Ética médica: segredo médico, Bioética e Direito

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07/09/2019 às 14:06

Resumo:


  • O segredo médico é um dever ético e legal dos profissionais de saúde, essencial para a confiança na relação médico-paciente e protegido por princípios bioéticos como autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.

  • Quebras do sigilo médico são permitidas em circunstâncias específicas, como por dever legal, consentimento do paciente ou para proteger terceiros de danos significativos, mas geralmente devem ser evitadas para manter a integridade da prática médica.

  • A responsabilidade civil do médico surge quando há ato médico que causa dano ao paciente devido à negligência, imperícia ou imprudência, sendo necessária a comprovação de culpa para a reparação dos danos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Quebra de Sigilo Médico na Mídia

Recentemente fora divulgado na mídia o caso dos médicos de um conceituado hospital de São Paulo, Capital, que, de forma impiedosa e desumana quebraram não o apenas o juramento hipocrático, mas o sigilo médico sobre o estado de saúde da esposa do ex-presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, mediante comentários e postagens de diagnósticos e radiografias nas redes sociais. Não por acaso, Mauro Aranha, psiquiatra e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, comentou a questão32:

“Diante de um fato gravíssimo como os noticiados recentemente, uma investigação prudente e exaustiva torna-se primordial. É preciso, contudo, também entender que acontecimentos dessa magnitude merecem mais do que uma sentença punitiva. (ARANHA, 2017).”

Sobre a quebra do sigilo no presente caso, o Promotor de Justiça aposentado e pós-doutor em ciências da saúde, Eudes Quintino de Oliveira Junior, declarou:

“Assim, na realidade, o paciente passa a ser o proprietário dos dados constantes no prontuário e sua guarda fica sob a responsabilidade do médico ou da instituição de saúde, não podendo repassá-los para terceiros, salvo se por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente ou representante legal. A finalidade é exclusivamente para preservar a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano.”

O núcleo do tipo do Código de Deontologia Médica vem sintetizado no verbo revelar, dando a entender que basta a divulgação, a propagação, por qualquer meio que seja idôneo para levar ao conhecimento de terceiros um fato sigiloso, de conhecimento restrito às pessoas encarregadas da prestação do serviço de saúde. O fato de ter sido revelado por meio de uma rede particular não descaracteriza a potencialidade de atingir um imensurável universo de pessoas.

Já no enfoque do Código Penal, penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente acarretando não só a inconveniente persecução policial, que somente poderá ser iniciada mediante representação da vítima ou de seu representante legal, por se tratar de ação penal pública condicionada. (MIGALHAS, 2017).”

Para Regina Parizi, atual Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, “ao fazer comentário depreciativo, desonroso, cruel ou desumano sobre um paciente, o médico está, sim, violando a ética médica”. Além disso, assevera Parisi:

“Uma coisa é você se manifestar em um grupo técnico, que se reúne, para discutir um caso específico. Isso ocorre no mundo inteiro, inclusive aqui. São reuniões técnicas, marcadas, sem nominar pacientes, têm um protocolo. Adotam-se todos os cuidados para não vazar informações, preservando o sigilo do paciente. O fato de o grupo desses médicos ser fechado não minimiza o que fizeram.” (VIAMONDO, 2017).

Vejamos outra situação que pode ocorrer, a qual é bastante corriqueira nos dias de hoje. É possível que um médico se depare, ao ler um jornal de grande circulação, com a notícia do diagnóstico do seu paciente, pessoa pública de grande notoriedade. Ao chegar ao hospital, inúmeros jornalistas perguntam-lhe se confirma o diagnóstico, conforme o noticiário. O que fazer?

A jurista Maria Helena Diniz discorre:

“O dever de sigilo médico não cessa mesmo que o fato seja de conhecimento público ou que o paciente tenha falecido. O profissional da saúde não deverá nem mesmo confirmar uma informação sobre dados clínicos de seu paciente, que já seja de domínio público. A quebra do sigilo profissional após a morte do paciente configuraria crime de violação do respeito aos mortos. (2001, p. 523).”

