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Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

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2. a nova ordem latino americana

            Após a Segunda Guerra Mundial os países industrializados entraram em um ciclo de crescimento econômico que foi fundamentado, ao nível ideológico, pela construção da noção de globalização.

            Este termo veio adquirir múltiplas significações, em um mundo marcado pela lógica da maximização do capital, que imprimiu à realidade dos países subdesenvolvidos uma nova forma de exploração, ainda mais perversa, pois sob o manto da idéia de globalização, justifica-se o (sub)desenvolvimento como questão de integração ao sistema mundial, do qual nenhum país pode fugir, sob pena de confinar-se na sua condição de subdesenvolvimento, sendo condição para tanto, a quebra dos Estados Nacionais.

            O que se esquece de deixar claro é a que ordem global devem os países subdesenvolvidos integrar-se. Pois há, perfeitamente delimitadas, ordens socioeconômicas específicas para cada país, dentro da lógica, esta sim global, de divisão internacional do trabalho. E, em cada uma delas, o Estado salta como o principal articulador da adoção das medidas socioeconômicas propulsoras da inserção nesta divisão internacional do trabalho, seja para deixar de agir no campo social5, seja para manter o pulso firme no campo econômico.

            Especialmente o subcontinente latino-americano, desde fins da década de oitenta, vem sendo alvo de um conjunto de medidas políticas, econômicas, administrativas e jurídicas que propõem uma nova configuração para os Estados Nacionais.

            O cenário econômico iniciou-se com a crise do petróleo, pelo qual os países industrializados, enquanto construíam uma política econômica comum visando conter o ritmo de atividade econômica, com vistas a baixar os preços internacionais de matérias-primas e produtos primários em geral, estimulavam os países em desenvolvimento a manter suas economias abertas, elevando níveis de importações que não eram compatíveis com uma economia mundial em posição defensiva.

            Por esta política macroeconômica os países industrializados conseguiram transferir os custos decorrentes da baixa do petróleo para as economias mais frágeis que, assim, embora pouco dependentes de combustíveis importados, surgiram ao final da década de 1970 como os grandes devedores internacionais.

            A respeito, Cezar Benjamim6 comenta:

            Nos anos 70, com a crise do petróleo, a adoção do regime de câmbios flutuantes e a desregulamentação financeira patrocinada pelo governo norte-americano, o sistema bancário internacional enfrentou uma situação de excesso de liquidez, com oferta abundante de capital. O Brasil, que naquele momento tinha muitos projetos de investimento, foi levado a adotar uma política de captação desses recursos, elevando sua dívida externa de US$12 bilhões em 1973 para US$54 bilhões em 1979.

            Este conjunto de medidas começou a ser elaborado, com maior articulação entre os países centrais e aqueles onde seriam aplicadas estas medidas, a partir de novembro de 1989, quando se reuniram na capital dos Estados Unidos funcionários do governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano (BID) – todos especializados em assuntos latino-americanos. O encontro foi realizado pelo Institute for Internacional Economics, sob o título "Latin American Adjustment: How Much Has Happened?".

            Tinham o objetivo de promover avaliações sobre as reformas econômicas empreendidas nos países da região. Participaram também desta reunião economistas latino-americanos que relataram as experiências dos seus países. Desta reunião, mesmo não possuindo caráter deliberativo, foi articulada uma nova estratégia econômica-administrativa que teve um impacto decisivo para a América Latina. Tal estratégia foi comumente chamada de "Consenso de Washington".

            Tais medidas foram denominadas de Plano de Ajuste Estrutural, PAE, imposto pelo Fundo Monetário Internacional, pelo qual dever-se-ia ajustar as políticas econômicas para alcançar superávits primários cada vez maiores, a fim de garantir a amotirzação dos juros da dívida externa. A adoção destas medidas político-econômicas pelos países latino-americanos foi, então, orientada pela quebra dos aparelhos estatais ligados às áreas sociais e, com o mesmo objetivo, mas com outra tônica para a atuação estatal, pelo fortalecimento do controle do Estado sobre a economia.

            Os meios específicos pelos quais implementou-se tais ajustes, e os seus efeitos próprios, estão relacionados ao desenvolvimento histórico do capitalismo em cada país, às particularidades de inserção de cada economia no plano internacional.

