O tratamento da hanseníase no Brasil e racismo ambiental

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A pesquisa aborda a política sanitária brasileira a partir de 1920 que importou no isolamento em colônias agrícolas dos portadores da doença mencionada e sobre os impactos dessa política na injusta distribuição do espaço urbano e do acesso dessa população

INTRODUÇÃO

O artigo pretende explorar um tema pouco abordado e discutido no Brasil, que é o racismo ambiental. O recorte temático escolhido é o dos portadores de mal de Hansen, isolados por meio de políticas públicas sanitárias, especialmente a partir da década de 1940.

O exílio imposto pelo Estado Brasileiro aos portadores de hanseníase, em especial através de políticas públicas a partir da década de 40, que se tratava basicamente de isolar os doentes em colônias afastadas dos centros urbanos e das respectivas famílias, lhes tirava a identidade, uma vez que deixavam de ser conhecidas por seus nomes de batismo e passavam a ser identificadas por números, em tratamento similar aos recebidos nos campos de concentração da 2ª guerra mundial.

Da mesma forma, o tratamento brutal e preconceituoso por parte do próprio Estado e da sociedade gerou o início de uma nova ordem social na qual experimentaram sofrimentos de toda sorte, bem como, desrespeito aos direitos humanos básicos previstos na Declaração de Direitos Humanos de 1948 e vários outros direitos previstos nas legislações vigentes à época.

Um indivíduo portador de hanseníase sofre as representações sobre a doença que permanece no ilusório popular desde a antiguidade, tais como, as ligadas à “doença que faz cair partes do corpo”.

Como não havia nenhum tipo de tratamento até meados do século XX, as mutilações eram muito comuns, e devido ao horror que as pessoas mutiladas causavam, estas eram isoladas do convívio social.

Muitas representações geraram um conceito sobre a hanseníase, vista como castigo divino, e o doente era considerado uma pessoa suja, contaminada, mutilada, que causava medo e deveria ser evitada (BAIALARD, 2007, p. 8).

O conceito de racismo ambiental nasceu nos Estados Unidos na década de 1980 relaciona-se à exposição desproporcional de grupos raciais a problemas ambientais. Sua evolução se amplia para abarcar o menor acesso desses grupos ao meio ambiente e recursos ambientais.

Assim a noção de ambiente é ampliada para incluir acesso a bens e recursos ambientais, como a terra, a água, energia e espaços verdes e incorporar aspectos de mobilidade e desenho urbano (SOUZA, 2015, p-13).

O racismo institucional, por sua vez, diz respeito às políticas públicas que produzem discriminação e distribuição desigual para membros da sociedade, de forma intencional ou não, bem como os argumentos que justificariam esse tratamento desigual, mediante a ponderação entre os direitos fundamentais de um grupo específico, perante o restante da sociedade, como se dá no caso do isolamento dos portadores de hanseníase.

É importante perceber a dimensão social das políticas públicas sanitárias de isolamento de doentes que sempre afetam e prejudicam os grupos mais vulneráveis, como os portadores do mal de Hansen.


A HANSENÍASE E AS POLÍTICAS DE ISOLAMENTO

A HANSENÍASE, OS ESTIGMAS SANITÁRIOS E SOCIAIS

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa de evolução crônica que se manifesta principalmente por lesões cutâneas, com diminuição de sensibilidade térmica, de forma dolorosa e tátil.

Tais Manifestações são resultantes da ação do Mycobacterium leprae (M. leprae), agente causador da doença de Hansen, em acometer células cutâneas e nervosas periféricas. Durante os surtos reacionais, vários órgãos podem ser acometidos, tais como: olhos, rins, suprarrenais, testículos, fígados e baço.

Alguns eventos no cenário mundial são importantes para contar a história da hanseníase e evidenciar as razões pelas quais esta, vai ganhando contornos e rumos diversos.

