MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E DECRETO PELA POLÍCIA: UM AVANÇO NA PROTEÇÃO À MULHER

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02/09/2019 às 20:26
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Comentários às Leis13.827/19 e 13.836/19 - Medidas protetivas deferidas diretamente pela Polícia

 

 

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

 

RESUMO: O presente trabalho consiste em comentários à Lei 13.827/19, que amplia o rol de legitimados a decretar as medidas protetivas de urgência em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, bem como à Lei 13.836/19, que trata da determinação para que a Autoridade Policial inclua a informação sobre deficiência da mulher vítima de violência doméstica e familiar na elaboração do pedido de medidas protetivas de urgência.

 

 

 

ABSTRACT: The present work consists of comments on Law 13.827 / 19, which expands the list of legitimates to decree urgent protective measures in favor of women victims of domestic and family violence, as well as Law 13.836 / 19, which deals with the determination for the Police Authority to include deficiency information for women victims of domestic and family violence in the preparation of the request for urgent protective measures.

 

 

 

 

 

SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO -  2. A AMPLIAÇÃO DOS LEGITIMADOS A DEFERIR MEDIDAS PROTETIVAS - 3. AS DISCUSSÕES ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.827/19 – 4. QUESTÕES RECURSAIS – 5. DESCUMPRIMENTO DA MEDIDA PROTETIVA IMPOSTA PELA POLÍCIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS – 6. VEDAÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA – 7. A CRIAÇÃO LEGAL DE UM BANCO DE DADOS SOBRE MEDIDAS PROTETIVAS – 8. ALTERAÇÃO PONTUAL NO CONTEÚDO DO PEDIDO DE MEDIDAS PROTETIVAS DA OFENDIDA PROMOVIDA PELA LEI 13.836/19 – 9. CONCLUSÃO – 10. REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: 1.INTRODUCTION - 2. THE ENLARGEMENT OF LEGITIMATES TO PROTECT MEASURES - 3. DISCUSSIONS ABOUT THE CONSTITUTIONALITY OF LAW 13.827 / 19 - 4. APPEAL ISSUES- 5. COMPLIANCE WITH POLICE PROTECTIVE MEASURE - 6. PROHIBITION OF PROVISIONAL FREEDOM - 7. THE LEGAL CREATION OF A DATABASE ON PROTECTIVE MEASURES - 8. CURRENT CHANGE IN THE CONTENT OF APPLICATION FOR PROTECTIVE OFFENSES PROMOTED BY LAW 13.836 / 19 - 9. CONCLUSION - 10. REFERENCES.

 

 

PALAVRAS – CHAVE: Violência Doméstica e Familiar contra a mulher; Medidas Protetivas de Urgência; Polícia; Poder Judiciário; Delegado de Polícia; Banco de Dados; Pessoas com deficiência.

 

KEY WORDS: Domestic and Family Violence against women; Urgent Protective Measures; Police; Judicial power; Police Chief;  Database; Disabled people.

 

 

1-INTRODUÇÃO

 

            A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, criou uma série de medidas protetivas de urgência em prol da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Entretanto, sempre se constatou um “déficit” na real aplicação dessas proteções, sendo um dentre vários problemas, a obrigatoriedade de jurisdicionalização do decreto. Isso porque sequer foi ainda possível instalar a contento em todo o país os chamados Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, muito menos ainda criar plantões de 24 h. para o atendimento de casos. [1]

            Como o próprio nome diz, as cautelares processuais penais consistentes em medidas protetivas da mulher são de “urgência”, quando não de “emergência”, de forma que o atendimento imediato e tomada de providências é crucial para um bom funcionamento do sistema legalmente estabelecido, sob pena de que se tenha uma boa normatização e uma péssima aplicação concreta.

            Com vistas a essa situação de descompasso entre a legislação e a efetivação da proteção devida às mulheres em situação de vulnerabilidade, foi alterada a Lei 11.340/06 pela Lei 13.827/19, possibilitando, em certas circunstâncias, o deferimento direto das medidas protetivas à mulher pela Polícia, apenas com análise de legalidade posterior pelo Judiciário.

            Na mesma toada foi editada a Lei 13.836/19 para constar do artigo 12, § 1º., IV da Lei Maria da Penha a condição de a ofendida ser pessoa com deficiência ou se da violência sofrida resultou deficiência ou agravamento da deficiência preexistente.

            Neste trabalho serão abordados os principais pontos discutidos sobre ambas as legislações supra mencionadas, deixando-se, ao final uma síntese de revisão conclusiva.

 

 

2-A AMPLIAÇÃO DOS LEGITIMADOS A DEFERIR MEDIDAS PROTETIVAS

 

            A Lei 11.340/06, em seu artigo 22, II, prevê que nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher o Juiz poderá aplicar imediatamente ao agressor a medida de “afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida”.

            Como já mencionado, tal medida é de salutar previsão legal. No entanto, sua aplicação realmente imediata tem sido algo extremamente excepcional, senão absolutamente inexistente. Acontece que o Delegado de Polícia, ao receber a notícia e o pedido da vítima, não podia determinar, por si mesmo, a medida. Devia encaminhar o pedido e demais documentos instrutórios ao Juiz de Direito no prazo de 48 horas (artigo 12, III, da Lei 11.340/06), sendo fato que o magistrado, ao receber o pedido devidamente instruído teria outro prazo de 48 horas para deliberação (artigo 18, I, da Lei 11.340/06). Percebe-se que entre o pedido da ofendida e o eventual deferimento judicial podem correr 96 horas, isso sem contar o tempo para a expedição do respectivo mandado e a intimação do agressor.

            Não há nada mais notório do que o fato de que esse sistema não poderia funcionar a contento no que diz respeito à proteção efetiva da mulher vitimizada. Na verdade, o sistema é uma espécie de maquinaria de vitimização secundária da mulher agredida.

            Foi considerando esse quadro que o legislador procedeu à alteração na Lei 11.340/06, incluindo o artigo 12 – C e permitindo que em certas situações não somente a Autoridade Judicial seja legitimada a deferir medida protetiva de afastamento, mas também o Delegado de Polícia e até mesmo, em casos extremos, outro policial.

            Como bem aduz Sannini Neto:

“Percebe-se, assim, que, nesse cenário, a sua adoção depende de um rito procedimental extremamente burocrático e que, não raro, demonstra-se absolutamente incompatível com o seu caráter de urgência.

Justamente por isso, surge a Lei 13.827/19 visando ampliar a proteção da mulher, mitigando a reserva de jurisdição em hipóteses específicas”. [2]

            Certeira é também a manifestação de Barbosa:

“Neste diapasão, a Lei 11.340/06 trouxe, dentre diversas ferramentas de proteção à mulher, os artigos 22 a 24, sob a rubrica de ‘Medidas Protetivas de Urgência’, na qual o legislador imaginou que, para proteger a vítima agredida e ameaçada de morte, por exemplo, bastaria que ela fizesse um requerimento perante o delegado, e este expediente fosse remetido, num prazo de 48 horas, ao juiz (*artigo 12, III c/c artigo 19), que, por sua vez, teria mais 48 horas para decidir sobre o requerido, conforme o artigo 18, I da Lei Maria da Penha, e que isso garantiria a ‘urgência’. Salta aos olhos que 96 horas, equivalente a quatro dias, está longe de ser uma resposta urgente”. [3]

            Conforme ressalta Foureaux, a legislação utiliza uma acepção ampla de “autoridade policial”, conferindo à Polícia o poder – dever de concessão de medida protetiva específica e em situações bem determinadas, naquilo que o autor denomina de uma “legitimidade condicionada”. [4]

            Note-se que há várias medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha nos artigos 22 a 24. Porém, a Lei 13.827/19 somente autorizou o deferimento de uma única dessas medidas pela Polícia diretamente em certos casos, qual seja, a de afastamento do agressor, nos termos do artigo 22, II, da Lei 11.340/06. As demais medidas previstas nos incisos do artigo 22 e no corpo dos artigos 23 e 24 somente podem ser legitimamente deferidas pelo judiciário.

            Neste passo, fica a indagação da razão pela qual o legislador não ampliou logo o deferimento de todas as medidas protetivas para a Polícia em casos excepcionais. Não se vê motivo palpável para essa limitação, salvo no caso daquelas medidas de caráter civil.

            Razão assiste a Oliveira e Leitão Júnior ao asseverarem que “a lei possibilita apenas o afastamento do agressor do lar, quando muitas das vezes são necessárias as demais medidas previstas na Lei Maria da Penha. Cria-se uma proteção deficiente à vítima, onde a Lei não poderia ter sido tão tímida como foi”. [5]

            Já antevia Dias essa conveniência de ampliação da atuação imediata da Autoridade Policial:

“É indispensável assegurar à autoridade policial que, constatada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, aplique provisoriamente, até deliberação judicial, algumas medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor. Deferida a medida – tal como ocorre com a prisão em flagrante – o juiz deve ser comunicado no prazo de 24 horas e poderá mantê-la, revogá-la ou ampliá-la. Ou seja, o ‘poder’ que se está querendo conceder à autoridade policial, tem limite do prazo de eficácia. Às claras que não há qualquer prejuízo ao controle judicial das providências tomadas pela polícia e não se pode falar em afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição”.  [6]

            Enfim, “legem habemos”. E o artigo 12 – C da Lei Maria da Penha estabelece o seguinte:

“Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:

I – pela autoridade judicial;

II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou

III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia”.

                Observe-se que até mesmo pela ordem dos incisos, continua o Juiz como a autoridade estatal preferencial para a análise de cabimento e eventual deferimento da medida. Somente em sua falta é que surgem agora dois outros legitimados para tanto.

            Um aspecto da nova normativa causa perplexidade. Quando se trata da Polícia, a determinação de que a medida protetiva seja analisada “imediatamente”, constante no “caput” do artigo 12 – C, não causa nenhum choque sistêmico, pois que não há norma com diversa determinação. É claro que há a previsão do artigo 12, III, da Lei 11.340/06 de que a Autoridade Policial (Delegado de Polícia) deverá encaminhar ao Juiz o pedido de medidas, não “imediatamente”, mas no prazo máximo de 48 h. Mas, isso não é colidente com o artigo 12 – C, já que este trata do caso de ausência de magistrado e o artigo 12, III, se refere aos casos em que haja magistrado responsável. Contudo, em havendo magistrado, o artigo 12 – C determina que este defira ou não as medidas protetivas “imediatamente”, enquanto que o artigo 18, I, concede ao magistrado um prazo de 48 horas para deliberação. Note-se que em ambos os dispositivos se trata da mesma situação, ou seja, o Juiz de Direito deliberando pela concessão ou não da medida protetiva. Mas, em um dispositivo da mesma lei isso deve ser feito “imediatamente” (sem concessão de prazo) e em outro dispositivo do mesmo diploma, há previsão de um prazo de 48 horas. Ocorre evidente colisão sistêmica.

            Um primeiro aspecto é o de que as mulheres agredidas que forem atendidas em localidades que não são sede de comarca, poderão ter as medidas protetivas deferidas de forma mais célere em detrimento das que forem atendidas em locais sedes de comarca, vislumbrando-se uma possível violação da igualdade e da razoabilidade, isso considerando a possibilidade aberta agora à Polícia. Nesse caso, haveria problemas de constitucionalidade não somente com o artigo 18, I, mas também com o artigo 12, III, da Lei Maria da Penha. Não seria mais adequado permitir, tal qual ocorre na Prisão em Flagrante, a deliberação sempre imediata sobre medidas protetivas pela Polícia e posterior avaliação de legalidade pelo Judiciário? Assim o tratamento seria mais uniforme. Essa questão não passa despercebida por Sannini Neto que não hesita em apontar a inconstitucionalidade da legislação nesse aspecto, na medida em que trata distintamente “pessoas que estão na mesma condição de vítimas, o que fere o princípio da isonomia”. [7] Necessário, para viabilizar um tratamento uniforme, outra alteração legislativa ampliativa, já que o legislador perdeu essa oportunidade.