            Como afirmou Zigmund Bauman7:

            A desintegração social, a derrocada das agências efetivas de ação coletiva, é recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como ‘efeito colateral’ não previsto da nova leveza e fuidez do poder cada vez mais móvel, escorregadio, evasivo e fugitivo. Ma a desitegração social é tanto uam condição quanto um resultado da nova técnica do poder, que tem como ferramentas principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem".

            Assim, guardadas as particularidades de cada país, o que se observou foi que, ao arrepio de suas legislações nacionais, os Estados latino-americanos provocaram mudanças drásticas nas suas estruturas administrativas, invertendo completamente a ordem de prioridades na alocação de recursos, prejudicando a manutenção de políticas sociais de efetivação dos Direitos Sociais constitucionalmente fixados. Em conseqüência desta lógica administrativa, foram transferidas para a iniciativa privada a maior parte das empresas estatais através das privatizações.

            No Brasil, a conseqüência essencial desta política foi à ampliação da dívida externa, através da política de estabilização monetária da qual surgiu o Plano Real, cujo cerne é o aumento da taxa de juros, com a justificativa de conter a inflação, aliada com a abertura indiscriminada do mercado, gerando uma estagnação econômica crônica, pois "uma vez adotada a sobrevalorização do câmbio e a abertura comercial, o país não pode parar de captar vultuosos recursos no exterior para equilibrar o balanço de pagamentos (...) oferecendo-se a pagar juros muito superiores aos vigentes no mercado internacional"8.

            Apesar de, em alguns momentos, serem divulgados índices matemáticos de crescimento econômico, estes são pontuais e vulneráveis, no entanto, pois não são capazes de proporcionar a inclusão de toda a população economicamente ativa nos postos de trabalho, fortificando a estagnação do mercado consumidor interno.

            O eixo central de todas estas alterações é o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Ainda que não seja possível caracterizar o estado social brasileiro nos moldes dos países europeus, berço do Wellfare State, pois é evidente a perspectiva que separa um e outro, pode-se afirmar que a adoção do projeto neoliberal pelo Brasil fez ruir drasticamente as mínimas garantias sociais existentes, e impossibilitou, de maneira brutal, a busca pela efetivação dos princípios sociais decorrentes do Estado Democrático de Direito, criando o cenário propicio para erguer-se um verdadeiro Estado Penal.

            Mas isso não foi verificado apenas em países subdesenvolvidos, tendo sido a principal medida adotada por governos estadunidenses desde início da década de 1990, com reflexos diretos na questão do emprego, com a sua precarização e conseqüente deterioração dos salários.

            Isto guarda relação direta com o novo senso de criminalidade e segurança pública que se constrói sob a égide neoliberal. Como bem asseverou Loic Wacquant9:

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            Ao jogar sobre os segmentos periféricos do mercado de trabalho centenas de milhares de postulantes suplementares empregáveis por dois tostões, a "reforma" da assistência social vai reduzir o nível dos salários desqualificados e contribuir para engrossar os batalhões dos working poor (Wacquant, 1996b). A economia informal da rua tem, portanto, a garantia de que vai conhecer uma retomada de crescimento, e com ela a criminalidade e a insegurança que corroem o tecido da vida cotidiana do gueto. O nível de pessoas e famílias sem teto deve aumentar, assim como o de indigentes e de doentes que não recebem tratamento. As cidades poderão enfraquecer as últimas organizações salariais que ainda conservam um certo peso, os sindicatos de empregados municipais, substituindo progressivamente os funcionários locais empregados em postos subalternos de mão-de-obra gratuita dos programas de trabalho forçado (workfare) dos quais os assistidos são, doravante, obrigados a participar.

            A saída não será outra senão a criminalização da pobreza, com uma inflação legislativa incriminando as mínimas ações ligadas à mendicância, prostituição e vadiagem.

            Em Nova Iorque, o prefeito Rudolf Giuliane saiu na frente com o programa "Tolerância Zero", exatamente nestes termos, absoluta tolerância zero para com as mínimas ações que possam representar desvio do padrão burguês do trabalhador que, na falta de emprego, ou submete-se a trabalhos precários, com salários baixíssimos, ou ficará sem a assistência estatal, não sobrando outra alternativa senão submeter-se a condições tais que será inevitável o tratamento policial. Isto é essencial para compreender a lógica da criminalização neoliberal.

