A retrovenda com o escopo de garantia e o negócio jurídico indireto diante dos negócios fiduciários e do direito de retrato

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03/08/2019 às 15:08
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A retrovenda é um pacto adjeto à compra e venda de imóveis, que permite ao vendedor reaver o bem em até três anos, restituindo o preço e despesas ao comprador.

1. GENERALIDADES

Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume III, 1975, pág. 181) via a retrovenda como o pacto adjeto à compra e venda, mediante o qual o vendedor estipula o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo ao adquirente o preço acompanhado das despesas realizadas.

Trata-se de instituto que se prende em suas raízes ao direito romano, mas que veio encontrar maior desenvolvimento no direito francês, de onde se irradiou, conquistando lugar em todos os sistemas, como ensinou Agostinho Alvim (Da compra e venda e troca, n. 163).

Seu objeto é, tão-somente, a venda imobiliária.

Entende-se que o vendedor tem a faculdade de retrato por prazo limitado a três anos (prazo decadencial), improrrogáveis, a bem da segurança da propriedade, que seria afetada caso fosse estipulado um prazo mais longo.

A declaração de resgate, sem perder a natureza recepticia, é unilateral, e, uma vez realizada regularmente, o comprador tem de entregar a coisa sem dissentir.

Os autores, como é o caso de Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 185), entendem que não cabe novo imposto de transmissão, isto porque não se trata de nova venda.

A ação pode ser intentada contra o comprador ou seus herdeiros, bem como contra o terceiro adquirente, ainda que este ignore a cláusula de compra e venda.

Para Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, volume III, 24ª edição, pág. 203), a retrovenda u pactum de retrovendendo é a cláusula adjeta à compra-e-venda (RT, 728:257; 179: 590:231, dentre outras), pela qual o vendedor se reserva o direito de reaver, no prazo máximo de três anos, o imóvel alienado, restituindo ao comprador o preço ou o valor recebido, mais as despesas por ele realizadas mesmo durante o período de resgate, desde que autorizadas por escrito, inclusive as empregadas benfeitorias necessárias ao imóvel (CC, artigo 505).

O pacto de retrovenda, apenas é admissível nas vendas de imóveis (RT 500:108, 225:228, RF 67:299), torna a propriedade resolúvel, já que tem o condão de reduzir as partes contratantes ao statu quo ante, pois o imóvel vendido retornará ao patrimônio do alienante, que restituirá ao adquirente não só o preço recebido, atualizado monetariamente apenas se houver previsão contratual nesse sentido, mas também todas as despesas efetuadas com escritura, sisa, impostos e taxas incidentes sobre o bem alienado, emolumentos de registro, reembolsando-o, ainda, dos dispêndios realizados com benfeitorias necessárias do imóvel, até ao valor acrescentado à propriedade por esses melhoramentos. Porém, como ainda acentuou Maria Helena DIniz (obra citada, pág. 204), não haverá devolução de aluguéis que, porventura, o adquirente percebeu pela utilização do imóvel. A aquisição, portanto, é condicional caracterizando-se a retrovenda como condição resolutiva aposta ao contrato. O adquirente terá propriedade resolúvel, que se extinguirá no instante em que o alienante exercer o seu direito de reaver o bem, mediante declaração unilateral de vontade, não sujeita a nenhuma forma especial.

Determina o artigo 505 do Código Civil de 2002:

Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias.

Pelo artigo 506 do Código Civil de 2002 e parágrafo único, tem-se que:

Art. 506. Se o comprador se recusar a receber as quantias a que faz jus, o vendedor, para exercer o direito de resgate, as depositará judicialmente.

Art. 498. A proibição contida no inciso III do artigo antecedente, não compreende os casos de compra e venda ou cessão entre co-herdeiros, ou em pagamento de dívida, ou para garantia de bens já pertencentes a pessoas designadas no referido inciso.

Art. 499. É lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão.

Parágrafo único. Verificada a insuficiência do depósito judicial, não será o vendedor restituído no domínio da coisa, até e enquanto não for integralmente pago o comprador.