Em 1894, na Noruega, o médico Gerhard Armauer Hansen define o agente etiológico da doença. A primeira conferência internacional sobre a lepra, realizada em 1897, em Berlim, é outro evento que merece ser mencionado e que influenciou fortemente as práticas e o tratamento da “lepra” e/ou hanseníase (PANDYA, 2003, p-89).

O movimento sanitário da década de 1910, não tinha, inicialmente, colocado a lepra como um problema nacional, contudo, com os dados alarmantes do crescimento da doença nos estados, a partir da década de 1920 a lepra passa a exigir uma política especifica para o seu combate (CABRAL, 2013, p-85).

Durante vários séculos, os indivíduos foram abandonados, vivendo em um ambiente com total privação de suas necessidades básicas, o que acabaria por leva-los à morte.

Quando internados nos hospitais-colônias, perdiam o contato com o mundo externo, recebendo somente a visita do médico uma vez por ano (GARCIA, 2001, p-209).

A mácula e o preconceito, associados à doença ameaçadora e fatal do passado, permanecem no imaginário da sociedade remetendo os indivíduos ao tabu da morte e mutilações, acarretando grande sofrimento psíquico aos portadores com sérias repercussões na vida pessoal e profissional.

AS POLÍTICAS BRASILEIRAS NO COMBATE AO MAL DE HANSEN E O ISOLAMENTO ESPACIAL

Atualmente a humanidade vem vivenciando transformações que proporcionam a internalização e compreensão dos erros, permitido corrigir a história. A chamada política de combate à hanseníase, que perdurou durante muitos anos em nosso país, não se resumiu àquelas pessoas que foram isoladas nos leprosários.

O início do século XX é marcado pela estruturação de uma política nacional de saúde pública com a criação do departamento nacional de saúde em 1920, sob a direção de Carlos Chagas. Em 1923 é publicado o Decreto 16.300, que aprovou o regulamento do departamento nacional de saúde e adotou, entre outras importante medidas, normas relativas à profilaxia especial da lepra.

Este Decreto estabeleceu de modo geral e compulsório a internação em colônias agrícolas, sanatórios, hospitais e asilos de toda e qualquer pessoa diagnosticada com a doença, o caráter compulsório da medida importava na sua execução a despeito da vontade do doente, adulto ou criança (LAGES, 2011, p-28).

A segregação em colônias agrícolas importava em um apartamento definitivo do doente do convívio familiar e social.

Abrangendo homens, mulheres, crianças e idosos, a medida era adotada independentemente de qualquer aspecto relevante da vida do doente, importando em uma rígida restrição ao contato com parentes, impedindo a manutenção dos laços familiares, assim como o exercício do trabalho ou profissão (LAGES, 2011, p-29).

Ao analisar a proporcionalidade da separação entre pais e filhos sadios, não era imprescindível no eventual contágio, já que havia outros meios menos radicais e severos dessa separação, abalando a base familiar das pessoas envolvidas, comprometendo seu bem-estar e seu psicológico emocional.

Assim sendo não houve um equilíbrio entre as medidas sanitárias restritivas adotadas em conjunto com o pretendido resultado que visava alcançar, e a impetuosidade à vários direitos fundamentais e humanos.

As institucionalizações de políticas sanitárias de combate à hanseníase possibilitaram verificar como a mesma foi concebida no interior da burocracia estatal, com uma finalidade muito simples: a erradicação da doença.

Por outro lado, na perspectiva atual, o grande erro da política adotada ao longo do século passado e que atingiu milhares de brasileiros, foi o de não considerar seus destinatários como sujeitos de direitos fundamentais, mas, apenas como instrumento de uma política baseada no interesse público (LAGES, 2011, p -32).

Em 1941, foi publicado em 02 de abril o Decreto n. 3.171, que reorganizou o departamento nacional de saúde criando o departamento nacional da lepra. O referido decreto editado com fundamento no artigo 180 da Constituição Brasileira de 1937, e que atribuía ao presidente da república poder de legislar sobre todas as matérias de competência da união, promoveu uma centralidade das atribuições administrativas em matéria de saúde no âmbito federal (CAVALIERI E COSTA, 2011, p -3).