            É preciso ressaltar, porém, que há autores como, por exemplo, Cavalcante, que entendem não existir violação à igualdade e nem à razoabilidade nesse tratamento diferenciado. O autor traz à discussão a conhecida distinção entre a igualdade formal e a material, bem como o tratamento igual dos iguais e desigual dos iguais. Dessa forma, afirma Cavalcante que “o critério escolhido pelo legislador é objetivo e razoável. Se o Município não é sede de comarca, não é razoável aguardar uma decisão judicial porque esta irá demorar mais do que em outras localidades que não possuem essa deficiência”. [8]

            Ocorre que a proposta aqui veiculada não é a de manter a exigência de ordem judicial também nos Municípios que não são sede de comarca e sim de ampliar a possibilidade de deferimento das medidas pela Autoridade Policial diretamente também nas sedes de comarca, já que o Judiciário não conta com plantão de 24 horas, diversamente da Polícia.

            Muito bem ressalta Cavalcante que a precariedade da estrutura do Judiciário não pode ser motivação idônea para ferir a jurisdicionalidade mediante interpretações ampliativas. [9] Contudo, a questão não parece solucionável mediante alteração estrutural do Judiciário, pois que este já é deficiente em vários outros aspectos que afetam a celeridade e eficiência dos procedimentos. Não parece factível a criação de plantões judiciais 24 horas em todas as comarcas brasileiras. A jurisdicionalidade postergada ampliada em casos como esses das medidas protetivas, seja para abranger todas as localidades, seja para abarcar todas as medidas protetivas (ressalva feita às de natureza civil), sem que haja prejuízo de ulterior avaliação judicial célere, surge como uma solução razoável e viável. Mas, frise-se, isso não por meio de uma interpretação ampliativa da lei em vigor e sim por alteração direta da legislação para que essa ampliação ganhe tipicidade processual penal. Nossa proposta, portanto, é de “lege ferenda”, em plena concordância com Cavalcante quanto à inviabilidade de implementação dessas restrições diretas pela Polícia pela via da interpretação e alegação de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva. [10] Essa insuficiência pode ser até mesmo argumento, mas não para alteração legal por via transversa, ainda que jurisprudencial, violando a tripartição de poderes, mas para elaboração, em processo legislativo legítimo, de novas normativas mais amplas. Entretanto, há autores como, por exemplo, Foureaux, que entendem que “em casos excepcionais, ainda que o município seja sede de comarca, a autoridade policial pode e deve conceder medidas protetivas de urgência”. Para tal autor, haveria inconstitucionalidade, tendo em vista o “tratamento diferenciado para situações iguais”, devendo-se buscar no STF, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a declaração da ilegitimidade da expressão legal “quando o município não for sede de comarca”. [11] Como já dito, diante do atual ordenamento, a aplicação sem mais das medidas por Policiais, mesmo Delegados de Polícia, em sede de comarca, não parece viável, sendo necessária uma reforma legislativa ou então o efetivo reconhecimento da inconstitucionalidade da distinção feita na lei ordinária pelo STF por alegada violação da igualdade. De qualquer forma, nosso entendimento é que o melhor caminho é o de preservação das funções de cada poder, devendo a lei ser alterada pelo Congresso Nacional.

            Não se pode perder de vista o ensinamento de Fragoso quanto ao fato de que o trabalho do dogmático na ciência do Direito Penal, o que vale para o Processo Penal também em relação a normas restritivas de direitos, “há de se assentar na lei, ponto de partida indispensável, do qual não é possível fazer abstração”. [12] O que, aliás, é válido para o Direito de forma geral. Como salienta Díaz:

“A ciência jurídica se constitui, cabe dizer, sobre a consideração estrita do Direito como norma: o conteúdo da Ciência do Direito são as normas jurídicas positivas, material com o qual trabalha sempre e em todo momento o jurista (...) centra seu trabalho na investigação, análise, construção e realização do Direito positivo, ou seja,  das normas válidas, vigentes enquanto promulgadas e não expressamente derrogadas (...). O Direito positivo é seu material fundamental de trabalho e sobre ele construirá rigorosamente a ciência jurídica”. [13]

            Fato é que em matéria restritiva não se pode admitir aventuras interpretativas que visam ampliar as hipóteses de restrição. Por isso supõe a dogmática “a distinção entre o direito que é (de lege lata) e o direito possível (de lege ferenda), e se ocupa do primeiro”. [14] Neste trabalho a consideração do caso da conveniência de ampliação dos poderes de concessão de medidas pela Autoridade Policial é feita tendo em conta o limite da lei posta e propondo um horizonte de reforma possível, conforme já destacado.

            Agora, focando especificamente no prazo para a atuação do Juiz. O artigo 12 – C determina a decisão “imediata”, enquanto que o artigo 18, I, estabelece um prazo de até 48 horas. Nessa situação específica, parece que a questão pode ser resolvida sem necessidade de maiores alterações na lei. O problema pode ser solvido pela sucessão de leis no tempo. O artigo 18, I, com prazo de 48 horas concedido ao magistrado para deliberação é fruto original da Lei 11.340/06, data, portanto, de 2006. Já o artigo 12 – C, da Lei 11.340/06, foi nela incluído apenas pela Lei 13.827/19, ou seja, em 2019. Entende-se que a lei posterior revogou tacitamente a lei anterior por incompatibilidade, de modo que o Juiz terá, doravante, que decidir de imediato sobre as medidas protetivas (inteligência do artigo 2º., § 1º., da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto – Lei 4.657/42). Isso não importando se está em sede de comarca ou não, mesmo porque o próprio artigo 12 – C não faz qualquer distinção, a qual somente é citada a partir dos incisos II e III, que se referem à Polícia e não do Juiz.

            Pode haver quem afirme que há sim uma distinção entre o artigo 18, I e o artigo 12 – C da Lei Maria da Penha. O fator distintivo estaria no fato de que neste último a lei mencione expressamente a “existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher” ou “de seus dependentes”. Mas, fato é que a medida protetiva de urgência, em primeiro lugar, pela sua própria natureza, se adequa muito mais à decisão “imediata” do que a uma deliberação de horas e horas. Além disso, como espécie de cautelar processual penal, têm as medidas protetivas o caráter da urgência ou preventividade, o qual pressupõe o chamado “periculum in mora” ou “periculum libertatis” para seu deferimento. Não há espaço para demora, para reflexões contemplativas do magistrado ou de quem quer que seja. Certo lapso temporal razoável entre o fato em apuração e a conclusão do processo com a formulação de um "decisum" é absolutamente necessário e nem sempre as circunstâncias que envolvem determinados casos concretos permitem a espera desse prazo para a tomada de algumas medidas urgentes (urgência ou preventividade é característica das cautelares em geral, tanto no Processo Civil, como no Penal). [15] Fato é que se há necessidade de medidas protetivas urgentes é praticamente inviável a inexistência de risco atual ou iminente à mulher vitimizada. Em não havendo tal risco, então não será o caso de deferimento das medidas. E se o há então a decisão imediata se impõe, seja pela norma reguladora, seja pela análise razoável da situação.

            Também se pode alegar que a normativa do artigo 12 – C se refere tão somente à medida específica do afastamento do agressor, de acordo com o artigo 22, II da Lei 11.340/06. Ainda assim o raciocínio acima desenvolvido seria aplicável ao menos para essa medida, que passaria a ter de ser deliberada de imediato, sem o prazo de 48 horas. Quanto às demais medidas, entende-se que, por equiparação das situações de urgência e preventividade presentes igualmente em qualquer delas, não há motivo para distinção, mas pode haver quem defenda a manutenção do prazo do artigo 18, I, no mínimo para tais medidas como regra, sendo a imediatidade uma exceção. Obviamente, pode haver quem discorde diametralmente de nossa interpretação para defender a tese de que haverá agora, para a medida de afastamento a imediatidade da decisão somente em casos especiais de maior gravidade e iminência do perigo para a vítima e o prazo de 48 horas para a decisão de todos os demais casos, inclusive o de afastamento, de modo que não haveria incompatibilidade entre os artigos 12 – C e 18, I, da Lei Maria da Penha. Não obstante, entende-se que houve revogação tácita do artigo 18, I pelo artigo 12 – C para todos os casos, de modo que o juiz deve decidir, de agora em diante, de maneira imediata. A nosso ver não há motivo para distinções e a decisão imediata atende à celeridade e eficácia das medidas, com vistas à urgência e preventividade inerente às cautelares. Ademais, a sistemática da Lei Maria da Penha determina que sua interpretação seja realizada, considerando “os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (inteligência do artigo 4º., da Lei 11.340/06).

            Questão interessante que poderá ocorrer é aquela em que as pessoas envolvidas no episódio residem em local onde não há sede de comarca, mas o fato agressivo se dá onde há sede. Será que nessa situação será possível, por exemplo, que o Delegado de Polícia defira diretamente a medida protetiva nos termos do artigo 12 – C, II?

            A resposta parece ser negativa. O local que não é sede de comarca e onde se permite a deliberação direta pelo Delegado de Polícia é o local do fato e não o de residência dos envolvidos. Mesmo porque o Juízo competente para todos os atos será, como regra, o do local do fato, nos termos do artigo 70, CPP.

            Mas, e se a agressão se der em sede de Comarca, mas não houver Juiz para a deliberação imediata? Poderá, por exemplo, o Delegado de Polícia, tomar a decisão por conta própria?

            Novamente parece que a resposta somente pode ser negativa, de acordo com a normatização imposta pelo artigo 12 – C, II, da Lei Maria da Penha. O dispositivo somente menciona a situação em que o Município não seja sede de comarca e nada diz a respeito de Município sede de comarca com o Juiz ausente. Então o Delegado de Polícia não tem amparo legal para agir diretamente nessa situação. Há um problema de atipicidade processual a impedi-lo, de acordo com a lição de Delmanto. [16]

            O mesmo se diga de outro Policial quando o local for sede de comarca e não houver Delegado de Polícia à disposição. Embora essa situação seja deveras inusitada, já que a Polícia Judiciária é o único órgão onipresente 24 horas sob a presidência de Autoridade com formação jurídica, há que analisar a questão, ainda que a título meramente hipotético. Um Policial (Agente da Autoridade) ao deparar com um caso de violência doméstica ou familiar contra a mulher em local sede de comarca somente tem autorização legal, nos termos do artigo 12 – C, III, para conceder medidas protetivas diretamente, se não houver delegado disponível no momento da denúncia e (conjunção aditiva) o Município não for sede de comarca. Portanto, em se tratando de sede de comarca, caberá ao Policial fazer o contato com o Delegado de Polícia respectivo para o devido encaminhamento do caso, nos termos do artigo 12, III, da Lei 11.340/06 e não do artigo 12 – C, III do mesmo diploma. A razão dessa conclusão é a mesma pela qual se chegou à impossibilidade de ação independente do Delegado de Polícia na ausência de Juiz na sede de Comarca, ou seja, não há permissivo legal que sustente tal conduta por parte do Policial, assim como não o há também no caso do Delegado antes analisado.

            Outra dúvida é indicada por Oliveira e Leitão Júnior ao questionar se quando a Lei 13.827/19 faz referência à necessidade de preservação da “mulher” e de “seus dependentes”, estariam abrangidos na proteção dependentes tanto do sexo feminino, como do sexo masculino. Vislumbra o autor a possibilidade de “acalorados debates” acerca do tema. [17] Entende-se, porém, que a própria redação, no seu aspecto mais primário, ou seja, o gramatical ou semântico, é extremamente clara. Ao tratar de “dependentes” sem qualquer distinção, é evidente que abarca pessoas de qualquer sexo. Ademais, é preciso interpretar sistematicamente o disposto no artigo 12 – C, da Lei 11.340/06, com nova redação dada pela Lei 13.827/19, com o que consta do artigo 313, III, CPP, onde se ampliou sobremaneira o alcance das chamadas “medidas protetivas de urgência” para vários hipossuficientes, independentemente do sexo. A partir das alterações promovidas pela Lei 12.403/11, não é somente a mulher que pode ser objeto de medidas protetivas para cuja garantia a lei estabelece vários instrumentos. Passam a ser objeto dessa especial proteção outros hipossuficientes, sendo indiferente o sexo, tais como “crianças, adolescentes, idosos, enfermos e pessoas com deficiência”. A partir desse marco legal, não há espaço para restrição às mulheres do disposto no artigo 12-C, da Lei Maria da Penha, sendo imprescindível sua interpretação conjunta com o artigo 313, III, CPP. Seria também absurdo cogitar do deferimento para a proteção da mulher e de uma filha, deixando sem essa medida protetiva um filho menor, por exemplo. A violação da razoabilidade, além da isonomia no caso concreto seria por demais evidente.