Assim, se o adquirente se recusar a devolver o prédio, negando-se a receber, dentro do prazo para o resgate do imóvel, que lhe foi alienado, o quantum a que tem direito, o alienante para exercer seu direito, estipulado no contrato de readquirir o imóvel por ele vendido, deverá depositá-lo em juízo, consignando em juízo. Mas, se, porventura, o vendedor vier a consignar em juízo (ação de consignação em pagamento, cujo caráter é declaratório), quantia inferior à devida, apenas lhe será restituída a propriedade do bem quando, dentro de prazo razoável determinado pelo juiz, pagar integralmente o comprador, completando o numerário que lhe é devido.

Se o comprador recusar, sem justa causa, a receber o valor da restituição do preço e o devolver o prédio, o vendedor poderá promover uma notificação para ressalva de direitos, consignando em juízo as importâncias exigidas no artigo 505 do Código Civil de 2002, podendo até usar ação reivindicatória para obter de volta o imóvel (artigo 1.359 do Código Civil de 2002). O resgate resolve a venda, operando a reaquisição do domínio pelo vendedor.

No direito civil italiano, Roberto de Ruggiero (Instituições de direito civil, volume III, 3ª edição, pág. 240 a 243, tradução Ary dos Santos) ensinou que a venda com pacto de resgate foi vivamente combatida no momento da compilação do Código, e ainda hoje considerado por muitos um instituto perigoso pelas fáceis questões a que dá lugar, como assinalou Bonelli (Il diritto di riscatto nella compravendita e le condizioni del suo coercizio, 1895, I, pág. 592 e seguintes). O resgate convencional é um pacto que se adita à venda, pelo qual o vendedor se reserva a faculdade de retomar a coisa vendida mediante a restituição do preço, das despesas feitas e de qualquer outro pagamento legítimo feito com essa venda com as reparações necessárias e com as que aumentaram o valor da coisa ou que a acresceram. Na lição de Ruggiero é uma condição resolutiva potestativa, cuja verificação é deixada ao livre arbítrio do vendedor e que produz a rescisão da venda e o consequente regresso da propriedade da coisa ao vendedor, sem necessidade de uma declaração particular do comprador a tal determinada e, assim, mesmo contra sua vontade. Para Ruggiero (obra citada, pág. 240), isso distingue nitidamente o pacto de resgate do pactum de retrovendendo que, obriga sim o comprador a revender, mas não tendo (como aquele) eficácia real, não é por si o suficiente, sem uma nova declaração de vontade do comprador, para fazer adquirir pelo vendedor o domínio da coisa. Essa venda com pacto de resgate, no direito italiano (artigo 1.509 do Código Civil), é aplicável tanto à venda imobiliária como à mobiliária, gerando um estado grave de incerteza acerca da propriedade definitiva de uma coisa, não podendo ser estipulado, senão, por um prazo curto, fixado na lei italiana, em, no máximo, 5 (cinco) anos (artigo 1.501 do Código Civil italiano). O termo corre contra qualquer pessoa, ainda que de menor idade, salvo o regresso contra quem de direito, mas deve, além disso, para produzir um vínculo real, ser concluído depois da conclusão da venda, e sem alteração de preço, pois que, se for estipulado depois da conclusão da venda, não pode valer senão como um pactum de retrovendendo.

O contrato de compra e venda, conforme a doutrina de Orlando Gomes, in Contratos, Forense, 23ª ed., p. 222, pode ser tido como bilateral, oneroso, comutativo, ou aleatório, de execução instantânea, ou diferida. Havendo obrigações para ambas as partes, sendo para o vendedor a entrega do bem e, para o comprador, o pagamento do preço, o que também caracteriza a onerosidade da relação de compra e venda, não há dúvidas quanto à necessária bilateralidade inerente a este tipo de contrato. Isto porque, realizada a transferência a título gratuito, caracterizada estará a doação, exigindo-se, deste modo, a pretensão de vantagem patrimonial pelos contratantes.

A comutatividade atribuída ao contrato de compra e venda diz respeito à equivalência da força das prestações para a realização do negócio, ainda que não necessariamente idênticas a título econômico, mas sempre interdependentes para a efetivação do pacto, ou seja, apenas havendo o pagamento, haverá a entrega da coisa.

Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, XXXIX, § 4.295, 2, pág. 168), à luz do entendimento de Lobão (Dissertação v, sobre o pacto de retrovendendo, in Fascículo de Dissertações Jurídico-Práticas, parágrafo 16, pág. 252), invocando comentário ás Ordenações Filipinas (Livro IV, tit. 12), defendeu a tese de que a retrovenda pode ser aposta não apenas ao contrato de compra e venda, mas ainda ao contrato de troca, à dação em pagamento, à desapropriação, desde que a lei especial não o vede. No entanto, o ministro Moreira Alves (obra citada, pág. 116) ensinou que, ainda quando se configure nas hipóteses aventadas por Lobão e por Pontes de Miranda reserva semelhante à que se verifica na retrovenda, não se tratará propriamente de retrovenda, mas de cláusula que encerra condição resolutiva potestativa (cuja aposição ao negócio jurídico é lícita, desde que não vedada por lei especial), a que, em consequência, aplicar-se-á a disciplina das condições resolutivas em geral, e não as normas que regulam, especificamente, a retrovenda. Esta somente poderá ser aposta a contrato de compra e venda.

Aliás, Hahn (Der Wiederkauf, pág. 43), invocando Glück, entende que a retrovenda não é sequer imaginável sem uma compra e venda anterior, pois ela é apenas consequência de uma outra compra e venda. Assim a retrovenda não pode incidir em cláusula de cessão de direitos (TJPR, RT 590/231). Há um acórdão do STF, RE 71.236, julgado em 27.5.1971, que admitiu a retrovenda em promessa de compra e venda.

Admitem a retrovenda os Códigos Civis da Itália, França, Portugal, Argentina, dentre outros.

Sua natureza é de pacto adjeto de compra e venda, pois, se for ajustada em ato apartado, deixará de ser cláusula especial, para erigir-se em promessa unilateral de vender, como explicou Agostinho Alvim (Da compra e venda e da troca, n. 163).

Seu objeto é tão-somente a venda imobiliária. Como tal, como envolve a aquisição da propriedade imóvel, deve ser levado a registro de imóveis. A cláusula de retrato só terá validade se feita em escritura pública ou em instrumento particular, nos termos da lei civil, desde que registrada em Cartório de Imóveis (Lei nº 6.015, artigo 167, I).


2. A RETROVENDA COM ESCOPO DE GARANTIA NO NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO

Trata-se a retrovenda de um negócio jurídico indireto.

Assinalou o ministro Moreira Alves (A retrovenda, 2ª edição, pág. 15) que é indiscutível que a retrovenda persiste no direito moderno com a função de permitir que o vendedor, por qualquer motivo que o tenha levado a alienar a coisa, possa recuperá-la posteriormente, e, como ensinava Rubino (La compravendita, n. 227 - A, páginas 405/406), um desses motivos é o da pressão da necessidade momentânea de dinheiro, não se podendo deixar de reconhecer que, nessa hipótese de utilização normal da retrovenda (não há sequer escopo de garantia, pois o comprador quer tornar-se proprietário do imóvel que o vendedor só aliena com a aposição do pacto de retrovenda), o vendedor não receberia a quantia que lhe era entregue pelo comprador a título de preço como tal, já que, sendo sua intenção restituí-lo passado o momento da necessidade, a receberia como empréstimo e não como satisfação do direito do vendedor. Na lição do ministro Moreira Alves, isso mostra que a intenção com a qual o vendedor recebe a quantia que lhe é entregue como preço não desvirtua a causa do negócio jurídico, que é a finalidade prática para a qual, objetivamente, ele foi criado. A causa se determina objetivamente (é a função econômico-social que o direito objetivo atribui a determinado negócio jurídico), ao passo que o motivo se apura subjetivamente (diz respeito a fatos que induzam as partes a realizar o negócio jurídico). Não é, pois, a maior ou menor intensidade do elemento subjetivo, que é o motivo, que vai fazer se transforme ele no elemento causa, que se situa exclusivamente em plano diverso, no terreno da objetividade.