Uma política sanitária desumana se consolida com premissas do estado totalitário, que edita o decreto lei sob o n. 610/1949, um ano depois do início da declaração universal de direitos humanos, determinando a mais dura pena ao convívio familiar: a separação compulsória aos filhos de hansenianos, ignorando por completo os tratados internacionais violando os direitos humanos e à dignidade humana. O disposto no decreto lei, acima mencionado, no que se refere aos filhos de portadores de hanseníase em seus artigos:

“Art. 15. Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais. ”

“Art. 16. Os filhos de pais leprosos e todos os menores que convivam com leprosos serão assistidos em meio familiar adequado ou em preventório especial. ”

No governo Vargas (1930-1945), sob a reclusão compulsória, os doentes eram tratados com medicamento fitoterápico. A partir de 1945, com o progresso da indústria químico-farmacêutica, dissemina-se o uso da sulfona e alguns pacientes tiveram, alta médica. Em 1959, com a adoção desse medicamento pela "Campanha Nacional Contra a Lepra", extinguiu-se a internação em "leprosários". Somente em 1962, entretanto, pela aprovação do Decreto nº 968, de 7 de maio, o isolamento é oficialmente extinto (CAVALIERI E COSTA, 2011, p -4).

Apesar disso, muitos doentes permaneceram internados e isolados. Esta política de internação compulsória só acabou de fato em 1986, quando foi recomendada a transformação de alguns "leprosários" em hospitais gerais. Na década de 1970, a Organização Mundial da Saúde-OMS recomendou o emprego da poliquimioterapia (PQT), e desde o início dos anos 1980, a doença vem sendo tratada em regime ambulatorial.

Apesar de o tratamento dispensar a internação, algumas ex-colônias mantêm ainda moradores denominados "internos" até hoje (CAVALIERI E COSTA, 2011, p. 3-4).

Isolamento espacial ou físico é a ausência de contatos ocasionada por fatores segregadores de caráter geofísico, esses fatores e a distância entre as comunidades funcionam como isolantes, quando os meios de comunicação e os transportes de que dispõe a comunidade são rudimentares (LAKATOS, 2006, p -11).

Isolamento espacial foi exatamente a situação imposta pelas políticas públicas brasileiras aplicadas aos portadores de mal de Hansen, isolando essas populações em colônias distantes dos centros urbanos e sem acesso a serviços públicos básicos e de qualidade.

Insta mencionar que tais políticas públicas eram apoiadas por grande parte da população à época, que era favorável a instalação desses verdadeiros guetos com escopo de higienização social, já que a mácula dos portadores da doença não era algo desejável ao convívio dos não portadores.


RACISMO AMBIENTAL E O IMPACTO NA VIDA DOS PORTADORES DE HANSENÍASE

O RACISMO AMBIENTAL

A expressão racismo ambiental, cunhada nos Estados Unidos, se espalhou pelo mundo e tem sido desenvolvida por profissionais de mais variadas disciplinas.

Significa dizer que práticas racistas, voluntárias ou involuntárias, são um fator de determinação das condições ambientais a que estão submetidos grupos vulnerabilizados, em razão de alguns fatos conferidor de identidade, a exemplo de raça, classe social, gênero, origem racional ou renda, no que diz respeito ao desenvolvimento e aplicação de políticas ambientais (SOUZA, 2015, p.35).

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A política pública sanitária brasileira institucionalizada nada mais é do que uma política de isolamento socioespacial, eivada de verdadeiro racismo ambiental e que prejudicou toda uma população do acesso à dignidade e ao próprio direito à cidade.

A situação das políticas públicas brasileiras de combate à hanseníase configura verdadeiro exemplo de população isolada espacialmente, vítima de processos de gentrificação, excluídos do processo de participação política e em desvantagem econômica, vivendo verdadeira situação de invisibilidade social.

