Uma decisão intempestiva

08/08/2019 às 16:18
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A transferência de Lula para São Paulo foi autorizada após alegações de perturbação da rotina da PF em Curitiba. A defesa recorreu ao STF.

A superintendência da Polícia Federal em Curitiba solicitou a transferência do ex-presidente para o Estado de São Paulo sob o argumento de que a prisão de Lula altera a rotina do prédio da PF. Nesta quarta-feira, após a decisão da Justiça Federal, o departamento estadual de execução criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a transferência para o presídio de Tremembé, no interior do estado.

A decisão intempestiva do juízo criminal federal em Curitiba de transferir o ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva daquela capital do estado do Paraná para o Estado de São Paulo, foi, por sua arbitrariedade, mais uma ofensa, no direito processual concreto, ao chamado devido processo legal.

Na decisão divulgada, no dia 7 de agosto do corrente ano, a juíza Carolina Lebbos citou até o barulho de militantes petistas no entorno da carceragem em Curitiba. Ela mencionou a “perturbação do sossego no local”, como se os vizinhos da Polícia Federal não estivessem acostumados ao som de sirenes e buzinas.

A juíza também alegou que a mudança forçada ofereceria “melhores condições de ressocialização do preso”. Soou como deboche, porque a defesa era contrária à transferência. O pedido foi feito pela PF, subordinada ao ministro Sergio Moro.

A defesa do ex-presidente entrou então com petição no STF (PET 8312), endereçada ao ministro Gilmar Mendes, “na condição de ministro-vistor" do pedido de Habeas Corpus (HC) 164493, de relatoria do ministro Edson Fachin, que está com julgamento suspenso na Segunda Turma do STF, em razão do pedido de vista do ministro. A defesa pediu a concessão de medida liminar para soltar o ex-presidente e, caso não fosse concedida a liberdade, requereu a suspensão da eficácia da decisão proferida pelo juízo da 12ª Vara Federal Criminal de Curitiba e pela VEP de São Paulo, até final julgamento do HC 164493, bem como que fosse garantido ao ex-presidente o direito de permanecer em Sala de Estado Maior.

Como se sabe o pedido apresentado pela defesa do ex-presidente da República foi de natureza de uma cumulação eventual. Ab initio, por sua liberdade, uma vez que não houve ainda o trânsito em julgado; se não concedido, se requeria a suspensão daquela decisão intempestiva de transferência do preso, fundada em razões nebulosas e sem que o preso, sequer, fosse intimado para falar sobre ela.

Num primeiro momento, os advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins, que defendem Lula, concordaram com remoção, mas não nos moldes propostos pela PF, que está submetida ao Ministério da Justiça. Para a defesa, ele deveria ser transferido para uma sala de Estado Maior, por se tratar de ex-presidente da República.

Na petição encaminhada ao ministro Gilmar Mendes, os advogados afirmam que a transferência de Lula para presídio comum vai piorar sua situação jurídica. "A prevalecer esse entendimento de que o Estado não tem condições de assegurar ao Paciente a Sala de Estado Maior, impossível cogitar-se na piora da sua situação jurídica — mediante a transferência a um estabelecimento penitenciário comum para cumprimento de uma pena sequer definida por decisão condenatória definitiva (transitada em julgado)", diz a petição.

Destaca-se o princípio constitucional que assegura a todos o cumprimento de pena perante um juiz natural (aquele com competência fixada em lei para processar e julgar o caso. O juiz da execução de pena é o juiz natural e que a Lei de Execuções Penais determina que cabe ao juiz natural zelar pelo cumprimento correto da pena e fiscalizar a execução.

Considera-se juiz natural aquele cuja competência é previamente estabelecida na Constituição Federal ou em lei para o julgamento de todo e qualquer caso. Com isso se evita o chamado tribunal ou juízo de exceção, ou seja, aquele tribunal criado após a ocorrência do ilícito penal para julgamento de um caso específico, que enseja a designação de um juiz de ocasião ou magistrado encomendado e que é vedado pela Constituição (art. 5º, inc. XXXVII). Como se vê, o princípio do juiz natural encerra verdadeira garantia ao cidadão, que tem a certeza de que será julgado por um juiz previamente conhecido, cercado de garantias que lhe assegurem a independência e imparcialidade e não por um juiz especialmente designado para o caso concreto.

A doutrina brasileira, em especial com Rogério Lauria Tucci e José Roberto Cruz e Tucci (Constituição de 1988 e processo, 1989, pág. 15) emprega a locução devido processo legal no sentido da enumeração das seguintes garantias oriundas: a) o direito à citação e ao conhecimento do teor da acusação; b) direito a um público julgamento dentro de uma duração razoável; c) direito ao arrolamento de testemunhas e à notificação das mesmas para comparecimento perante os tribunais; d) direito ao devido contraditório; e) direito à plena igualdade entre acusação e defesa; f) direito de não ser condenado com provas ilegalmente obtidas; g) privilégio contra a autoincriminação.

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quarta-feira, dia 7 de agosto do corrente ano, suspender a eficácia da decisão proferida pelo Juízo da 12ª Vara Federal Criminal de Curitiba e pela Vara de Execução Penal (VEP) de São Paulo para transferência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pela decisão da Justiça Federal, o ex-presidente seria transferido para São Paulo. Com isso, apesar de negar o pedido de liberdade solicitado pela defesa, foi assegurado ao ex-presidente Lula o direito de permanecer em Curitiba (PR) e em Sala de Estado Maior.