Assim só não haverá negócio jurídico indireto em sentido estrito quando à retrovenda com escopo de garantia se aponham cláusulas que sejam incompatíveis com as consequências jurídicas da compra e venda. Não se trata de negócio fiduciário, dentro da construção romana, que se caracterizava pela desproporção entre a finalidade a atingir e o meio empregado para isso, e decorre da conjugação de um negócio jurídico de eficácia real (a transferência plena e irrevogável da propriedade ou de outro direito) com um negócio de eficácia puramente obrigatória (correspondente ao pactum fiduciae, e em virtude do qual o fiduciário se obriga a usar da forma convencionada o direito que adquiriu, restituindo-o, mais tarde, ao fiduciante ou transferindo-o a terceiro). Na construção germânica, em negócio dessa natureza, o fiduciário adquire ou um direito de propriedade resolúvel, ou um direito real limitado sobre a coisa do fiduciante, ou então, em se tratando de direito de crédito, obtém direito cujo conteúdo é limitado pela lei em conformidade com o escopo visado pelas partes. Noticiou o ministro Moreira Alves (obra citada, pág. 7), que, na concepção devida a Dernburg, no negócio jurídico fiduciário, se distinguem nitidamente a relação externa entre o fiduciário e terceiros, e a relação interna entre o fiduciário e o fiduciante; naquela, o fiduciário, surge como proprietário de uma coisa ou como titular de um direito de crédito, dispondo, perante os terceiros, das faculdades que formam o conteúdo desses direitos, nesta, o fiduciário aparece como simples mandatário do fiduciante.

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Afirma-se que, na retrovenda com escopo de garantia, concorrem todos os requisitos para configurar-se o negócio jurídico indireto em sentido estrito. As partes recorrem a um negócio jurídico típico (compra e venda com pacto de retrovenda), sujeitando-se à sua disciplina formal e substancial, para alcançar um fim prático ulterior (garantia de uma dívida), o qual não é normalmente atingido por parte desse negócio jurídico típico.

A retrovenda com escopo de garantia deve ser vista como um negócio jurídico indireto.

Os negócios jurídicos indiretos são caracterizados pelo emprego de negócios para a consecução de fins que se obtém normalmente por outro caminho. Nos negócios jurídicos indiretos, diferentemente dos dissimulados, os negócios são verdadeiros na sua totalidade, apesar de produzirem efeitos complexos. As partes não pretendem dissimular, mas conseguir efeitos jurídicos idênticos empregando simultaneamente várias formas jurídicas.

Quanto a questão da cláusula que autoriza o credor a ficar com o objeto da garantia, Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, vol. XXI, § § 2.669, pág. 332/333) alegou que "quem é outorgado em pacto de transmissão em segurança não poderia ficar subordinado à ratio legis do artigo 765 do Código Civil, porque já é o adquirente". Tal ilação se fez com relação ao Código Civil revogado e se reforça diante da atual disciplina civil.

Para o ministro Moreira Alves (A retrovenda, segunda edição, pág. 90), na retrovenda estamos diante de uma condição potestativa simples (ou não arbitrária), pois ela não consiste num puro querer, ou num fato material insignificante, mas num ato que coloca em jogo interesses sérios. Para ele, a retrovenda no direito civil brasileiro é condição resolutiva potestativa. Ocorrida a condição resolvem-se, ipso iure, o contrato de compra e venda e o domínio do comprador sobre a coisa. Trata-se, portanto, de resolução real; a propriedade é resolúvel, até que se verifique, ou não a condição resolutiva potestativa.

Contra essa tese levantou-se Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, XXXIX, § 4.291, páginas 163 e 164). Assim argumenta:

a) Compra-e-venda sob condição resolutiva de retrovenda é contradição em si mesma, porque a compra-e-venda se desfaria e não se poderia pensar em venda a retro;

b) A retrovenda não é condição resolutiva porque não tem eficácia ex tunc, uma vez que até o exercício do direito de retrato, o comprador não está obrigado a devolver os frutos que colheu, nem o vendedor deve juros sobre o preço;

c) Tanto a retrovenda não é condição que, se fosse, seria condição si volam, e importaria derrogação a princípios como o do D. XLIV, 7,8).