            Também Oliveira e Leitão Júnior questionam sobre uma suposta lacuna legal a respeito de como seria instrumentalizada na prática a ordem de medida protetiva expedida pela Autoridade Policial. [18] Aqui também não se enxergam maiores dificuldades. Ora, se a lei não estabeleceu formalidades, então se conclui que o procedimento deverá ser informal, tal como ocorre há muito tempo com a interpretação da representação nos crimes de ação penal pública condicionada. [19] Vale ressaltar que a decisão será daquelas tomadas “inaudita altera pars”, tendo em vista a patente urgência e perigo de ineficácia da medida em caso de abertura de prazo para manifestação do suspeito, o que não é lacunoso, mas expressamente disposto no artigo 282, § 3º., CPP. No mais, o que importa é que o sujeito passivo da medida tome ciência plena das limitações a ele impostas, o que se pode processar mediante a expedição de um Mandado de Intimação de Concessão de Medidas Protetivas Policiais, no bojo do qual constem tais limitações e a fundamentação da decisão da Autoridade Policial, seja para fins de possibilitar a obediência à ordem de forma adequada, seja para assegurar o exercício da ampla defesa, respeitando o Princípio da Informação (analogia ao artigo 93, IX, CF e aplicação de contraditório posticipado nas cautelares urgentes, nos termos do artigo 282, § 3º., CPP). A expedição da ordem será, obviamente, de atribuição da Autoridade Policial e a sua elaboração física será de incumbência do Escrivão de Polícia ou de quem suas vezes faça. Também a realização da intimação pessoal do suspeito poderá ser realizada por qualquer agente da Autoridade Policial Judiciária ou mesmo diretamente por esta (Escrivão, Agente Policial, Investigador de Polícia etc.). É notório o fato de que essa intimação somente poderá ser pessoal, jamais por meio de alguma publicação oficial, tendo em vista a situação de urgência em que é expedida. Fato é que somente a partir da devida intimação, com assinatura de contrafé ou certificação de negativa de assinatura, estará o sujeito passivo da medida obrigado ao seu cumprimento e sujeito às sanções legais pela desobediência. Quanto à expedição da medida por Policiais outros, sem a intermediação da Autoridade Policial (Delegado de Polícia), nos termos do artigo 12 – C, III, da Lei 11.340/06, realmente há um grave problema procedimental, tendo em vista a inexistência de protocolos ou procedimentos administrativos ou processuais e nem mesmo estrutura adequada nas esferas de Polícias como a Militar, a Rodoviária Federal, Guardas Municipais e muito menos das chamadas “Polícias Científicas” (sic). Entretanto, de acordo com nosso pensamento, essas Polícias devem se abster de proceder à concessão de medidas protetivas, já que atuariam fora de suas atribuições constitucionalmente previstas, como será pormenorizadamente analisado em item seguinte.

            É preciso ainda atentar para o fato de que, mesmo quando o Delegado de Polícia ou outro Policial determine as medidas protetivas, essas não ficam sem o devido crivo judicial. Apenas esse crivo ocorre posteriormente com a comunicação no prazo máximo de 24 horas ao Juiz competente, nos termos do artigo 12 – C, § 1º., da Lei 11.340/06, com a nova redação da Lei 13.827/19. De acordo com o dispositivo sob comento, o Juiz deve ser comunicado por aquele que deferiu inicialmente a medida protetiva e então decidirá em igual prazo (24 horas) a respeito da manutenção ou da revogação da medida aplicada, tudo com ciência do Ministério Público. Observe-se que em nenhum dos casos é necessária, segundo a lei, ciência prévia do Ministério Público ou sua manifestação antes das decisões policiais ou judiciais, mas somente sua ciência a respeito do que for deliberado. Nesse diapasão o artigo 12 – C, § 1º. e seus incisos está em plena consonância com o disposto no artigo 18, III  e 19, § 1º., da Lei Maria da Penha, que também somente mencionam a ciência do Ministério Público, dispensando sua manifestação prévia. É claro e evidente, que se o magistrado quiser aguardar a manifestação prévia do Ministério Público poderá fazê-lo, desde que não viole os prazos legais. Isso considerando a situação do § 1º., do artigo 12 – C, em que há um prazo de 24 horas. Já no deferimento inicial da medida, nos termos do artigo 12 – C, “caput”, quando se fala de “imediatidade” da decisão não há campo para aguardo da manifestação seja lá de quem for, inclusive, obviamente, nos casos excepcionais de deferimento direto pelo Delegado de Polícia ou por demais Policiais.

            Cabe ainda ressaltar que o Promotor de Justiça não é e nunca foi legitimado a decretar medidas protetivas. [20] A Lei 13.827/19 inclui no rol de legitimados para essa decisão o Delegado de Polícia ou demais Policiais, mesmo assim excepcionalmente onde não for sede de comarca (artigo 12 –C, II e III e § 1º., da Lei 11.340/06). O Promotor é legitimado apenas para requerer a medida ao Juiz de Direito na clara dicção do artigo 19, “caput”, da Lei Maria da Penha. Nem haveria sentido para a legitimação extraordinária do Promotor de Justiça em locais que não são sede de comarca, pois que se não há ali Juiz disponível, também não há Promotor, sendo, portanto, inútil eventual previsão neste sentido.

 

3-AS DISCUSSÕES ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.827/19

 

            Há quem entenda que a Lei 13.827/19 seria inconstitucional por ferir a garantia da jurisdicionalidade das medidas cautelares processuais penais, ao permitir que o Delegado de Polícia e até mesmo Policiais em geral possam deliberar sobre a concessão imediata de medidas protetivas de urgência. Para esse entendimento, somente um Juiz de Direito teria legitimidade constitucional para essa espécie de decisão. Inclusive a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ingressou com a ADI 6138, alegando a inconstitucionalidade dos incisos II e III e do § 1º., do artigo 12 – C, criados pela Lei 13.827/19 no bojo da Lei 11.340/06.

            Entretanto, não há falar em violação à jurisdicionalidade, vez que, como já visto, o magistrado não fica alijado do procedimento. Nos termos do § 1º., do artigo 12 – C, deferida a medida, por exemplo, pelo Delegado de Polícia, cabe a este comunicar o Juízo competente no prazo máximo de 24 horas, de modo que o Juiz poderá manter ou revogar a medida, com ciência do Ministério Público. Trata-se de apenas mais um caso de jurisdicionalidade postergada, posticipada ou diferida, o que, aliás, não constitui novidade alguma em nosso ordenamento com previsões inclusive constitucionais, tais como nos casos de Prisão em Flagrante, declaração de insubsistência do flagrante, arbitramento de fiança, busca e apreensão em estado flagrancial, buscas pessoais, buscas em veículos; tudo isso é feito com deliberação direta, por exemplo, do Delegado de Polícia, sendo apenas posteriormente avaliado em sua legalidade pelo Judiciário. [21]

            Sobre o tema, indicando a constitucionalidade da lei e a preservação da reserva de jurisdição, assim se manifesta Nucci:

“Teve a referida lei a cautela de prever a comunicação da medida ao juiz, no prazo máximo de 24 horas, decidindo em igual prazo, para manter ou revogar a medida, cientificando o Ministério Público. Nota-se a ideia de preservar a reserva de jurisdição, conferindo à autoridade judicial a última palavra, tal como se faz quando o magistrado avalia o auto de prisão em flagrante (lavrado pelo delegado de polícia). Construiu-se, por meio de lei, uma hipótese administrativa de concessão de medida protetiva – tal como se fez com a lavratura do auto de prisão em flagrante (e quanto ao relaxamento do flagrante pelo delegado). Não se retira do juiz a palavra final. Antecipa-se a medida provisória de urgência (...). [22]

            Também Foureaux aponta a improcedência dessa alegação de inconstitucionalidade, vez que aos Delegados de Polícia já é dado conceder medidas cautelares diversas da prisão, bem como até mesmo a prisão imediata em flagrante. [23]

            A reserva de jurisdição é uma garantia posta aos indivíduos. Há quem a chame de “postulado” (Min. Celso de Melo, MS 23452/RJ), mas conforme Humberto Ávila, um postulado é uma norma que orienta a aplicação de outras normas, uma espécie de pressuposto que prescinde de demonstração e que serve, ao reverso, para fundar outras normativas [24] (seriam exemplos, a unidade do ordenamento jurídico, a legitimidade, a coerência, a hierarquia etc.).  Não parece que a reserva de jurisdição seja realmente um “postulado”, uma norma que se situa acima de outras quaisquer normas do ordenamento, já que, inclusive, suporta exceções. Apresenta-se muito mais com as feições de uma garantia ou de um direito fundamental que, conforme enfatiza Bobbio, não tem caráter absoluto, mas relativo. [25] Tanto é fato que a melhor doutrina constitucional estrangeira, formulada por Canotilho, se refere à reserva de jurisdição como “o direito de qualquer indivíduo a uma garantia de justiça, igual, efetiva e assegurada através de ‘processo justo’ para defesa das suas posições jurídico – subjetivas”. [26] E mais, essa reserva pode ser “absoluta” ou “relativa”, sendo que no segundo caso é possível que algo seja deliberado pela administração pública em um primeiro plano e somente ulteriormente a questão seja submetida ao crivo do judiciário de forma obrigatória ou opcional. [27]

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            Esse escólio é destacado por Sannini Neto, o qual se abebera na fonte dos ensinamentos de Ruchester Marreiros Barbosa, deixando claro que na maioria das vezes a primeira e a última palavra nos casos de “ingerência na esfera subjetiva” dos indivíduos se dá por decisão judicial (reserva absoluta). Ocorre que há casos de “reserva relativa” em que essa ingerência se dá inicialmente “por outra autoridade pública, podendo ser revisada pelo judiciário”. Nesses casos, “a revisão se dará por ato de ofício, por força de lei ou por provocação do interessado”. [28]

            No caso da Lei 13.827/19, a atribuição da concessão de medida protetiva de afastamento do agressor pela Polícia encontra abrigo numa excepcional relativização possível da reserva de jurisdição, submetendo obrigatoriamente, por força da própria lei, o ato administrativo à confirmação ou revogação pelo Juiz de Direito (inteligência do artigo 12 – C, II e III e § 1º., da Lei 11.340/06 com nova redação da Lei 13.827/19). Nada impede, outrossim, que o afetado pelo deferimento da medida também busque a manifestação judicial acerca da legalidade ou ilegalidade do decreto administrativo inicial.