Lembre-se o entendimento do ministro Marco Aurélio pela soltura sob o argumento de que não cabia à corte apreciar o pedido da defesa antes de ele tramitar pelas instâncias inferiores da Justiça.Disse o ministro Marco Aurélio que a Corte não é o “foro próprio” para avaliar a decisão da juíza Carolina Lebbos, da 12.ª Vara Federal em Curitiba. “Qual é o ato que está sendo apreciado pelo Supremo? É um ato único da juíza de Execuções Penais de Curitiba. Os atos não estão submetidos à jurisdição do Supremo. Os atos da juíza devem ser impugnados no foro próprio”.

O juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci, que decidiu autorizar a transferência do ex-presidente Lula para o presídio de Tremembé, no interior de São Paulo, foi nomeado pelo ministro Sergio Moro, da Justiça, para integrar o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

O órgão é ligado ao Ministério da Justiça. "Nós contamos com o conselho para nos dar sugestões de como resolver os problemas do sistema [penitenciário]", disse Moro na posse de Sorci e de outros integrantes do colegiado, em março.

Sorci, que é juiz corregedor do departamento estadual de execução criminal do Tribunal de Justiça de SP, decidiu que Lula deveria ir para Tremembé pouco depois do anúncio da decisão da juíza Carolina Lebbos, do Paraná, que determinou que o petista deveria sair da Superintendência Federal de Curitiba.

Discute-se se o ex-presidente Lula teria direito a prisão especial.

Prevê o artigo 295 do Código de Processo Penal que há o cumprimento da prisão especial, em local distinto da prisão comum, e que não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este seria recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento. De toda sorte, o preso especial não seria transportado juntamente com o preso comum.

Adito que a referida cela especial pode consistir em um alojamento coletivo, abrangendo vários presos especiais, desde que atendidos requisitos como de salubridade do ambiente, pela concorrência de fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico, adequados à existência humana(artigo 295, § 3º, CPP).

Ora, há casos em que a separação dos agentes públicos presos, que lidam com a segurança, deve ser feita para garantir a sua incolumidade física e não representa um privilégio.

Andou certo projeto que tramitou no Senado Federal, e ali foi aprovado, ao aduzir que ¨é proibida a concessão da prisão especial, salvo a destinada a preservação da vida e da incolumidade física e psíquica do preso, assim reconhecida por decisão fundamentada da autoridade judicial ou, no caso de prisão em flagrante ou cumprimento e mandado de prisão, da autoridade policial encarregada do cumprimento da medida¨. Todavia, afastou a Câmara dos Deputados a modificação referida, mantida a redação do artigo 295, já referenciado.

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Fala-se que o advogado ficaria recolhido em Sala do Estado-Maior, para efeito da prisão especial, até o trânsito em julgado da condenação. Já se entendeu que tal recolhimento em sala, com ou sem grades, na Polícia Militar, atendia ao requerido(HC 99.439 e Reclamação 5.192), e até mesmo o recolhimento em cela individual em ala reservada de presídio federal se mostrava hábil a tanto, como se vê do julgamento na Reclamação 4.733. Mas é mister que se registre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 116.384, Relatora Ministra Rosa Weber, na esteira da Reclamação 6.387, entendeu que o essencial é que o local ofereça instalações e comodidades condignas, como se lê dos julgamentos nas Reclamações 4.535 e 6.387, consideradas as limitações decorrentes da prisão do agente.

Entenda-se, ademais, que o ex-presidente da República, Luis Inácio Lula da SIlva, não é um preso político, pois é preso comum, por haver cometido crime comum.

Não existe no direito positivo brasileiro o direito de ex-presidente da República ao regime de prisão especial Sabe-se que um presidente da República, dentre outras funções constitucionais, tem a missão de ser comandante em chefe das Forças Armadas. Essa a razão pela qual o ex-presidente Lula foi levado a cumprir pena em Curitiba, em cumprimento de execução provisória da pena, onde está o juízo natural de sua condenação, com tratamento especial. Mas, observe-se que ex-ministros, recentemente presos, cumpriram pena sem qualquer regalia. Entretanto é certo que se sedimenta a cognição de se tratar a pena de ex-presidente da República em sala do Estado-maior.

Houve, aquela ocasião, uma construção normativa, à luz dos ensinamentos de J.J.Gomes Canotilho. Para tanto, seria necessário densificar a norma jurídica exposta no artigo 295 do Código de Processo Penal.

Dentro da metódica jurídica normativo-estruturante, são componentes da norma, o programa normativo e o domínio normativo. O programa normativo, como informou J. J. Gomes Canotilho(Direito Constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1179), é o resultado de um processo parcial de concretização assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo. O setor normativo é o resultado do segundo processo parcial de concretização fulcrado sobretudo na análise dos elementos empíricos(dados reais, dados da realidade).

Com isso, tem-se o método estruturante, na concretização da Constituição(que se traduz num processo de densificação de regras e princípios constitucionais), que vai do texto da norma para uma norma concreta, na tentativa de descobrir uma norma de decisão.

Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especificamente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos enfrentados pelo intérprete. Densifica-se um espaço normativo (preenche-se uma norma) para tornar possível a sua concretização e a consequente aplicação de um caso concreto.

Mas uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida de ordenação”, nela contida se decide um caso jurídico, ou seja, quando o processo de concretização se completa através de sua aplicação, como anotou Canotilho(obra citada pág. 1184), ao caso jurídico a decidir: a) a criação de uma disciplina regulamentadora ; b) através de uma sentença ou decisão judicial; c) através da prática de atos individuais pelas autoridades. Com isso uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem a norma de decisão, que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa. Estamos diante de uma norma de decisão.

Observe-se que o ex-presidente Lula está em regime de execução provisória da pena, situação que lhe daria direito a regime especial, com as regalias para tanto, argumento que foi usado para que ele ficasse em Curitiba, em cela especial.

É mais um capítulo de algo que a história irá julgar, mas que se marca pela chaga que há no corpo da sociedade brasileira de ver um dos seus ex-presidentes preso.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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