunda Guerra, Radbruch distribuiu aos estudantes da Universidade de Heidelberg uma circular, em 12 de setembro de 1945, dividida em cinco partes (minutos).

No primeiro minuto, o alemão expõe sua opinião sobre o que lhe parecia ser o positivismo jurídico:

Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa a práctica dum crime, o jurista, desde que há cerca de cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece excepções deste gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na generalidade dos casos, tiver do seu lado a força para se fazer impor. Esta concepção da lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro (RADBRUCH, 2012, p. 261)”.

No segundo minuto, Radbruch afirma que “Pretendeu-se completar, ou antes, substituir este princípio por este outro: direito é aquilo que for útil ao povo. Isto quer dizer: arbítrio, violação de tratados, ilegalidade serão direito desde que sejam vantajosos para o povo” (RADBRUCH, 2012, p. 262). Assim, o autor refuta tal pensamento, no sentido que a pretensa utilidade popular do nazismo é utópica e que a lógica é contrária: “só o que for direito será útil e proveitoso para o povo” (RADBRUCH, 2012, p. 262).

No minuto seguinte, o autor aproxima o Direito e a Justiça, ideia que permeará a segunda fase de sua obra. Para ele, Direito é o mesmo que vontade e desejo de justiça e as leis devem ser justas, sob pena de completa invalidade. Dessa forma,

Quando se aprova o assassínio de adversários políticos e se ordena o de pessoas de outra raça, ao mesmo tempo que acto idêntico é punido com as penas mais cruéis e afrontosas se praticado contra correlegionários, isso é a negação do direito e da justiça. Quando as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa humana, então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-lhes o carácter de jurídicas (RADBRUCH, 2012, p. 262).

            No quarto minuto, para Fernandes e Azevedo (2016), Radbruch traz à tona o problema das antinomias entre os três valores associados às ideias de Direito e da necessidade do exercício da “ponderação”, a saber, o bem comum, a segurança jurídica e a justiça:

Certamente, a imperfeição humana não consente que sempre e em todos os casos se combinem harmoniosamente nas leis os três valores que todo o direito deve servir: o bem comum, a segurança jurídica e a justiça. Será, muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva ou injusta, deverá reconhecer-se validade por amor da segurança do direito; ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deve ser recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente na consciência do povo e de todos os juristas: pode haver leis tais, com um grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade e até carácter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negadas (RADBRUCH, 2012, p. 263).

            Aqui está o valor central do professor de Heidelberg: leis que sejam injustas ou nocivas ao bem comum, ainda que válidas formalmente, devem ser banidas do ordenamento jurídico. As leis devem, portanto, estar impregnadas de fundamentos éticos.

            No último minuto, por sua vez, Radbruch sacramenta a ideia de que os princípios fundamentais de direito transcendem qualquer preceito jurídico positivo, a ideia de direito natural – a que também chamou de direito racional[3]. Aqui o injusto permanecerá injusto.

Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em grandes dúvidas. Contudo, o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas.” (RADBRUCH, 1997, p. 263).

No concernente à resolução dos conflitos entre a segurança jurídica e a justiça, Radbruch publicou o artigo Injustiça legal e direito supralegal em 1946 e apresentou a sua famosa fórmula:

O conflito entre a justiça e a segurança (rectius, certeza) jurídica pode ser adequadamente resolvido pelos seguintes critérios: 1) o Direito Positivo, baseado na legislação e no poder estatal, tem aplicação preferencial, mesmo quando seu conteúdo for injusto e não for benéfico às pessoas; 2) a justiça prevalecerá sobre a lei se esta se revelar insuportavelmente (rectius, extremamente) injusta, a tal ponto que se mostre uma norma injusta, continente de um direito injusto (RODRIGUES JÚNIOR, 2012).

Assim, para Lima (2009), a justiça como valor prioritário no âmbito do ordenamento jurídico servirá para a concretização da igualdade e da proporcionalidade para a efetivação do bem comum (justiça social) e proteção incondicional dos direitos humanos.

            Após assistir aos horrores da Segunda Guerra Mundial, Radbruch modifica conceitos centrais de sua teoria, com a hierarquização dos valores, no qual a justiça é o valor prioritário e propõe uma nova abordagem: a existência de princípios fundamentais acima de qualquer direito positivo, em clara acepção ao jusnaturalismo – após um século de desenvolvimento do Direito calcado em posições positivistas.

            Tal transcendência em relação ao direito positivo dos povos é consequência da adoção de uma teoria axiológica do direito, que funda a normatividade no valor fundamental da justiça como fim máximo do Direito (LIMA, 2009) e não a segurança jurídica.  