Quando o poder público define, por meio de suas políticas, em que ambientes os grupos de indivíduos, como os portadores de hanseníase, podem dispor, significa exercer controle direto sobre os mesmos, sua qualidade de vida, o acesso desses grupos à cidade e a recursos ambientais e aparelhos públicos.

O racismo ambiental gera segregação e torna insustentável o acesso ao espaço geográfico a comunidades vulnerabilizadas, como os portadores do mal de Hansen, em razão de pertencimento a determinado grupo.

Trata-se de mecanismo que produz estranhamento e gentrificação e excluem uma parte da população da proteção social e jurídica a que deviam ser destinatários, os colocando em posição de inferiorização dentro da hierarquia social.

O reconhecimento do racismo ambiental, discutido como conceito autônomo – ainda que compreendido como uma forma de injustiça ambiental – acaba por colocar em evidência a necessária análise dos fatores raciais nas situações de injustiça, visto que, uma abordagem predominantemente classista acabaria por encobrir e naturalizar o racismo em nossa sociedade. Para nós, significa dizer que o racismo e as questões raciais possam não ser a base de análise de todas as situações em que se identifica a ocorrência de injustiça ambiental, haverá certamente aquelas que serão incompreensíveis sem a sua consideração (PAES E SILVA, 2012, p. 5).

Racismo institucional, por sua vez, serve para definir o racismo ambiental com dimensão institucional.

O conceito de racismo institucional refere-se a políticas institucionais que, sem o suporte da teoria racista, produz consequências desiguais para os membros das diferentes categoriais raciais ou grupos societários.

A noção de racismo institucional explica a operação pelo qual uma dada sociedade internaliza a produção de desigualdades em suas instituições.

A ideia é que os aparatos institucionais das sociedades encontram-se a serviço dos grupos hegemônicos que os criam e fazem com que funcionem reproduzindo o sistema que lhe dá significado e existência, criando resultados raciais injustos (SOUZA, 2015, P-52).

Pesquisas demonstram que o racismo ambiental e o racismo institucional se inter-relacionam, resta clarividente que as políticas públicas brasileiras de isolamento em colônias dos portadores de hanseníase não objetivava como fim primordial arruinar a vida desse grupo social, ao mesmo tempo, que em nome de higienização social e interesses hegemônicos de uma maioria privilegiada, perpetuou processos de gentrificação afastando esse grupo de acesso a recursos ambientais e ao próprio gozo efetivo do direito à cidade e aos aparelhos públicos pertinentes, a que o restante da população tinha acesso.

O quadro até agora retratado exige que nos posicionemos, construindo alternativas e estratégias para apoiar esses grupos em sua luta por uma vida digna e pelo exercício da cidadania ativa à qual têm direito.

É fundamental que, sem esquecer as problemáticas existentes nas grandes cidades, consigamos garantir igual visibilidade para os casos de Racismo Ambiental que atingem as populações tradicionais, cujas vozes são de diferentes formas silenciadas, quando não deturpadas.

Para isso, é necessário que as injustiças ambientais por elas sofridas e aquelas que atingem as populações urbanas sejam entendidas como parte de uma luta contra um inimigo comum: um modelo de desenvolvimento desumano, que se pauta pela ganância e pelo preconceito, na sua busca insaciável de mais exploração e mais lucro. E essa luta requer a articulação e a cumplicidade de todos – populações atingidas, movimentos sociais, academia e ONGs – em torno de um projeto de sociedade mais humano e mais justo (PACHECO, 2008, p. 5).

O espaço foi construído, modelado politicamente, de forma que, se o espaço é um produto social e político, é possível agir sobre o espaço para garantir que sua produção seja mais igualitária e inclusiva, o que legitima uma discussão acerca de justiça espacial.

A mais clássica teorização sobre justiça social é a de John Rawls (apud GERVAIS-LAMBONY, 2014, p. 118) cuja definição de justiça baseia-se na equidade, simultaneamente procedimental e distributiva, julga-se o caráter da decisão, que, deve ser o mais favorável possível aos mais fracos.