            Dessa forma, por meio de “opção legislativa é perfeitamente possível atribuir a primeira palavra do Estado a outra autoridade pública distinta do juiz”, fato este, aliás, que já ocorre em diversos casos de cautelares. [29] Tanto é verdade que Frederico Marques, desde antanho, já classificava as medidas cautelares processuais penais quanto à natureza em “jurisdicionais” e “administrativas”. As primeiras necessitando de manifestação do Juiz de forma imprescindível e desde o primeiro momento. As segundas podendo ser tomadas por autoridade administrativa e somente posteriormente submetidas ao crivo da jurisdição. [30]

            Não se deve perder também de vista que há colisão entre o interesse relevantíssimo na preservação emergencial da segurança da mulher em situação de vulnerabilidade e a reserva formal de jurisdição. Nesse passo, o instituto formal deve ceder espaço para os mais importantes fins do Estado e do Direito, ou seja, a preservação dos interesses humanos envolvidos, já que o Direito é para o homem e não o homem para o Direito. Na lição de Dalla – Rosa, há que considerar:

“a prevalência indubitável da pessoa frente às instituições, ao Estado e mesmo em relação ao direito, que devem ser entendidos como mecanismos culturais desenvolvidos pela sociedade no intuito de melhor equacionar as necessidades individuais e coletivas”. [31]

            Aduz-se também a inconstitucionalidade da lei, agora tão somente com relação à concessão do poder de deliberação sobre as medidas protetivas a quaisquer policiais (agentes da autoridade). Fato é que não têm estes a necessária formação jurídica para a devida ponderação complexa que se exige numa deliberação dessa espécie. Toda decisão de Autoridade deve ser fundamentada por aplicação analógica da garantia do artigo 93, IX, CF, sob pena de violação das regras mínimas de um Estado Democrático de Direito. A formação, ou melhor, a falta ou, no mínimo, a enorme deficiência da formação jurídica de um policial para o qual não se exige bacharelado em Direito e muito menos experiência jurídica, está a indicar sua incapacidade para proferir decisões fundamentadas de maior calibre. Há o perigo ou mesmo certeza da mecanização dos procedimentos e da formulação de “modelos” genéricos com claros a serem preenchidos de forma autômata pelo Policial, o qual tem apenas rudimentos ou noções de direito e nem sequer é remunerado para prestação de um serviço de maior exigência técnica. Essa atribuição dada a agentes da autoridade, nesse passo, não seria justa nem para com a sociedade (não haveria garantia de um trabalho técnico adequado seja para vítimas seja para suspeitos), nem para com os próprios agentes policiais que seriam indevidamente explorados e expostos a possíveis responsabilizações por prevaricação ou abuso de autoridade no exercício de uma função para a qual não lhes foi exigido nem conferido o devido treinamento ou formação.

            Note-se que mesmo antes, quando ainda somente era possível à Autoridade Policial a formalização do requerimento da ofendida e seu encaminhamento a Juízo, já ressaltava Porto a necessidade de elaboração desse expediente, que se assemelha “a uma petição inicial de ação cautelar”, no mínimo, “com a supervisão do delegado de polícia, hoje profissional graduado em Direito”. [32] Imagine-se agora quando não se trata de mera formalização de um requerimento da vítima e seu encaminhamento, mas da análise fundamentada do deferimento ou indeferimento de uma cautelar, não de acordo com o artigo 12, III, mas com o artigo 12 – C, da Lei Maria da Penha.

            Como bem alerta Sannini Neto:

“Em reforço a esse entendimento, lembramos que na maioria absoluta dos casos em que se verificar violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher, haverá crime, o que exige um juízo de tipicidade a ser efetivado por autoridade com formação jurídica para tanto, razão pela qual, entendemos que tal atribuição não pode sair da esfera das polícias judiciárias, dirigidas por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito”. [33]

            Não é despiciendo lembrar com Barbosa que se pode dizer que o artigo 12 – C, III “padece de flagrante inconstitucionalidade”, a qual já foi “declarada pelo STF em caso idêntico tratado nas ADIns. 2.427 e 3.441”, exatamente devido à inadequada previsão de possibilidade de concessão de medida exigente de “conhecimento jurídico” por ocupante de cargo que não detêm tal característica. Mais explicitamente, o Ministro do STF, Carlos Ayres Brito, na ADI 3.441/RN, destacou a violação “ao artigo 144, parágrafo 4º. e artigo 37, II, ambos da CF/88” devido ao fato da atribuição de funções jurídicas a funcionários que não são ocupantes do “que o ministro denominou de ‘carreiras jurídicas (...) o que requer amplo domínio do Ordenamento Jurídico do País’”. [34]        

            Na dicção exata do Ministro:

“De se ver que, desde o primitivo § 4º. do artigo 144 da Constituição Federal, o cargo de Delegado de Polícia vem sendo equiparado àqueles integrantes das chamadas ‘carreiras jurídicas’, a significar maior rigor na seletividade técnico profissional dos pretendentes ao desempenho das respectivas funções. E essa exigência constitucional tem a sua explicação no fato de que incumbe aos delegados de polícia exercer funções de polícia judiciária, além de presidir as investigações para a apuração de infrações penais, o que requer amplo domínio do Ordenamento Jurídico do País”. [35]

            Outro aspecto relevante é que, ao reverso dos Juízes de Direito, as Autoridades Policiais (Delegados de Polícia) estão sempre à disposição da população em plantões de 24 horas sem solução de continuidade, ainda que acumulando várias localidades e se desdobrando nos atendimentos. Os Delegados de Polícia são, na verdade, as únicas autoridades com formação jurídica efetiva às quais a população tem acesso a qualquer tempo, são os primeiros garantidores da legalidade e da constitucionalidade.  A análise de situações de flagrância, cumprimento de mandados de prisão e outros diversos problemas apresentados nos plantões Policiais Civis sempre e invariavelmente passam pelo crivo da Autoridade Policial (Delegado de Polícia), diversamente do que ocorre com os Juízes. São essas Autoridades, os Delegados de Polícia que, até mesmo pela sua origem histórica, detém o poder de, como bacharéis em Direito e com experiência jurídica, em casos excepcionais, adotar medidas constritivas, em decisão final sob condição de avaliação jurisdicional postergada, nunca os agentes da autoridade. É importante destacar o excelente panorama histórico apresentado no trabalho de Zaccarioto que demonstra, com apresentação de fontes primárias, a origem judicial das funções de direção da Polícia Judiciária na figura do Delegado de Polícia, que tem sua gênese remota nos chamados “Juízes de Paz” e nos “Juízes de Instrução”. [36]

 Não deve prosperar a alegação de autores como Foureaux que consideram a “formação jurídica” dos policiais (agentes da autoridade e não Delegados de Polícia) suficiente e que o fato de que podem deter uma pessoa e apresentá-la à Autoridade Policial (Delegado de Polícia) seria argumento para a possibilidade de deliberação e decisão final sobre uma cautelar restritiva de direitos do suspeito. [37] Note-se que a argumentação do autor não se sustenta, pois equipara casos díspares. Os Policiais não tomam decisões finais acerca de nada, apenas apresentam invariavelmente os casos à Autoridade Policial para sua deliberação. No caso da medida protetiva de afastamento do agressor, poderiam tomar realmente uma decisão sobre a concessão ou não da ordem, o que extrapola suas atribuições. Mormente em se tratando de Policiais Militares, Rodoviários Federais, Ferroviários, Guardas Civis etc., aos quais não são atribuídas funções de Polícia Judiciária, mas tão somente de policiamento preventivo – ostensivo (inteligência do artigo 144, §§ 2º., 3º., 5º. , e 8º., CF). Mesmo os Policiais Civis, que integram a Polícia Judiciária, não têm autonomia decisória nos termos da lei e da Constituição Federal, pois as Polícias Civis são dirigidas por Delegados de Polícia de Carreira. Similarmente, no caso da Polícia Federal (embora nessa área seja raro o trato com a violência doméstica e familiar contra a mulher), sua estruturação em carreira (artigo 144, § 1º., CF) nunca deixou de ser sob a direção de Delegados de Polícia com bacharelado e exigência de experiência jurídica. E não poderia ser de outra maneira, sob pena de um tratamento desigual e desidioso para com a Polícia Federal em relação às Polícias Civis dos Estados (basta uma interpretação sistemática dos §§ 1º., e 4º., do artigo 144, CF).  Dessa forma, os Policiais Civis, até podem conceder medidas protetivas, pois que são componentes da Polícia Judiciária, mas sempre sob a direção e orientação do Delegado de Polícia de seu cargo, nunca de forma absolutamente autônoma. Ademais, a Lei 12.830/13 determina que as funções de Polícia Judiciária e apuração de infrações penais realizadas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica, cabendo-lhe a condução da investigação. Assim também o cargo é privativo de Bacharel em Direito (artigo 2º., § 1º., e artigo 3º., da Lei 12.830/13). Nesse ponto, ou seja, no que diz respeito ao disposto no artigo 12 – C, III, da Lei 11.340/06 com nova redação dada pela Lei 13.827/19, entende-se haver parcial inconstitucionalidade devido à possível interpretação de atribuição de atos de Polícia Judiciária, privativos do Delegado de Polícia a Policiais que não detém, por força constitucional, atribuições dessa espécie. Além disso, o dispositivo sobredito confronta com as determinações da Lei 12.830/13. Em suma, o inciso III, do artigo 12-C, da Lei Maria da Penha será inconstitucional se interpretado como autorizador da concessão de medidas cautelares por quaisquer policiais. Somente o poderão os Policiais Civis, mesmo assim, sob a orientação e direção do Delegado de Polícia. Sabe-se que há falta de profissionais Delegados, de modo que há acúmulo de plantões, sendo, por vezes, a presença física constante impossível. Entretanto, a orientação e direção deve sempre ocorrer, nos termos da lei e da Constituição.

            Diverso não é o entendimento de Sannini Neto:

“Particularmente, nos valendo de uma interpretação sistemática, entendemos que apenas o policial civil poderá aplicar a medida protetiva de afastamento, mas desde que haja a análise do delegado de polícia de forma remota. Dizendo de outro modo, nas cidades em que não houver delegado de polícia de plantão in loco, o caso deverá ser apreciado pela autoridade policial da cidade mais próxima, em analogia com o artigo 308, CPP”. [38]

            Há policiais em que salta aos olhos que a atribuição nada tem a ver com a concessão de cautelares, muito menos medidas protetivas em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Por exemplo, o que tem a ver com essa atribuição um Patrulheiro Rodoviário Federal? Ou um Policial Ferroviário? Ou mesmo um Guarda Municipal? Até mesmo o Policial Militar, somente tem função constitucional de policiamento, patrulhamento e apresentação de ocorrências à Autoridade Policial quando necessário. Ainda mais gritante seria a atuação dos chamados integrantes das “Polícias Técnicas” (sic). O Perito é um auxiliar da Justiça e da Polícia Judiciária e não propriamente um policial que administra medidas restritivas no curso de uma investigação. Efetivamente os Peritos estão arrolados no Código de Processo Penal, ao lado dos Funcionários da Justiça, como “Auxiliares da Justiça” (Vide Título VIII, “in fine”, Capítulos V e VI, artigos 274 e 275 a 281, e ainda o artigo 6º., VII,  CPP). Imagine-se o absurdo de um Perito Técnico ou, ainda mais estranho, um Médico Legista, concedendo medidas protetivas de urgência!   

            A absurdidade legal e constitucional de uma interpretação ampla do artigo 12 – C, III, da Lei 11.340/06, com redação da Lei 13.827/19 é tão grande que, no Estado de São Paulo, chegou a ser publicada a Resolução SSP 43, de 28.06.2019. Essa malfadada Resolução determinava a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência por Policiais Militares, por Policiais Civis em geral e, pasmem, por denominados “policiais” técnico científicos (o que abrangeria Peritos, Médicos Legistas, fotógrafos, auxiliares de necropsia, atendentes de necrotério, papiloscopistas, auxiliares de papiloscopista etc.). O impacto ante o inusitado da Resolução 43/19 foi tamanho, que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, poucos dias depois, em data de 03.07.2019, a revogou total e expressamente por meio da Resolução 54/19.

4-QUESTÕES RECURSAIS

 

            Sendo a medida protetiva decretada ou denegada pelo Juiz de Direito a pedido da ofendida ou do Ministério Público (artigo 19, § 1º. e artigo 12 – C, I, da Lei 11.340/06), ou então ratificada ou revogada a medida imposta pelo Delegado de Polícia ou demais policiais, nos termos do artigo 12 – C, II e III da mesma legislação, embora a Lei Maria da Penha ou outro diploma legal processual penal não preveja expressamente qualquer recurso, há ingente discussão doutrinário – jurisprudencial acerca de qual medida possa ser tomada em caso de inconformismo com a decisão judicial.