Essa ideia é retomada por Robert Alexy, no âmbito da teorização das democracias constitucionais contemporâneas. O autor admite o uso “da fórmula de Radbruch somente em casos extremos, de absoluta incompatibilidade do direito positivo com a justiça pela adoção de exigências morais mínimas como critério de correção, é que se poderia invalidar a aplicabilidade de determinada norma positiva em função de considerações de ordem deontológica (dever moral) e dikelógica (estudo da justiça)” (LIMA, 2009, p. 8).

Nesse caso, o juiz é quem seria o intérprete para avaliar, por meio da fundamentação racional e da adoção de um mínimo ético, as condições de aplicabilidade da fórmula em uma norma positiva que privilegiaria a positividade (segurança jurídica) em detrimento da eticidade (valor justiça) – o argumento da injustiça[4].

Vê-se, portanto, a influência das ideias de Radbruch no constitucionalismo moderno, não só com a utilização de sua Fórmula, mas também com a aceitação dos direitos fundamentos como valores universais – além da própria constitucionalização desses direitos nas Constituições pátrias.

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Referências Bibliográficas

COPETTI NETO, Alfredo. A democracia constitucional sob o olhar do garantismo jurídico. Coleção Sob o olhar do Garantismo Jurídico; Coordenação: Alfredo Copetti Neto e Alexandre Morais da Rosa. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.  

FERNANDES, Rômulo Magalhães; AZEVEDO, Anna Carolina de Oliveira. O pensamento de Gustav Radbruch: pressupostos jusfilosóficos e as repercussões da Alemanha do Pós-Guerra. In: XXV Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pequisa e Pós-Graduação em Direito. Filosofia do direito I. Coordenação: Ana Luisa Celino Coutinho, Leonel Severo Rocha, Marcia Cristina de Souza Alvim – Florianópolis: CONPEDI, 2016, pp. 407 – 422. Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/l7b061yb/5D8J4U8P63OY0nVc.pdf. Acesso em 30 out. 2018.

FERREIRA, Crislane; FERREIRA, Ítala Vírginia; COELHO, Sabrina Queiroz. Resquícios e Influências do jusnaturalismo no cenário atual. Ensaios de Teoria do Direito e Hermenêutica Jurídica. Coordenação: Agenor Sampaio Neto, Alef Augusto Pereira Correa, Marcos Felipe Ribeiro Rios, Neuza Vitória de Andrade Oliveira, Rômulo Ruan Santos da Silva. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2017.

GONÇALO, Edinaldo Tibúrcio. Os valores como fundamento ético do agir humanoContexto, Vol. 3, Nr. 3, pp. 111-124. Natal: 2008. 

LIMA, Newton de Oliveira. Gustav Radbruch e a fundamentação de uma teoria racionalista dos direitos humanos. Revista Desenredos - ano I - número 2. Teresina, setembro/outubro de 2009.

MATOS, Saulo Monteiro Martinho de. A hermenêutica jurídica de Gustav Radbruch. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 8(1):18-27. São Leopoldo: janeiro-abril 2016.

PEDRO, Ana Paula. Ética, moral, axiologia e valores: confusões e ambiguidades em torno de um conceito comum. Kriterion,  Belo Horizonte,  v. 55, n. 130, p. 483-498,  Dez.  2014 .   Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2014000200002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 31 out. 2018.

PEGLOW, Jaqueline; CHAGAS, Flávia Carvalho. O princípio moral na ética Kantiana: uma introdução. Pelotas: Revista Enciclopédia, v. 2, 2015.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. de Luís Cabral de Moncada. Portugal, Coimbra: Armênio Amado, 1974.p.474.

____________. Introdução à Ciência do Direito. Trad. de Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

____________. Cinco minutos de filosofia do direito. Brasília, 2012: Publicações da Advocacia Geral da União (AGU), pp. 261 – 263. Disponível em https://seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/viewFile/1620/1307. Acesso em 31 out. 2018.

ROCHA JÚNIOR, José Jardim. Atravessando o "Umbral da Injustiça": direito e moral em Gustav Radbruch. Revista dos Estudantes de Direito da UnB, Brasília, n. 5, p. 51-59, 2001.

RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. A fórmula de Radbruch e o risco do subjetivismo. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-jul-11/direito-comparado-formula-radbruch-risco-subjetivismo. Acesso em 2 nov. 2018.


[1] PEDRO, p. 485.

[2] GONÇALO, p. 112.

[3] Ponto central do trabalho de Radbruch, conforme passagem de Erneuerung des Rechts, de 1946, in Lima, 2015: “precisamos voltar a refletir sobre os direitos do homem, que estão acima de todas as leis, sobre o Direito Natural, que recusa validade às leis contrárias à justiça.”

[4] ROCHA JÚNIOR, p 54.

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