Os movimentos de justiça ambiental surgem quando comunidades vulneráveis que não tem acesso a recursos ambientais suficientes decidem lutar pela promoção de mudanças benéficas no espaço social que ocupam (SOUZA, 2015, p. 39).

A justiça ambiental, de outra parte, sinaliza o caráter socialmente desigual das condições de acesso à proteção ambiental, que ganha força a partir da década de 90, construindo uma visão alternativa à preponderância da modernização ecológica, alterando a configuração do movimento ambientalista e sendo vistos até, por alguns, como potencialmente capazes de vir a liderar um novo ciclo de estratégias de mudança da sociedade.

O movimento por justiça ambiental constituiu-se nos Estados Unidos a partir de uma articulação entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis. Desde o fim da década de 60, surgiram uma série de embates contra condições inadequadas de saneamento, contaminação química residencial e laboral e disposição indevida de lixo tóxico e perigoso (ACSERALD, 2004, P. 28).

Assim, o conceito de justiça ambiental parte da existência de contextos de discriminação e desproporcionalidade na exposição aos riscos e gravames ambientais, e volta-se às reivindicações daqueles que sofrem injustiças pela alteração desse quadro (SOUZA, 2015, P. 13).

A noção ampla de ambiente abriga, assim, espaços urbanos que criam disparidades pela falta de serviços ambientais ou pela não oferta de equipamentos urbanos suficientes.

A noção de justiça do movimento por justiça ambiental comporta três dimensões: igualdade na distribuição do risco ambiental, reconhecimento da diversidade dos participantes e das experiências em comunidades afetadas e a participação no processo político que cria e gere a política ambiental, o que geraria uma justiça plural e unificada (SCHOLOSBERG, 2004, P.23).

Nesse sentido, a noção de justiça ambiental deve ser entendida como resultado de um processo de tomada de decisões democráticas e inclusivas a respeito das políticas ambientais e de distribuição espacial nas cidades.

A NATURALIZAÇÃO DAS DESIGUALDADES E A GENTRIFICAÇÃO

O termo gentrificação é a versão “aportuguesada” de gentrification (de gentry, “pequena nobreza”), conceito criado pela socióloga britânica Ruth Glass (1912-1990) em London: Aspects of Change (1964), para descrever e analisar transformações observadas em diversos bairros operários em Londres. Desde seu surgimento, a palavra tem sido amplamente utilizada em estudos e debates sobre desigualdade e segregação urbana, assim como nos estudos sobre patrimônio, nos mais diferentes domínios: sociologia, antropologia, geografia e arquitetura, além de planejamento e gestão urbana, economia e estudos urbanos em geral (ALCÂNTARA, 2018, P. 1).

Desde então, o conceito de gentrificação foi problematizado e aplicado a diversas situações de revitalização urbana pelo mundo, incluindo novas formas de substituição social no território, novos atores e novos espaços (RÉRAT, 2010, p. 336), dando origem a disputas teóricas e práticas sobre seu conteúdo.

O discurso “regenerativo” da gentrificação no âmbito de políticas de valorização da imagem do espaço urbano, ainda que vise à fixação da população já existente, a modernização do tecido econômico, o aumento do emprego e o crescimento econômico; a verdade é que não deixa também de funcionar como mecanismo de legitimação do poder instituído e da mobilização de grande investimento público que, em última análise, é desviado do auxílio aos mais carenciados, funcionando como subsídio aos mais ricos (Bancos, instituições financeiras, grandes grupos econômicos e de construção civil, empreendedores, governantes, etc.).

Parte-se da dedução preliminar de que na sociedade capitalista o conjunto de leis que a rege é necessariamente burguês (sob o domínio das classes dominantes) e existe para servir os interesses do capital e não da maioria social.

O mesmo pode ser dito do Estado, que, mesmo sob o disfarce liberal e formalmente voltado para o interesse de toda a sociedade, representa particularmente sob este modo de produção a dominação da “classe burguesa”, isto é, dos grupos de maior estatuto social e econômico e dos interesses do capital.