Para Pontes de Miranda, ainda, a retrovenda tem eficácia pessoal, porém, erga omnes.

Nela nada se cancela, nem se revoga, nem se desfez, nem se retracta, nem se rescinde; exerce-se o direito a que o adquirente retrovenda, isto é, revenda a quem vendera. Larenz apresentou conclusões semelhantes, em seu Lehbruch des Schuldrechts.

Considerando a natureza jurídica da retrovenda como condição resolutiva potestativa, o preço a restituir tem de ser o mesmo que o da compra e venda primitiva.


3. A RETROVENDA DIANTE DOS NEGÓCIOS SIMULADOS E OS FIDUCIÁRIOS

Não se trata de negócio jurídico simulado.

Cariota-Ferrara (I Negozi fiduciari, n. 80, pág. 150) sustentou que a retrovenda com escopo de garantia não é negócio jurídico simulado. Aliás, na Alemanha. Von Tuhr, Golz, Leist, Oertmann, Endemann e Kohler se manifestaram pela seriedade da venda com escopo de garantia.

Não se trata de negócio jurídico fiduciário.

Nos negócios fiduciários, como bem advertiu, para o direito moderno, Regelsberger, há uma desproporção entre o fim e o meio.

Kohler, aliás, já justificava que havia uma categoria de negócios jurídicos – a que chamou de negócios jurídicos encobertos, por se caracterizarem pela utilização para se alcançar escopo diverso da finalidade para a qual a ordem jurídica os criara, e a que se pode dar a denominação de negócios jurídicos indiretos, que abrangia as seguintes subespécies:

a) Negócios fiduciários;

b) Negócios jurídicos indiretos, em sentido estrito (aos quais Kohler não atribuía nome específico e Messina a eles alude como negozi indiretti in senso stretto);

c) Negócios com pessoa interposta.

Disse o ministro Moreira Alves que a retrovenda com escopo de garantia manifestadamente não é negócio com pessoa interposta. Será, porém, negócio jurídico ou negócio jurídico indireto em sentido estrito?

Três construções são encontradas na doutrina com relação ao negócio jurídico fiduciário;

a) A construção romana, pela qual o negócio fiduciário (que encontra seu precedente histórico na fidúcia romana) se caracteriza – segundo Regelsberger – pela desproporção entre a finalidade a atingir e o meio empregado para isso, e decorre da conjugação de um negócio jurídico de eficácia real (Transferência plena e irrevogável da propriedade ou de outro direito) com um negócio de eficácia puramente obrigatória (corresponde ao pactum fiduciae) e em virtude do qual o fiduciário se obriga a usar da forma convencionada o direito que adquiriu, restituindo-o, mais tarde, ao fiduciante, ou transferindo-a a terceiro) – é a concepção dualista do negócio jurídico do tipo romano, devida a Goltz, como alertou o ministro Moreira Alves, ou pela qual o negócio jurídico se distingue pelo poder do abuso que corresponde à existência de uma simples confiança pessoal do adquirente de que este não fará um uso do poder jurídico a ele transferido que esteja em contraste com as finalidades econômicas para as quais foi transmitido aquele poder. É a concepção unitária do negócio fiduciário do tipo romano, devida a Grassetti;

b) A construção germânica, segundo a qual – como esclareceu Schultze - , em negócio dessa natureza, o fiduciário adquire ou um direito de propriedade resoluível ou um direito real limitado sobre a coisa do fiduciante, ou, então, em se tratando de direito de crédito, obtém direito cujo conteúdo é limitado pela lei em conformidade com o escopo visado pelas partes;

c) A construção devida a Dernburg, em virtude da qual, no negócio fiduciário, se distinguem nitidamente a relação externa entre o fiduciário e terceiros, e a relação interna entre o fiduciário e o fiduciante; naquela, o fiduciário surge como proprietário de uma coisa ou como titular de um direito de crédito, dispondo, perante os terceiros, das faculdades que formam o conteúdo desses direitos; nesta, o fiduciário aparece como simples mandante do fiduciante.

Diga-se que a alienação fiduciária em garantia do direito brasileiro não é negócio fiduciário.