            Por um lado, retiram-se as mínimas garantias sociais, como condição para inserir-se competitvamente – em relação aos outros países subdesenvolvidos – na divisão internacional do trabalho e, como contrapartida, ou se submete a uma política previdenciária desumana – pois o aparelho estatal previdenciário está atrelado ao alcance de superávits primários, que estrangula o gargalo de quem dele pode beneficiar-se – ou, então, passa-se a viver em condições tais que será inevitável ir de encontro a práticas sociais propícias a serem apreendidas pelo sistema punitivo.

            Sobre a precarização do trabalho e novas formas pelas quais se configuram as relações de trabalho escreve Ricardo Antunes10:

            Esta forma flexibilizada de acumulação capitalista, baseada na reengenharia,na empresa enxuta, para lembrar algumas expressões do novo dicionário do capital, teve consequências enormes no mundo do trabalho. Podemos aqui tão somente indicar as mais importantes: 1)há uma crescente redução do proletariado fabril estável, que se desenvolveu na vigência do binômio taylorismo/fordismo e que vem diminuindo com a reestruturação, flexibilização e desconcrentração do espaço físico produtivo, típico da fase do toyotismo; 2) há um enorme incremento do novo proletariado, do subproletariado fabril e de serviços, o que tem sido denominado mundialmente de trabalho precarizado. São os "terceirizados", subcontratados, "part-time", entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em inúmeras partes do mundo. Inicialmente, estes postos de trabalho foram preenchidos pelos imigrantes, como os g a s t a r b e i t e r s na Alemanha, o l a v o ro nero na Itália, os c h i c a n o s nos EUA, os d e k a s e g u i s no Japão etc. Mas hoje, sua expansão atinge também os trabalhadores especializados e remanescentes da era taylorista-fordista; 3) vivencia-se um aumento significativo do trabalho feminino, qua atinge mais de 40% da força de trabalho nos países avançados, e que tem sido preferencialmente absorvido pelo capital no universo do trabalho precarizado e desregulamentado; 4) há um incremento dos assalariados médios e de serviços, o que possibilitou um significativo incremento no sindicalismo destes setores, ainda que o setor de serviços já presencie também níveis de desemprego acentuado; 5) há exclusão dos jovens e dos idosos do mercado de trabalho dos países centrais: os primeiros acabam muitas vezes engrossando as fileiras de movimentos neonazistas e aqueles com cerca de 40 anos ou mais, quando desempregados e excluídos do trabalho, dificilmente conseguem o reingresso no mercado de trabalho; 6) há uma inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho, particularmente nos países de industrialização intermediária e subordinada, como nos países asiáticos, latino-americanos etc. 7) há uma expansão do que Marx chamou de trabalho social combinado (Marx, 1978), onde trabalhadores de diversas partes do mundo participam do processo de produção e de serviços. O que, é evidente, não caminha no sentido da eliminação da classe trabalhadora, mas da sua precarização e utilização de maneira ainda mais intensificada. Em outras palavras: aumentam os níveis de exploração do trabalho.

            Todo este novo quadro de reorganização do trabalho, para atender aos interesses do capital, retira garantias sociais historicamente conquistadas, pois a manutenção desta ordem exploratória pressupõe a uma ordem social flexível, isto significando uma ordem social mínima, como condição para uma ordem econômica máxima.

            Consequentemente, a uma intervenção social mínima segue-se uma conjuntura de instabilidade social, à qual se responde com o fortalecimento do Estado Penal, porquanto os efeitos concretos da falta de garantias sociais refletem-se na fragilização das relações sociais, das quais se extrai com facilidade condutas passíveis de criminalização.

            Por condutas passíveis de criminalização entende-se aquelas condutas que são potencialmente mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo. Não são, assim, potencialmente mais aptas, todas as condutas previstas na legislação penal, pois apenas abstratamente todas as condutas tipificadas como crime podem ser apreendidas pelo sistema punitivo.

            Quando se considera a atuação concreta do sistema punitivo, em conformidade com a estrutura social da qual faz parte, pode-se afirmar que algumas condutas, mais do que outras, são potencialmente mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo.

            Assim, a potencialidade deixa de ser apenas o que pode vir a ser, para se concretizar como certeza, quando a dinâmica das relações sociais, de onde provêm as condutas tipificadas, é direcionada para a concretização de fins essenciais para a conservação de uma estrutura social exploratória.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Luiz Corrêa. Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7612. Acesso em: 26 nov. 2024.

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