No contexto de reestruturação urbana que produz cidades altamente fragmentadas – no sentido de disjunção do tecido social - se insere a gentrificação como processo de elitização de determinadas áreas com a substituição da população tradicional por moradores com maior poder aquisitivo a partir de seu desenvolvimento, com incremento de infraestrutura e/ou requalificação urbana.

Os desafios apresentados pela crise ecológica global e as amplas desigualdades na distribuição sócio espacial das cidades, com uma necessária distribuição mais justa e igualitária dos espaços urbanos, aparelhos públicos e ônus ambientais, sobretudo às comunidades vulnerabilizadas, demandam uma urgente transformação política por cidades mais justas, bem como por uma democratização das mais-valias urbanas, distribuindo parte do lucro obtido por meio de investimentos estatais em aparelhos urbanos às comunidades atingidas por esse processo de gentrificação, bem como, ocupação dos vazios geográficos e produção de cidades mais compactas.

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana podem ser definidos como direitos fundamentais (SOUZA, 2015, p.82).

A inscrição do direito ao meio ambiente sadio no rol de direitos fundamentais em vários ordenamentos jurídicos, inclusive na Constituição Federal de 1988, como requisito necessário ao adequado desenvolvimento humano e a dignidade, trata-se ainda, de um compromisso político de adoção de postura de políticas públicas sociais e ambientalmente igualitárias, afastando a instituição do racismo ambiental e institucional.

Como já visto, a construção do espaço urbano é um fenômeno decorrente de escolhas políticas, não se trata de um processo que ocorre de forma natural, e esse processo, continuamente, afasta a população pobre dos espaços privilegiados do ponto de vista ambiental e de aparelhamento público, focando investimentos públicos em espaços ocupados por populações privilegiadas economicamente, causando higienização social e periferização dos vulneráveis, incluídos neste contexto, os portadores de hanseníase.

Para Souza (2015, p.94) o compromisso estatal deverá se materializar em ações concretas, democráticas e transparentes e em parceria com as comunidades envolvidas que deem posição de centralidade à justiça espacial e ambiental.

A identificação desse racismo ambiental e a restrição de direitos de comunidades específicas, como os portadores de mal de Hansen, deve fazer parte da fase inicial da adoção de medidas políticas que deverá necessariamente ouvir a população envolvida antes de impor políticas públicas que impliquem em isolamento ou qualquer tipo de restrição de direitos.

Souza (2015, p.94-95) aponta uma série de mecanismos que podem ser utilizados no combate ao racismo ambiental, como uma educação ambiental e cidadã, prevenção de riscos ambientais e ações afirmativas com escopo de corrigir distorções históricas, como as provocadas pelo Estado brasileiro por meio do isolamento social da população hanseniana enquanto política pública estatal.

Os movimentos de justiça ambiental também tem elaborado seu discurso, em torno do direito à cidade, que pode ser pensado a partir das diretrizes gerais contidas no estatuto da cidade, tais como, gestão democrática do desenvolvimento urbano, ordenação do controle e uso do solo, justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização e proteção do meio ambiente em todos os seus aspectos (natural, artificial, do trabalho e cultural).

Resta claro que as políticas públicas sanitárias adotadas pelo Estado Brasileiro a partir da década de 1920, em relação aos portadores de hanseníase, nada mais foram do que políticas de gentrificação, que causaram isolamento sócio espacial, racismo ambiental e negação a esta população de dignidade e do direito à cidade, vez que se viram em uma situação de colônias agrícolas totalmente desprovidas de estrutura e sem aparelhos públicos suficientes, caracterizando por si só, um caso típico de racismo institucional, que se perpetuou até a década de 1980, apesar de já haverem alternativas sanitárias viáveis que diferiam desse isolamento.

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Sobre a autora
Karen Rosendo de Almeida Leite Rodrigues

ADVOGADA, PROFESSORA UNIVERSITÁRIA, PESQUISADORA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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