Diz-se que a propriedade fiduciária decorrente da alienação fiduciária em garantia não se confunde com a propriedade que se transferiu ou se prometeu transferir através do negócio fiduciário propriamente dito. A propriedade fiduciária é uma nova garantia real que se não confunde com a propriedade que, através de negócio fiduciário, se transmite ao credor com o escopo de garantia, nem com qualquer dos direitos reais limitados de garantia (penhor, anticrese ou hipoteca).

Aliás, os direitos reais em garantia nada mais são do que direitos reais plenos (a propriedade plena) ou direitos reais limitados de gozo (como o usufruto), que, em virtude do negócio fiduciário do tipo romano ou do tipo germânico, se transferem (o próprio direito, ou conforme o caso, seu exercício) ao credor para, sem perderem suas características próprias, garantirem o crédito.

Disse o ministro Moreira Alves (A retrovenda, 2ª edição, pág. 23), que “se é certo que há autores que pretendem distinguir, na propriedade que se transmite ao credor por força de negócio fiduciário, a propriedade formal que pertenceria ao fiduciário e a propriedade material que seria do fiduciante, é também indubitável que os juristas atualmente, em maioria esmagadora, salientam que a propriedade fiduciária transferida por negócio fiduciário ao credor, para garantir-lhe o crédito não difere estruturalmente do direito de propriedade que, sem tal escopo, se transmite ao adquirente.

Em se tratando de negócio fiduciário do tipo romano, a propriedade é propriedade plena, tanto que o credor pode aliená-la a terceiro sem que o devedor, ao pagar a dívida, tenha outro direito contra ele que não o de exigir perdas e danos por não poder o credor retransferir-lhe a coisa como se obrigou pelo pactum fiduciae,; e contra o terceiro nenhum direito assiste ao devedor. Em caso de negócio fiduciário do tipo germânico, a propriedade fiduciária que dela resulta nada mais é do que uma propriedade limitada, porque subordinada a condição resolutiva (o pagamento do débito do devedor), motivo por que, se o credor, antes de ocorrida a condição, a transferir a terceiro, este adquirirá também como propriedade resolúvel, perdendo-a para o devedor, se dívida for solvida.”

Mas diferente do negócio fiduciário é o negócio jurídico indireto, em sentido estrito. Este se dá quando as partes recorrem a um negócio jurídico típico, sujeitando a sua disciplina formal e substancial para alcançar um fim prático ulterior (o escopo da garantia que é motivo, e não causa), o qual não é normalmente atingido por meio desse negócio. No negócio jurídico indireto em sentido estrito, as partes querem que ele produza todas as suas consequências jurídicas, mas para atingirem escopo que não se coaduna com essas consequências, não havendo, porém, como ocorre no negócio fiduciário (segundo a construção romana ou a devida a Dernburg), questão de plus ou de minus entre as finalidades jurídica e econômica. No negócio fiduciário, sua finalidade é mais restrita do que a do negócio jurídico adotado, ao passo que, no negócio jurídico indireto em sentido estrito, porquanto, “existindo a causa o negócio jurídico produz os seus efeitos e é válido; pode a causa não corresponder ao elemento determinante do negócio, no caso de ser ele considerado não como escopo último, mas como meio para um escopo ulterior; tudo isso é dogmaticamente irrelevância dos motivos, como salientou De Martini (Profili dela vendita commerciale e del contrato estimatório, pág. 367), citado pelo ministro Moreira Alves, em sua obra sobre retrovenda.

Sabe-se, aliás, com frequência, que a compra e venda com pacto de retrovenda é usada para servir, indiretamente, de garantia a empréstimo; ao invés de duas pessoas celebrarem contrato de mútuo com garantia real, efetuam compra e venda com pacto de retrovenda, de modo que o vendedor obtém, a título de preço, a quantia de que necessita, e o comprador recebe a coisa que somente retornará à propriedade daquele se houver a restituição da importância que faz as vezes de preço e o reembolso das despesas, dentro de determinado prazo (no direto brasileiro, num prazo decadencial de três anos). Desta forma está o credor mais protegido do que se recebesse uma garantia real, cuja eficácia, em nosso sistema jurídico, como disse o ministro José Carlos Moreira Alves (Retrovenda, 2ª edição, pág. 5), se acha bastante enfraquecida.