            É bom lembrar que o Delegado de Polícia, de acordo com o disposto no artigo 12, III c/c 19, “caput”, da Lei 11.340/06 não pode postular pela medida, mas apenas encaminhar o pedido da mulher a Juízo para apreciação. Cabe, ao menos num primeiro momento, apenas à ofendida, solicitar as medidas e à Autoridade Policial fazer o encaminhamento dessa solicitação ao Juízo. [39] Somente é previsto o requerimento independentemente da vontade da mulher por parte do Ministério Público, nos termos do artigo 19, “caput”, da Lei Maria da Penha. [40]

            Mas, é viável, com o advento do artigo 12 – C pela Lei 13.827/19 entender que quem pode o mais, pode o menos. Fato é que, ao menos no que se refere ao pedido de afastamento do agressor, o dispositivo não exige o requerimento da ofendida, abrindo a possibilidade de atuação “ex officio” dos atores ali elencados, Juiz, Delegado de Polícia e demais Policiais. Ora, se a Autoridade Policial pode o mais, que é decretar diretamente a medida protetiva, independentemente de requerimento, avaliando soberanamente a presença de “risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher (...) ou de seus dependentes”, certamente poderá o menos, que é formular uma representação ao Juiz de Direito, ainda que não haja provocação da vítima. O mesmo se diga com respeito à atuação do magistrado de ofício. No artigo 12 – C, I, ele também está autorizado a decretar a medida sem imprescindibilidade de provocação da vítima ou do Parquet. Parece, portanto, que surge uma derrogação do artigo 19, “caput”, da Lei Maria da Penha, podendo agora, pelo menos nos casos de afastamento do agressor, agir o magistrado de ofício, sem necessidade de provocação do Ministério Público ou da ofendida. Na verdade, não se vê motivo algum por que não possa o Juiz também decretar as demais medidas de ofício, desde que haja risco concreto para a vítima ou seus dependentes. O mesmo se diga a respeito da representação do Delegado de Polícia e demais policiais (quanto aos demais policiais, tudo que se tem afirmado é com base na letra da lei, ficando a discussão acerca da constitucionalidade de sua atuação autônoma). Quanto ao Delegado de Polícia e demais Policiais, frise-se que apenas é possível cogitar da possibilidade de representação autônoma, não de decreto das demais medidas protetivas afora o afastamento, pois que não há para tanto previsão legal e há clara e evidente reserva de jurisdição, a qual somente poderia (e em nosso entender deveria – proposta de “lege ferenda”) ser afastada por lei. A representação em outras medidas, por seu turno, admite a interpretação lógica e sistemática do artigo 12 – C e seu confronto com o artigo 12, III, da Lei 11.340/06, pois que se refere a mero pedido e não ao decreto direto, sem intermediação judicial. O magistrado, por seu turno, tem o poder geral de decreto das medidas e, com o advento do artigo 12 – C apenas teria ampliada sua possibilidade de atuação “ex officio”. É claro que poderá também haver quem não admita a atuação “ex officio” em nenhum desses casos, considerando implícita a exigência de requerimento da ofendida, sendo mantida apenas a atuação independente do Ministério Público, nos termos do artigo 19, “caput” da lei em comento. Também haverá quem admita as atuações “ex officio” acima arroladas, mas com a limitação à medida protetiva de afastamento do agressor tão somente. Por fim, com relação ao magistrado é sempre bom lembrar ser discutível sua atuação de ofício na fase pré – processual, considerando a norma geral prevista no artigo 282, § 2º., CPP.

            Feita essa breve digressão, voltemos à discussão sobre a recorribilidade da decisão judicial concessiva ou denegatória das medidas protetivas.

            Havendo deferimento judicial das medidas (artigos 18, I c/c 19 ou artigo 12, I) ou sua manutenção nos casos do artigo 12 – C, II e III da lei de regência, inexistindo recurso previsto, resta o remédio constitucional do “Habeas Corpus”, já que há imposição de restrição ao investigado ou acusado. Entretanto, tal posição não é pacífica, havendo entendimentos sobre cabimento de apelação criminal ou civil, recurso em sentido estrito, agravo de instrumento, correição parcial e mandado de segurança. [41]

Parece-nos que, SMJ., o “Habeas Corpus” é o caminho mais adequado, inclusive pela sua maior celeridade, considerando a restrição imposta ao suspeito.

            Agora, quando ocorrer o indeferimento das medidas protetivas pelo Juiz, existe ainda maior celeuma jurídica acerca do instrumento a ser utilizado para pleitear a reforma do “decisum”. Novamente vêm à baila as hipóteses acima elencadas, excluído, por obviedade, o “Habeas Corpus”.

            Freitas afirma caber o Agravo de Instrumento, nos seguintes termos:

“Importante novidade deriva da concessão, revisão ou substituição de uma das medidas protetivas de urgência. Qual o recurso que a parte poderá manejar? A lei previu. Aquela que se sentir prejudicada impetrará agravo de instrumento, na forma do CPC, dirigido a uma das Câmaras do Tribunal de Justiça. Torna-se aparentemente esdrúxula a hipótese, no entanto é o que se extrai do art. 22, § 4º, da Lei 11.340/06, verbisAplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos parágrafos 5º e 6º do artigo 461 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). E, para integral compreensão da mens legis, a redação do art. 461 e seus parágrafos é a seguinte:

§ 5º - Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

§ 6º - O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.

Assim, os juízes criminais e seus cartórios precisam se adequar à novidade de conceder medidas de apoio, denominadas de protetivas, às mulheres em situação de violência doméstica ou familiar, vez que as medidas assumem um resultado prático imediato equivalente ao do cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. Por certo, os juízes cominarão multa diária ao varão no caso de descumprimento à determinação imposta.

Importante: se o agressor quiser discutir o mérito da medida protetiva determinada pelo juiz criminal deverá fazê-lo na Vara de Família. Jamais na Justiça Criminal, quando somente o recurso de agravo terá cabimento”. [42]

            O autor destacado entende que a referência do artigo 22, § 4º., da Lei 11.340/06 aos dispositivos do CPC que então tratavam de tutela provisória de urgência contra cuja decisão cabe o recurso de Agravo de Instrumento, configuraria uma previsão expressa do recurso adequado para a negativa de concessão de medidas protetivas pelo magistrado. E mais, considera que tal recurso deveria tramitar na seara civil (Vara de Família) em paralelo com a criminal.

            Antes de mais nada, é necessária uma explicação. A referência do artigo 22, § 4º., da Lei 11.340/06 ao artigo 461, §§ 5º. e 6º., CPC, versando sobre tutela provisória de urgência, encontra-se no momento desatualizada. A edição da Lei Maria da Penha data de 2006 e o artigo jurídico de Freitas data de 2007. Estava em vigor o CPC de 1973 (Lei 5.869/73), com alterações da Lei 8.952/94, sendo fato que então o artigo 461, CPC realmente tratava da tutela provisória em obrigações de fazer. [43] Antes disso, na versão original do CPC de 1973, sem as alterações da Lei 8.952/94, o artigo 461, CPC tratava do requisito da certeza da sentença. [44] Ocorre que o CPC de 1973 foi expressamente revogado pela Lei 13.105/15 (artigo 1046), doravante conhecida como “Novo Código de Processo Civil”. Hoje o artigo 461, CPC se refere não mais a obrigações de fazer e tutelas provisórias, mas a regras acerca da produção de prova testemunhal no Processo Civil. A questão da tutela provisória em obrigações de fazer é atualmente objeto dos artigos 536 e 537, CPC/2015. Entretanto, tal fato não invalida o dispositivo do artigo 22, § 4º., da Lei 11.340/06. Basta que se tenha em mente que a referência ali agora é aos artigos 536 e 537, CPC/2015. Em assim sendo, realmente é de se concluir que, por consequência, o recurso cabível, conforme previsão legal reflexa, seria o Agravo de Instrumento, hoje regulado pelos artigos 1015 a 1020, CPC/2015. Isso porque o artigo 1015, I, CPC/2015 determina que o Agravo de Instrumento serve a combater decisões interlocutórias que versem sobre “tutelas provisórias”.

            Ressalvado o manejo do “Habeas Corpus” no caso de deferimento, conforme nosso entendimento acima exposto, é realmente possível a defesa da tese do cabimento do Agravo de Instrumento e até mesmo de seu cabimento nos casos de deferimento ou indeferimento. Ensina Theodoro Júnior que o Agravo de Instrumento se presta a combater “decisão que verse sobre tutelas provisórias”. E “tutelas provisórias são aquelas” previstas como “urgentes (medidas cautelares ou antecipatórias) e medidas de tutela de evidência”. Nesses casos, conforme o processualista civil mencionado, caberá o Agravo de Instrumento “tanto das decisões que deferem como das que indeferem as medidas provisórias no todo ou em parte”. [45]

            Assim sendo, entende-se que também é possível (em caso de deferimento da medida), optar pelo “Habeas Corpus”, mas seria cabível o Agravo de Instrumento, nos termos do artigo 1015, I, CPC/2015 no caso de indeferimento, sempre impetrados em uma das Câmaras do Tribunal de Justiça respectivo, pois que se questiona decisão do Juiz de Direito de primeiro grau.

            Discorda-se, porém, de Freitas quando afirma que o recurso deveria ser interposto na Vara de Família (Civil). Isso seria correto apenas se a medida for deferida no bojo de Processo Civil. Mas, quando se trata de violência doméstica e familiar o tema é penal e a cautelar é de natureza processual penal. A Lei Maria da Penha prevê inclusive a criação de “Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”, os quais seriam “órgãos da Justiça Ordinária”, com competência cumulativa “cível e criminal” (artigo 14, da Lei 11.340/06). E mais, enquanto não estruturados tais Juizados, estabelece que “as varas criminais acumularão as competências cível e criminal” para conhecer e julgar as questões envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 33, da Lei 11.340/06). Dessa maneira, seja o “Habeas Corpus” ou o Agravo de Instrumento, deverão ser impetrados perante os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou, na sua falta, na vara criminal respectiva onde tramitar o feito e não na Vara Civil de Família. É claro que serão processados e julgados pelo Tribunal de Justiça respectivo, conforme já mencionado, por se tratar de questionamento de decisão do Juiz de Direito de primeira instância. Não se vê motivo para tal cisão do procedimento, nem da competência, o que, na verdade, geraria confusão processual.

            Nada impede, porém, conforme alerta Dias, que uma vez indeferidas as medidas protetivas na área criminal, se valha a mulher de pedido de separação de corpos na área cível. Em suas palavras:

“Indeferida a medida protetiva pleiteada pela vítima por meio do procedimento enviado pela autoridade policial, tal medida não obsta a que a vítima promova ação no âmbito da jurisdição civil com o mesmo propósito. Não há como falar em coisa julgada. Rejeitado o pedido de separação de corpos ou a fixação de alimentos, pode a vítima intentar ação cautelar de separação de corpos ou ação de alimentos”. [46]

            Vale salientar que a mesma autora entende que o recurso cabível contra a decisão judicial de indeferimento ou deferimento varia de acordo com a natureza do pleito. Tratando-se de “medida protetiva de natureza criminal, cabe recurso em sentido estrito a ser apreciado pelas Câmaras Criminais dos Tribunais de Justiça”. Já, versando a questão sobre tema civil teria cabimento o recurso de agravo. [47] Ressalvando nosso entendimento sobre o cabimento do “Habeas Corpus” nos casos de deferimento, a posição de Dias também é altamente defensável.

            É de ressaltar que, dada a polêmica sobre o tema, a impetração de qualquer dos instrumentos recursais ou ações autônomas de impugnação que encontram guarida na doutrina e na jurisprudência deve ser acatada com fulcro no chamado “Princípio da Fungibilidade”, pois que certamente não haverá campo para reconhecimento de má – fé do impetrante. [48]

            Resta saber agora qual seria eventual recurso cabível contra decisão do Delegado de Polícia ou outro Policial que defere ou indefere a medida protetiva específica de afastamento do agressor, nos estritos termos do artigo 12 – C, II e III da Lei 11.340/06, com nova redação dada pela Lei 13.827/19.

            Primeiro é preciso dizer que o questionamento de tal decisão dificilmente será levado a termo, pois que a deliberação em questão é praticamente uma pré – cautelar de curtíssima duração, devendo ser apreciada pelo Juízo no prazo máximo de 48 horas, conforme dispõe ao artigo 12 – C, § 1º., da Lei Maria da Penha. A Autoridade Policial (Delegado de Polícia) ou o Policial (Agentes da Autoridade) tem o prazo de 24 horas para comunicar o Juiz e este mais 24 horas para a decisão, o que leva a um tempo máximo de 48 horas, razão pela qual, na maioria dos casos, eventual inconformismo será manifestado com a prolação da decisão judicial definitiva e não perante a decisão policial pré – cautelar.

            Não obstante não é impossível que se pretenda, desde logo, combater a deliberação Policial.

            Fato é que inexiste recurso previsto contra decisões tomadas pelo Delegado de Polícia e muito menos pelos demais Policiais. No que se refere ao Delegado de Polícia, ainda existe previsão no artigo 5º., § 2º., CPP  que trata do recurso contra o despacho que indefere a instauração de Inquérito Policial. Tal recurso seria dirigido ao “Chefe de Polícia”, geralmente, na vida prática, entendida tal expressão como o superior hierárquico administrativo imediato do Delegado de Polícia responsável pelo indeferimento, embora se entenda também ser o Delegado Geral de Polícia [49] ou mesmo o Secretário de Segurança Pública. [50] Poder-se-ia cogitar de aplicação analógica desse dispositivo do Código de Processo Penal em casos de indeferimento do pedido pelo Delegado de Polícia. Porém, além da morosidade dessa opção (os casos são de urgência e o recurso administrativo será processado no expediente e imagine-se a demora se for destinado ao Delegado Geral ou pior, ao Secretário de Segurança Pública), não se pode dizer que fosse efetivamente um “recurso” processual penal. Esse “recurso” previsto no artigo 5º., § 2º., CPP, é claramente de natureza administrativa e não processual penal, mesmo porque se desenvolve na fase pré – processual. [51] Ademais, não há a mesma previsão para quaisquer atos dos demais Policiais.

            A conclusão é que da decisão de indeferimento da medida protetiva pela Autoridade Policial (Delegado de Polícia) ou pelos demais Policiais (Agentes da Autoridade), inexiste recurso, seja processual penal, seja administrativo. A opção é tão somente reiterar o pedido de imediato perante o Juiz de Direito ou provocar o Ministério Público para que requeira a medida protetiva.

            Agora, se o Delegado de Polícia ou outro Policial decretar a medida protetiva, embora também inexista recurso manejável, caberá a impetração de “Habeas Corpus” perante o Juiz de Primeiro Grau.

 

5-DESCUMPRIMENTO DA MEDIDA PROTETIVA IMPOSTA PELA POLÍCIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

 

            Determinada a medida protetiva de afastamento do agressor pela Autoridade Policial ou seus agentes, nos termos da Lei 13.827/19, sendo essa ordem legal descumprida pelo seu destinatário, quais seriam as consequências de natureza penal e processual penal?

            A Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 20 a possibilidade de decretação da Prisão Preventiva do infrator e é corroborada pelo artigo 313, III, CPP, que também determina a decretação da preventiva para fins de garantia das medidas protetivas de urgência. Não há dúvida também que se as medidas foram impostas, se pressupõe a existência de prova do crime e indícios suficientes de autoria, bem como o descumprimento caracteriza, seguramente, no mínimo, violação à ordem pública, quando não houver também conveniência para a instrução criminal se o agressor estiver intimidando a vítima e/ou parentes e testemunhas, nos termos do artigo 312, CPP.

            A Autoridade Policial, contudo, não poderá, como é sabido, decretar diretamente a Prisão Preventiva. Somente poderá representar ao Juiz de Direito para que este a decrete, nos termos dos dispositivos supra arrolados e do artigo 311, CPP. Também poderá requerer a preventiva o Ministério Público e mesmo a poderá determinar de ofício o magistrado (inteligência do artigo 311, CPP). Quanto ao magistrado, em se tratando, como se trata, de fase pré processual, é controverso se pode agir de ofício, tendo em vista o choque entre o artigo 311, CPP e o artigo 282, § 2º. CPP.  

Inconteste é que quando se fala em “Autoridade Policial” que pode representar pela preventiva, somente se pode estar falando na figura do Delegado de Polícia. Os Policiais em geral (Agentes da Autoridade) não têm capacidade legal para representar pela Prisão Preventiva. Na escorreita lição de Sannini:

“Desse modo, levando-se em consideração que o Poder Judiciário não pode agir de ofício, a representação serve de instrumento à preservação do próprio sistema acusatório. Trata-se, portanto, de um ato jurídico – administrativo de atribuição exclusiva do delegado de polícia e que pode ser traduzido como verdadeira capacidade postulatória imprópria”. [52]

 Acaso a medida tenha sido imposta por Agentes da Autoridade, nos termos do artigo 12 – C, III, da Lei 11.340/06, somente poderão comunicar o Delegado de Polícia e aguardar sua representação ou mesmo comunicar o Ministério Público para que proceda ao requerimento necessário. A comunicação ao Juiz para decretação de ofício, como visto, é controversa e nesse caso funcionaria como uma espécie de representação por via reflexa, o que é evidentemente ilegal e insustentável em nosso ordenamento processual penal.  Esse é um dos problemas criados pela indevida legitimação de Policiais em geral para a decretação da medida, não se limitando o legislador à figura do Delegado de Polícia.

Questão tormentosa é saber se o descumpridor da medida imposta pela Polícia responde por infração ao artigo 24 – A da Lei 11.340/06 ou pelo menos pelo crime de “Desobediência”, previsto no artigo 330, CP.

Analisando a questão sob o prisma da estrita legalidade, não é possível responsabilizar o infrator pelo crime previsto no artigo 24 – A, da Lei Maria da Penha, pois que ali se incrimina a conduta do descumprimento de “decisão judicial” que defere medidas protetivas de urgência. Ora, a decisão enfocada não é “judicial”, mas “policial”, de modo que a pretensão de aplicação do dispositivo no caso de ordem do Delegado de Polícia ou de agentes da autoridade policial, esbarraria no Princípio da Legalidade e na correlata vedação de analogia “in mallam partem”. [53]

No que tange ao crime de desobediência, trata-se de jurisprudência consolidada pelo STJ o entendimento de que “o crime de desobediência é subsidiário e somente se caracteriza nos casos em que o descumprimento da ordem emitida pela autoridade não é objeto de sanção administrativa, civil ou processual” (STJ, AgRg no AREsp 699.637/SP). Por isso certamente há sustento para a alegação de que não seria possível a imputação desse ilícito, uma vez que, como já visto, há possibilidade de decreto de Prisão Preventiva, sanção processual penal. [54]

Realmente inviável por infração à legalidade e conformação de analogia maligna, a aplicação do artigo 24 – A, da Lei 11.340/06 ao agressor recalcitrante. Doutra banda, não parece adequado o entendimento do STJ, antes aplicável inclusive ao descumprimento de medidas protetivas da Lei Maria da Penha, quando não existia o crime do artigo 24 – A sobredito. Naquela época a questão girava em torno do artigo 330, CP ou mesmo artigo 359, CP, já que não existia o artigo 24 – A da Lei Maria da Penha. Com o surgimento deste último, a desobediência da ordem judicial ficou solucionada. Mas, com as alterações do artigo 12 – C, II e III da Lei 11.340/06 pela Lei 13.827/19, surgiu o problema da desobediência da ordem policial. A jurisprudência do STJ se refere a casos em que a desobediência conta com sanção aplicável pela própria Autoridade que emitiu a ordem descumprida. Na época anterior à criação do artigo 24 – A em destaque, o Juiz era quem determinava a medida protetiva e ele mesmo decretava a prisão preventiva. Em outros casos, como infrações de trânsito, o próprio agente autua o infrator. Na seara civil o próprio Juiz estabelece multa etc. Não é o que ocorre hoje com a medida protetiva por ordem policial. O Delegado de Polícia, por exemplo, determina o afastamento do lar e o agressor não obedece. Não tem o Delegado a atribuição de impor a Prisão Preventiva. Como visto, há que representar para que o Juiz o faça. Portanto, não se trata de caso idêntico ao tratado nas decisões reiteradas do STJ. Há aqui um “distinguishing” razoável para que se possa aplicar o crime de desobediência, nos termos do artigo 330, CP. Na dicção de Martin:

“Este é um método o qual pode ser usado por um Juiz para evitar seguir decisões passadas, as quais ele teria, caso contrário, que seguir. Isso significa que o Juiz acha que os fatos materiais do caso que ele está decidindo são suficientemente diferentes para ele traçar uma distinção entre o presente caso e o precedente anterior. Ele não está, portanto, limitado ao caso antecedente”. [55]

            Não se pode dizer que a Autoridade Policial e muito menos seus agentes contem com alguma sanção não penal para coibir, por si mesmos, a recalcitrância do infrator, nos exatos moldes dos precedentes do STJ, há claramente elemento de distinção relevante. Ficam manietados tais agentes estatais e sua ordem seria então despida de qualquer garantia de eficácia. Direito sem garantia é algo simplesmente inútil, virtualmente inaplicável, pois que não conta com poder de persuasão de quem quer que seja. Para que se reconheça um direito é necessário primeiro identificar quem tem a obrigação de cumpri-lo e quais os meios de impor esse cumprimento ou de sancionar sua violação. Na lição de Dalla – Rosa:

“Assim, ao entender-se poder como possibilidade de ação social, o direito nada mais pode ser do que a garantia dada por alguém, de fora, ao exercício de um poder. Ou seja, de forma alguma se poderia falar em direito se não existisse previamente um meio de fazê-lo existir, que seria a garantia jurídica de possibilidade de atuação (ou não) conforme a decisão pessoal de cada pessoa.

Ao suprimir essa garantia, automaticamente desaparece o direito, pois é impossível pensar em um direito (...) se essa mesma prerrogativa não fosse garantida, pois tal não existiria, a não ser como parte de um discurso retórico manipulador”. [56]

Dessa maneira não se vê óbice à aplicação do artigo 330, CP aos casos em que haja descumprimento da medida imposta por ordem policial. Isso porque tanto o poder – dever das autoridades, visto como exercício de um direito, como os direitos da mulher agredida, restariam pairando num vácuo sem o suporte de qualquer garantia direta e, portanto, não seriam direitos verdadeiros, mas meros fantoches jurídicos. Já aquelas medidas protetivas impostas por ordem judicial continuam normalmente configurando, em seu descumprimento pelo agente, a infração ao artigo 24 – A, da própria Lei Maria da Penha, afora o poder judicial de decretar a Prisão Preventiva.

Também Foureaux chega à mesma solução final:

“Deve-se destacar que quando a autoridade policial conceder medida protetiva de urgência, caso o agressor descumpra a ordem, antes do juiz mantê-la, não praticará o crime previsto no art. 24 – A da Lei Maria da Penha, pois este crime exige para a sua caracterização que a medida protetiva de urgência tenha sido concedida por decisão judicial.

Enquanto o afastamento não é analisado judicialmente possui título de decisão extrajudicial de natureza policial. A partir do momento em que o juiz mantém a ordem da autoridade policial o fundamento jurídico que afasta o agressor do lar passa a ter natureza jurídica de decisão judicial, motivo pelo qual será possível responsabilizar o agressor pelo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência.