Demais, daí a gravidade do negócio, o emprego da retrovenda com escopo de garantia pode permitir ao mutuante, que figura como comprador, a obtenção de vantagens usurárias.

Não se trata, pois, a retrovenda com escopo de garantia de negócio simulado. Não é.

Na retrovenda com escopo de garantia concorrem todos os requisitos para configurar-se o negócio jurídico indireto em sentido estrito. Com efeito, como ensinou o ministro Moreira Alves (obra citada, pág. 13), as partes recorrem a um negócio jurídico típico (compra e venda com pacto de retrovenda), sujeitando à sua disciplina formal e substancial, para alcançar um fim prático ulterior (garantia de uma dívida), o qual não é normalmente atingido, por meio desse negócio jurídico típico. Como disse o ministro Moreira Alves, esse esquema é possível pela distinção entre causa (fim prático para o qual foi criado o negócio jurídico típico) e motivo (o fim prático a que visam realmente as partes), dada a irrelevância jurídica deste, ressalvadas as hipóteses expressamente previstas em lei. Aliás, em geral, as partes apõem ao contrato de compra e venda com pacto de retrovenda cláusulas que refletem a finalidade de garantia (assim, segundo a qual o vendedor passa a possuir direto da coisa, ou a título de comodato, ou a título de locação).

Diversos autores têm a retrovenda com escopo de garantia como negócio jurídico indireto. São eles, dentre outros: De Gennaro, Ruggiero – Maroi, Martini, Ascarelli, Rubino, Cariota –Ferrara.

O regime da simulação não se aplica a hipótese da retrovenda com escopo de garantia, que é negócio jurídico indireto.

Bianca, citado pelo ministro Moreira Alves (obra citada, pág. 15), reconhecia que a retrovenda com escopo de garantia é realmente querida e, portanto, não pode ser enquadrada entre os negócios jurídicos simulados, para negar que seja ela negócio jurídico indireto em sentido estrito, sustentando que “a constituição de uma garantia, na verdade, exclui o preço, isto é, um dos elementos em que se individualiza a causa do contrato de venda”, e isso porque, como o alienante se obriga a restituir a soma do dinheiro recebida, “ela, portanto, não pode justificar-se como satisfação do direito do vendedor, mas entrega do dinheiro em execução, geralmente de um mútuo ou, como quer que seja, como correspectivo de uma prestação estranha e distinta daquela que se individualizaria com base no pretenso contrato de compra e venda”. Haveria, portanto, uma incompatibilidade entre o escopo da garantia e o esquema da compra e venda com pacto de retrovenda, sendo que, nesse caso, aquele escopo não seria motivo, mas causa, e isso porque “o relevo da vontade das partes é tão intenso, que, em nosso entender, ele determina, independentemente da existência de uma verdadeira e própria relação obrigatória, um vínculo de garantia que é tal não só no plano econômico, mas no plano jurídico.

O que é causa?

Fala-se na causa e no objeto como elementos essências do negócio jurídico, além das partes.

Sabe-se que as partes do negócio jurídico procuram atingir um objetivo prático que é precisamente a função econômico-social do negócio que estão praticando. Esse objetivo prática, se socialmente útil, recebe a proteção do direito. Chama-se causa do negócio jurídico. A causa não pode ser impossível nem ilícita. É impossível (pagamento de débito que não existe, enriquecimento que não corresponde ao pagamento de uma obrigação) quando o resultado prático que a constitui não pode ser conseguido. É ilícita, quando o resultado prático que a constitui não pode ser conseguido, exemplo a alienação da coisa em fraude a credores.

Há uma profunda diferença entre causa e motivo.

A causa que o direito civil considera e protege não é o escopo mediato do ato, vale dizer, a série de considerações, representações ou impulsos que atuam sobre a vontade e que são os motivos dele.

Os motivos impelem a vontade à consecução da causa conservando, porém, o caráter subjetivo; a causa se exterioriza no mundo dos fatos através de um ou de outro ato negócio jurídico, mas sempre consoante um tipo. Na venda de uma coisa, a causa do procedimento é o procedimento do preço do comprador. Esse recebimento teve que se enquadrar num modelo jurídico que é o da compra e venda.

Os motivos, sendo individuais, variam conforme as partes; a causa, sendo objetiva, só varia conforme o tipo de negócio, sendo uma única para cada tipo. A causa é digna de proteção do direito que nela encontra o título justificativo dos direitos aquisitivos, modificativos ou extintivos dos negócios jurídicos, os motivos lhe são irrelevantes, a não ser que se manifestem no negócio sob a forma de cláusula acessória.

Os romanos empregavam a palavra causa, não apenas para designar a verdadeira causa (causa final para os doutrinadores), mas ainda para nomear o motivo (causa impulsiva), o fundamento jurídico de um ato (causa eficiente), o processo, a situação jurídica.

Os romanos, em certos contratos, como na compra e venda e nos inominados, não conseguiram elaborar a noção de causa.

Sempre se deve distinguir-se a causa da motivação, pois que esta, mesmo ilícita, não chega a afetar o negócio, desde que aquela não se possa irrogar a mesma fala.

Fala-se das razões determinantes.

Na pesquisa as razões determinantes do negócio jurídico, Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 344) ensinou que é necessário fazer uma distinção fundamental, que consiste em deslocar a causa do ato, dos motivos que levaram aquele a praticá-lo. Tais motivos se apresentam com uma razão ocasional ou acidental do negócio, e nunca faltam como impulso originário, mas não têm nenhuma importância jurídica, como salientaram Ruggiero e Maroi (Instituzioni, § 29). Para Caio Mário da Silva Pereira o jurista deve relega-los ao plano psicológico, a que seria então afeta a indignação da deliberação consciente. E detém-se apenas na investigação da causa propriamente dita que se deve caracterizar na última das razões determinantes do ato. Na venda, por exemplo, a causa seria a obtenção do dinheiro, e, como esta constitui a prestação do vendedor, pode-se dizer que a causa do negócio jurídico praticado por quem realiza uma venda se situa na obrigação da outra parte, e se configura então como o motivo próximo, determinante dele, desprezada toda a motivação individual ou razão subjetiva. Nos negócios jurídicos bilaterais, esta pesquisa se apresenta com maior simplicidade e é de resultado mais fácil. Mas, às vezes, é menos ostensiva.

A causa tanto pode ser investigada nos negócios jurídicos bilaterais, quanto o pode ser unilateralmente, nos negócios jurídicos unilaterais (nos testamentos, a causa da declaração de vontade do testador é a liberalidade ou o benefício com o legatário).

Mas há negócios jurídicos em que se não cogita da causa que deixa então de integrar a sua etiologia, enquanto que em outros o fim determinante deve concorrer na verificação da validade da emissão de vontade, que se reputa articulada com ele. Para Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 345), consideram-se, portanto, dispensável a indagação causal, quando o fim se situa fora de seus requisitos materiais, e, ao contrário, é fundamental quando os integra.

Só haverá negócio jurídico indireto em sentido estrito, quando a retrovendas com escopo de garantia se aponham cláusulas que sejam incompatíveis com as consequências jurídicas da compra e venda.

Na lição do Ministro José Carlos Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 4º edição, pág. 5) o negócio se diz indireto quando as partes recorrem a um negócio jurídico típico, sujeitando-se à sua disciplina formal e substancial, para alcançar um fim prático ulterior (o escopo de garantia, que é motivo, e não causa), o qual não é o normalmente atingido por meio desse negócio. Assim, a compra e venda tem como causa a troca de coisa por dinheiro, e, como escopo último (motivo) qualquer utilização da coisa pelo comprador como proprietário; já a compra e venda com o fim de garantia (negócio jurídico indireto) é uma compra e venda (negócio jurídico típico) em que a causa é a desta (troca da coisa por dinheiro), mas em que o escopo último (motivo) não é aquele a que normalmente se visa quando se celebra uma compra e venda (qualquer utilização da coisa pelo comprador como proprietário), mas o de a coisa adquirida servir ao seu proprietário como garantia do pagamento do crédito”.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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