Em que pese não se tratar do crime previsto no art. 24 – A da Lei 11.340/06 quando o agressor descumprir a ordem de afastamento do lar emitida pela autoridade policial, a desobediência caracteriza o crime de desobediência previsto no artigo 330 do Código Penal”. [57]

            Por seu turno, Sannini Neto discorda da afirmação de que seria viável o acima mencionado “distinguishing”, considerando irrelevante a questão sobre a quem cabe impor a medida extrapenal em casos de descumprimento. Para o autor, a princípio estaria inviabilizada a via do crime de desobediência (artigo 330, CP), restando incólume e aplicável ao caso a barreira imposta pelo entendimento do STJ. No entanto, deixa em aberto a possibilidade de interpretação no sentido de que a Prisão Preventiva não seria “uma sanção processual”, mas “simples readequação da medida cautelar” diante de uma mudança de cenário, o que abriria campo para reconhecer o crime de desobediência. [58] Isso certamente nos remete às características comuns a todas as cautelares, consistentes na revogabilidade, provisoriedade e substitutividade. Esse entendimento, embora racionalmente defensável, parece olvidar o fato de que essa chamada “readequação” se dá mediante um agravamento considerável da restrição cautelar, o que torna, SMJ., inafastável a qualidade de sanção processual. O argumento trabalha um jogo de palavras que pode satisfazer uma lógica formal, que é mero instrumento do pensamento, podendo ser preenchida com quaisquer assertivas. O critério da validade de uma ideia, não se pode sustentar apenas em sua racionalidade lógica, mas em um juízo de valor e de conteúdo.  Finalmente, Sannini Neto propõe o que chama de uma “interpretação extensiva” do artigo 24 –A da Lei 11.340/06 e sua aplicação aos casos de descumprimento de medidas protetivas “deferidas pelo Delegado de Polícia”. Chama a atenção para o fato de que na época da edição dessa norma penal, as medidas sobreditas somente poderiam ser aplicadas “pela autoridade judicial”. [59] Na verdade o que autor propõe é o reconhecimento de uma “interpretação progressiva ou evolutiva” do artigo 24 – A, da Lei Maria da Penha. A chamada interpretação progressiva ocorre quando um dispositivo de lei deve ser submetido a atualização por via interpretativa, sempre que há uma alteração nas circunstâncias sociais e esse dispositivo permite uma ampliação ou restrição de sentido. A nosso ver, essa flexibilidade semântica, essa permissão de ampliação ou restrição de sentido deve estar contida na formatação da norma, caso contrário, a legalidade, especialmente em termos penais, se impõe. É muito diverso considerar que uma nova forma de comunicação pode ser abrangida pelo sigilo telemático da Lei 9296/96, quando aquela legislação trata de “comunicações telefônicas de qualquer natureza” (inteligência do artigo 1º., da Lei 9.296/96). Também é diversa a situação de uma norma como a que trata do “furto de energia” (artigo 155,§ 3º., CP), que menciona a “energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. Normas como essas admitem clara e evidentemente a chamada “interpretação progressiva ou evolutiva”, mas isso é permitido pela dicção legal. Em termos penais, torna-se muito perigoso e desaconselhável a aplicação dessa modalidade de interpretação sem que a norma legal, em seu conteúdo semântico, permita esse elastério, ao menos para fins de incriminação de condutas. Eventualmente essa espécie de processo hermenêutico poderia ser utilizado “in bonam partem”, mesmo sem expressa e induvidosa redação permissiva de adequação, o que não é o caso. Na verdade, a pretensão de incriminar com o recurso ao artigo 24 – A da Lei 11.340/06 o descumprimento de ordem policial, quando a lei somente menciona ordem judicial, constitui induvidosa analogia “in mallam partem”, absolutamente vedada na seara penal.

            Essa distinção aqui exposta é acatada pelo estudioso lusitano Figueiredo Dias, o qual apresenta, dentre outros, exatamente o exemplo do furto de energia, que gerou controvérsia na doutrina e na jurisprudência, seja de Portugal, seja da Alemanha. [60] E no seguimento, a respeito da “interpretação progressiva ou evolutiva” deixa consignado o seguinte:

“(...) óbvio é que o intérprete pode (e deve) tomar em conta novas realidades, novas descobertas, novos instrumentos e mesmo novas concepções que não poderiam ter estado no campo de representação do legislador histórico, desde que o toma-las em conta não implique ultrapassar o teor ‘literal’ da regulamentação e o seu campo de significações adequadas ao entendimento comum das palavras que naquela foram utilizadas”. [61]

            Não se pode olvidar aquilo que Whitehead aduz ao tratar das características do Direito na cultura ocidental:

            “O direito é para o governo tanto um instrumento como uma condição restritiva”. [62]

            Embora não se possa negar que o Juiz é não somente intérprete, mas também “criador” do Direito em sua aplicação concreta, isso não implica em que seja ele “um criador completamente livre de vínculos”. O sistema jurídico moderno estabelece e aplica determinados “limites à liberdade judicial”, tanto processuais como materiais. [63] Nesse passo:

“Também é verdade que existe, pelo menos, um baluarte extremo, digamos uma fronteira de bom senso, que se impõe tanto no caso da interpretação do case law, quanto no do direito legislativo, ao menos porque também as palavras têm frequentemente um significado tão geralmente aceito que até o juiz mais criativo e sem preconceitos teria dificuldade de ignorá-lo.

(...) criatividade jurisprudencial, mesmo em sua forma mais acentuada, não significa necessariamente ‘direito livre’, no sentido de direito arbitrariamente criado pelo Juiz no caso concreto”. [64]

            Lord Devlin, já em 1974, alertava em sua “Chorley Lecture”:

“É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao Estado totalitário”. [65]

            Não há dúvida quanto ao fato de que o descumprimento da ordem policial não pode restar impune na seara penal, assim como era inadequado, até o surgimento do artigo 24 – A da Lei 11.340/06, a falta de previsão de reprimenda para o descumprimento da ordem judicial. Havia na época uma situação de insuficiência protetiva do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, é defensável a tentativa de encontrar uma reprimenda para o recalcitrante em relação à atual ordem policial. Isso é do interesse da ofendida e de toda a sociedade. Mas, também é do interesse do suspeito e de toda a sociedade, o devido respeito ao Princípio da Legalidade e a interpretação restritiva dos tipos penais, salvo raras e justificadas exceções. Faz-se necessário ponderar interesses em jogo, pois há conflito de direitos fundamentais de lado a lado. A solução há que ser aquela que promova o equilíbrio. Nas palavras de Luño, mister é  compreender que os direitos fundamentais, em sua concepção valorativa objetiva, são representativos de um pacto entre as diversas forças sociais, obtido em meio a relações de tensão e cooperação. [66]

Observe-se que se o indivíduo descumpre a ordem policial de afastamento, o crime de desobediência caracterizado é relacionado à violência doméstica e familiar contra a mulher e, portanto, à Lei 11.340/06. Dessa forma, não importa que o artigo 330, CP seja abrangido, em regra, pela Lei 9.099/95. Nesses casos, a Lei 11.340/06 veda a aplicação dos benefícios inerentes às infrações de menor potencial ofensivo, sendo possível normalmente a prisão em flagrante, de acordo com o artigo 41 da Lei 11.340/06. A Prisão em Flagrante com sua função pré – cautelar política de restauração imediata da ordem social, exsurge como outro instrumento garantidor dos direitos da vítima e do exercício de poder legítimo das autoridades envolvidas. Ademais, afastado do lar por ordem legal, se for encontrado dentro da habitação, não pode ser considerado como morador e então, violando a ordem decretada, estará perpetrando também, em concurso formal, o crime de violação de domicílio, conforme o disposto no artigo 150, CP. Isso além de poder haver qualificadora, acaso o fato se dê em horário noturno, em lugar ermo, ou com emprego de violência ou arma ou em concurso de duas ou mais pessoas (inteligência do artigo 150, § 1º. , CP). Nesses casos, havendo violência ou emprego de arma, também se pode cogitar de concurso material com porte ilegal de arma (restrita ou permitida conforme o caso – artigos 14 ou 16 da Lei 10.826/03 ou mesmo branca – artigo 19, LCP) e crime de lesões corporais ou contravenção de Vias de Fato (artigo 21, LCP), conforme determinado pelo preceito secundário do próprio § 1º., do artigo 150, CP. É claro que se está considerando a violência e/ou o emprego de arma como crimes – meio para a prática da violação de domicílio, nos termos do dispositivo em destaque. [67]

 

 

6-VEDAÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA

 

            O artigo 12 – C, § 2º., da Lei Maria da Penha, com a nova redação dada pela Lei 13.827/19 impede a concessão de liberdade provisória (com ou sem fiança) sempre que houver risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência.

            Esse dispositivo tem sido visto por alguns como uma espúria reiteração legislativa inconstitucional da chamada “Prisão Preventiva Obrigatória”. Haveria, sem necessidade de motivação plausível, o decreto imediato de Prisão Preventiva, o que certamente viola o Princípio Constitucional da Presunção de Inocência ou do Estado de Inocência. [68]

            Entende-se diversamente. Na verdade, o que se vislumbra no § 2º. do artigo 12 – C, da Lei 11.340/06 é a mera reiteração de uma hipótese natural de decretação de Prisão Preventiva e inafiançabilidade.

            Ora, se há no caso concreto, de forma fundamentada, efetivo “risco à integridade física da ofendida”, isso somente pode significar que se obteve dados objetivos de que o agressor tenciona voltar a praticar atos de violência, quiçá em progressão criminosa, como são exemplos os muitos e muitos casos de simples ameaça ou lesão leve inicial, os quais, com o agressor em liberdade, acabam resultando em Feminicídios. Doutra banda, a mesma razão existirá no caso de risco à “efetividade da medida protetiva de urgência”. Isso somente pode significar que a liberdade provisória não será concedida nos casos em que se anteveja ser insuficiente o mero decreto da ordem protetiva, mormente nas prisões em flagrante em que o infrator descumpre descaradamente a medida anteriormente imposta pelo Juiz ou pela Polícia. Ora, é claro e evidente que há risco concreto para a mulher e dano real à efetividade da medida. Nesse diapasão, verifica-se que não é o dispositivo em si do artigo 12 – C, § 2º., da Lei Maria da Penha que é inconstitucional, mas sim, eventualmente, sua aplicação indevida, sem a necessária fundamentação objetiva, calcada em fatos demonstrativos da periculosidade do agente no caso concreto.

            O risco à integridade física da ofendida certamente satisfará a necessidade de encarceramento para “garantia da ordem pública” , quando não por necessidade de assegurar a devida “instrução criminal”, se a vítima passa a ser intimidada pelo agressor. Sabe-se que a palavra da vítima, em grande parte dos casos, é extremamente importante para a produção da prova e uma vítima intimidada pode prejudicar o andamento justo do processo ou da investigação criminal (inteligência do artigo 312, CPP).

            Também é preciso ter em conta que o Código de Processo Penal, no artigo 313, III, já prevê o decreto de preventiva com o fito de “garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, nos casos de “violência doméstica e familiar”. Razão assiste a Cavalcante quando afirma que “o novo § 2º. do art. 12 – C da Lei 11.340/2006 não pode ser lido isoladamente, devendo ser interpretado em conjunto com as regras do Código de Processo Penal a respeito da prisão preventiva e da liberdade provisória”, apontando para o fato, por exemplo, de que, no caso de prática isolada de Contravenção Penal (v.g. Vias de fato – artigo 21, LCP), não será possível negar a liberdade provisória com ou sem fiança. O autor apresenta em sustento julgado do STJ (STJ – 6ª. Turma. HC 437535-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. Acd. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 26.06.2018). Outro elemento ponderador explicitado pelo autor em destaque é a necessária interpretação sistemática do artigo 12 – C, § 2º., da Lei Maria da Penha com o artigo 310, II, CPP, devendo-se verificar se não é cabível outra medida mais amena que igualmente garanta a segurança da ofendida e a efetividade da ordem protetiva. [69]  Acrescente-se que também deverá ser o dispositivo em comento interpretado sistematicamente com as regras gerais das cautelares processuais penais, especificamente com o disposto no artigo 282, I, II e §§ 4º. e 6º., CPP. Trata-se de levar em conta a proporcionalidade da cautelar mais restritiva privativa de liberdade, sempre procedendo à devida fundamentação (artigo 93 , IX, CF).

            Portanto, o § 2º., do artigo 12 – C, da Lei 11.340/06 não deve ser interpretado como um imperativo absoluto, mas como uma norma inserida em toda uma sistemática das cautelares processuais penais reguladas pelo ordenamento jurídico ordinário e por regras e princípios constitucionais correlatos. Essa característica do dispositivo sob comento, aliás, não é apanágio exclusivo seu e muito menos alguma novidade hermenêutica. Toda norma somente pode ser compreendida corretamente em sua inserção sistemática no conjunto do ordenamento jurídico que compõe. A lição de Maximiliano é antiga e muito conhecida:

“Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. (…). Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio”. [70]

                Vale ainda enfatizar o ensinamento de Santi Romano, segundo o qual “o Direito não se interpreta em tiras, aos pedaços”. [71]

            É também preciso notar que ao se proceder a uma análise comparativa do novo caso de vedação de liberdade provisória em circunstâncias de violência doméstica e familiar contra a mulher com o já disposto no artigo 313, III, CPP, ocorre uma clara possibilidade de antecipação do decreto de preventiva. Em geral, embora não haja absoluto consenso, se entende que no caso do artigo 313, III, CPP, há necessidade de que o agente efetivamente tenha descumprido a medida protetiva para poder decretar sua preventiva. [72] Já com o advento do § 2º., do artigo 12- C da Lei 11.340/06 o “risco” à integridade física da vítima ou à efetividade da medida, já é suficiente, desde que devidamente fundamentado, para vedar a liberdade provisória e, portanto, para justificar o decreto preventivo. [73]

            De acordo com o ponderado acima não seria cabível a vedação da liberdade provisória de forma não fundamentada, tão somente por aplicação automática do artigo 12 – C, § 2º., da Lei 11.340/06. Necessária sua interpretação sistemática com as regas das cautelares em geral e da preventiva no CPP, bem como com os Princípios e Regras constitucionais acerca da matéria. Por isso não é cabível a vedação em caso de Contravenções Penais, vez que o CPP sempre se refere a crimes e nunca a contravenções para permitir a prisão provisória. Entretanto, quanto à limitação da prisão provisória aos casos de crimes dolosos punidos com pena máxima abstrata superior a 4 anos, não há aplicação nos casos de violência doméstica e familiar. Ocorre que nem o artigo 313, III, CPP, embora mencione também somente “crimes”, nem o artigo 12 – C, § 2º., da Lei 11.340/06, fazem menção a essa limitação do “quantum” de pena “in abstrato”. Assim sendo, o decreto preventivo para assegurar a integridade da vítima e a efetividade das medidas protetivas pode muito bem ocorrer em infrações cuja pena mínima não seja maior que 4 anos, tais como ameaças, violações de domicílio, lesões corporais leves etc. [74] Não há também falar em incidência da Lei 9099/95 nesses casos, pois que, em se tratando de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se aplicam as regras das chamadas “infrações penais de menor potencial” (artigo 41 da Lei 11.340/06), o que, aliás, seria um contrassenso, na medida em que a Lei Maria da Penha, em seu artigo 6º., estabelece, em cumprimento a tratados internacionais firmados pelo Brasil, que a violência doméstica e familiar contra a mulher “constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. Como poderia uma forma de violação dos direitos humanos ser considerada como de menor potencial, mormente diante do disposto no artigo 4º., II, CF?

            Diante do quadro acima delineado, é visível que não se deverá arbitrar fiança ao infrator quando houver risco à integridade física da ofendida ou à eficácia das medidas protetivas. Chega-se a essa conclusão por interpretação conjunta do disposto no artigo 12 – C, § 2º. da Lei 11.340/06 e do artigo 324, IV, CPP. O Código de Processo Penal não admite fiança quando se trata de caso de Prisão Preventiva. Esse comando se refere igualmente ao Juiz de Direito e ao Delegado de Polícia.

            Já se pensou que a vedação de fiança prevista no artigo 324, IV, CPP se dirigia somente ao magistrado e não à Autoridade Policial, pois que se trataria de uma espécie de decretação indireta da preventiva, não pelo Juiz, mas pela Autoridade Policial, o que afetaria a jurisdicionalidade dessa providência. Entretanto, parece que o melhor entendimento, inclusive após o advento da Lei 12.403/11 (que reconfigurou o tratamento das cautelares processuais penais) é que a regra legal também se aplica ao Delegado de Polícia.

                A limitação do comando sobredito ao magistrado é realmente uma perspectiva a ser considerada no deslinde dessa intrincada questão. Mas, amadurecendo as ideias e considerando o tratamento atual dos temas da Liberdade Provisória, da Prisão em Flagrante e da Prisão Preventiva, altera-se o entendimento para acatar a possibilidade de negativa de fiança pela Autoridade Policial, devidamente fundamentada no fato de estarem presentes os motivos da Prisão preventiva. Ocorre que mais que nunca a Prisão em Flagrante demonstra sua peculiar cautelaridade ou pré – cautelaridade. Ela tem duração efêmera e serve para conter o ímpeto criminoso, impondo a ordem, o cumprimento da lei e a coleta de provas e indícios num primeiro momento, bem como, e aí está o ponto fulcral, mantendo o indiciado à disposição do juízo para a tomada das medidas mais adequadas ao caso nos termos do artigo 310, CPP. Considerando isso e ainda mais o fato de que deverá agora a Autoridade Policial representar pela conversão do flagrante em preventiva desde logo quando entender essa providência como necessária (artigo 310, II, CPP), algumas conclusões são inevitáveis:

            -Em primeiro lugar seria ilógico e até contraditório que a Autoridade Policial representasse pela preventiva e ao mesmo tempo colocasse o indiciado em liberdade mediante recolhimento de fiança. Como já dito, os institutos da fiança e da Prisão Preventiva são antagônicos, não são compatíveis e, assim, não podem coexistir. 

            -Além disso, se a Autoridade Policial antevê os motivos para o decreto extremo, há percepção de que o juízo poderá optar pela conversão do flagrante em preventiva nos termos do artigo 310, II, CPP, de modo que o arbitramento de fiança pela Autoridade Policial e soltura o preso estaria afastando a decisão de quem de direito, ou seja, do Juiz. Ao contrário de estar decretando uma preventiva de forma reflexa, o Delegado de Polícia, apenas estaria dando a devida amplitude à pré – cautelaridade do flagrante, mantendo o preso à disposição do juízo para que este delibere sobre a melhor solução para o caso. Atualmente, o novo tratamento da matéria parece aclarar o fato de que quando a Autoridade Policial nega a fiança com base nos motivos da preventiva, não está decretando essa medida de forma reflexa, mas apenas mantendo, dentro da precariedade e efemeridade que lhe é peculiar, a Prisão em Flagrante, como medida pré – cautelar, a fim de justamente assegurar ao magistrado a deliberação final sobre a melhor medida a ser adotada. Ao reverso, se soltasse o preso, mesmo em havendo os fundamentos da preventiva e assim entendendo a Autoridade Policial, estaria esta privando o magistrado da deliberação sobre a questão ao menos com o detido à disposição, de forma a gerar um inconveniente que se constituiria em ter de novamente procurar e prender o infrator por causa do futuro decreto preventivo e cassação da fiança.

            Diante do exposto, embora o tema certamente gere controvérsia, parece que a melhor solução é a de que o Delegado de Polícia, vislumbrando motivos para a preventiva, deixe de arbitrar fiança, fazendo a devida fundamentação e necessariamente representando pela conversão do flagrante em preventiva. Caberá então ao juízo a decisão final sobre o caso concreto. [75]

            Cabe destacar que é preciso manter a visão sistemática da matéria, muito embora isso venha se tornando extremamente dificultoso, considerando a inflação legislativa marcada pelo intento de ampliar sempre as intervenções estatais, o que acaba resultando num emaranhado de normas a que o jurista norte – americano, Gilmore, denominou de “orgia de leis”. [76] É, porém, imprescindível esse trabalho cuidadoso e sistemático, com o fito de evitar outra “orgia”, talvez ainda mais perniciosa, que é aquela de uma “criatividade judiciária incontida”, a qual não tem escapado às criticas de autores como Horowitz em relação aos Estados Unidos [77] e que pode muito bem aplicar-se às circunstâncias brasileiras, “mutatis mutandis”.

            É preciso movimentar-se, portanto, com extrema cautela nessa via escorregadia de normatividade e tentar harmonizar o ordenamento jurídico para que haja segurança nos procedimentos e que realmente mereça esse nome de “ordenamento” e não de “confusão” jurídica geradora de grande insegurança que a ninguém interessa.

 

7-A CRIAÇÃO LEGAL DE UM BANCO DE DADOS SOBRE MEDIDAS PROTETIVAS

 

            Em boa hora a Lei 13.827/19 acresce a Lei 11.340/06 do artigo 38 –A, no qual determina que o Juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência em um banco de dados gerenciado pelo CNJ, com acesso ao Ministério Público, Defensoria Pública e órgãos de segurança pública e de assistência social. O objetivo é a melhor fiscalização e efetividade das medidas protetivas.

            Realmente, uma das dificuldades em casos de medidas protetivas, especialmente quando de seu suposto descumprimento pelo agressor, tem sido saber, principalmente nos plantões policiais, se a medida foi realmente concedida pelo judiciário, se está em vigor e se o seu destinatário já foi devidamente intimado. Certamente esse banco de dados deverá conter essas informações atualizadas facilitando sobremaneira as pesquisas e comprovações documentais, assim como, consequentemente, as tomadas de providências legalmente viáveis para assegurar o cumprimento das medidas e reprimir a recalcitrância de agressores.

 

 

 

8-ALTERAÇÃO PONTUAL NO CONTEÚDO DO PEDIDO DE MEDIDAS PROTETIVAS DA OFENDIDA PROMOVIDA PELA LEI 13.836/19

 

            O artigo 12, § 1º., da Lei 11.340/06 determina o conteúdo das informações que deve conter o pedido de medidas protetivas formulado pela ofendida e reduzido a termo pelo Delegado de Polícia.

            O conteúdo mínimo deve esclarecer a qualificação da ofendida e do agressor, o nome e idade dos eventuais dependentes e a descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida (artigo 12, § 1º., I a III, da Lei 11.340/06).

            A Lei 13.836/19 acrescentou um inciso IV no artigo 12, § 1º., da Lei Maria da Penha para determinar que também conste a Autoridade Policial a “informação sobre a condição de a ofendida ser pessoa com deficiência e se da violência sofrida resultou deficiência ou agravamento de deficiência preexistente”.

            É claro que tais informações podem ser relevantes para aferir o grau de vulnerabilidade da mulher vitimizada, bem como para devida mensura da agressividade do infrator. Contudo, salvo em casos patentes ou documentados, não terá condições a Autoridade Policial de afirmar ou não a existência de deficiência, eis que isso é matéria técnica da área médica clínica e/ou psiquiátrica. Ainda mais difícil será para a Autoridade Policial aferir se houve, como resultante da violência empregada, criação de deficiência na vítima ou agravamento daquela preexistente. Somente o exame de corpo de delito por Perito habilitado (Médico Legista), terá o condão de prestar essa informação de maneira segura e eficaz. Por vezes, nem mesmo o Perito Médico Legista poderá aferir a causação de deficiência ou seu agravamento num primeiro exame, necessitando de exames complementares.

            Parece que o legislador teve boas intenções com relação à maior proteção das mulheres ainda mais vulneráveis à circunstância de violência doméstica e familiar, porém pecou por não levar em conta o mundo dos fatos e a inviabilidade, em regra, para que a Autoridade Policial possa prestar tais informações de forma minimamente segura. Na verdade, o legislador criou uma exigência que dificilmente será cumprida na prática e não se poderá culpabilizar ninguém, afinal “ad impossiblia nem tenetur”.

 

9-CONCLUSÃO

 

            No decorrer deste trabalho foram analisadas com pormenores as novidades trazidas pela Lei 13.827/19, ampliando o rol de legitimados à concessão de medida protetiva de afastamento do agressor, excepcionando-se a reserva absoluta de jurisdição, que se torna agora relativa, porque a Polícia também pode, em locais que não são sede de comarca, conferir as medidas.

            Foram estudados os problemas constitucionais, o alcance das alterações, os desdobramentos da concessão da medida pela Polícia e pelo Judiciário e a utilidade dessa alteração legal para a proteção mais efetiva da mulher vitimizada.

            Por fim foram comentadas as providências da criação de um banco de dados do CNJ sobre as medidas protetivas para consulta pelos órgãos interessados, bem como a alteração feita pela Lei 13.836/19 a respeito do conteúdo do pedido de medidas protetivas a ser tomado a termo pela Autoridade policial, devendo-se, doravante, consignar, sempre que possível, a informação sobre deficiência da mulher ou causação de deficiência ou agravamento desta em virtude da agressão sofrida.

            As Leis 13.827/19 e 13.836/19 são esforços em geral positivos no longo caminho a percorrer para uma concreta proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar no Brasil, logrando-se preservar, ao máximo possível, sua integridade física e psíquica e, especialmente, sua vida.

 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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