Cumpre asseverar que, o sigilo não se resguarda de forma absoluta, nem pertence ao médico que é apenas um depositário. A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 91.218-SP, já se posicionou acerca do tema:

“Segredo profissional. A obrigatoriedade do sigilo profissional do médico não tem caráter absoluto. A matéria, pela sua delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das particularidades de cada caso. A revelação do segredo médico em caso de investigação de possível abortamento criminoso faz-se necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente. Na espécie o hospital pôs a ficha clinica à disposição de perito médico, que "não estará preso ao segredo profissional, devendo, entretanto, guardar sigilo pericial" (art. 87 do Código de Ética Médica). Por que se exigir a requisição da ficha clínica? Nas circunstâncias do caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o segredo profissional. Outrossim, a concessão do "writ", anulando o ato da autoridade coatora, não impede o prosseguimento regular da apuração da responsabilidade criminal de quem se achar em culpa. Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência jurisprudencial, e provido. Decisão tomada por maioria de votos. (STF, 2017).”

Concluimos que, na atualidade, o sigilo médico não pode ser visto de forma absoluta como nos tempos remotos e históricos aos quais se pregava o segredo como algo absoluto e com caráter de total inviolabilidade e sacralidade. Hoje ele deve ser relativo, e modernamente já se fala no conceito relativista da guarda do segredo, ou melhor, em sigilo médico relativo por conta das experiências atuais da vida moderna.

Frise-se que, em caso de dúvida do médico no tocante a revelação de um segredo ou a quebra do mesmo, convém pedir um parecer através da Resolução do CFM nº 1605/200033, a fim de obter o procedimento correto a ser aplicado ao caso concreto em questão.


6. Responsabilidade Civil do Médico

No capítulo III do Código de Ética Médica, estão elencados os deveres dos médicos e cabe comentar sobre a sua responsabilidade profissional. Podemos conceituar a responsabilidade civil do médico como um ato praticado pelo médico no exercício da profissão causando lesão no paciente em razão da negligência, imperícia e imprudência.

Hoje, a literatura médica tem dividido o conceito em: a) ato do médico: causado pelo próprio médico; e b) ato médico ou ato clínico: praticado por qualquer profissional da área da saúde ou ato paramédico (VIANA, 2017). Assim, a responsabilidade será subjetiva, ou seja depende de culpa a ser provada, conforme artigo 1º do Código de Ética Médica e artigo 14,§ 4º do Código de Defesa do Consumidor34.

No Direito da Saúde o ônus da prova é do paciente, vale dizer, provar a negligência, imperícia e a imprudência, pois o dano médico será comprovado através de perícia. E esta deve ser exigida, na prática, na Petição Inicial e nas manisfestações reiteradamente seguintes, já que falar em erro médico é saber que o mesmo é matéria de direito.

Nas palavras de CABETTE (2014, p. 31 e 32):

“A culpa na conduta médica pode ocorrer em três momentos distintos: “na formulação do diagnóstico, na escolha da terapêutica ou na execução do tratamento”. Em qualquer caso será necessário comprovar a atuação do médico com culpa em alguma de suas modalidades, o dano ocasionado ao paciente e a relação de causalidade entre o dano e a conduta culposa do profissional.”

Em assim sendo, não poderá haver a quebra dos 3 requisitos básicos para comprovação do dano moral, quais sejam: dano, nexo e causa (ação e omissão) e o paciente quando toma conhecimento terá 5 anos para ingressar com uma ação indenizatória de dano moral por erro do médico. Conforme ensina Miguel Kfouri Neto na obra Responsabilidade Civil do Médico 35,

“No Brasil, quanto à responsabilidade médica, o elemento de referência é a análise da culpa individual do médico, com o ônus da prova a cargo do ofendido. Algumas vezes, entretanto, pode-se presumir a culpa, como no caso de cirurgia plásticas estéticas propriamente ditas – cosmetológicas ou de embelezamento – exames de laboratório e check-ups. Presume-se, também, a culpa de hospitais e clínicas, quanto aos de seus prepostos. Entretanto, mesmo essa relação de subordinação, quanto à atividade pessoal do médico, por vezes é relegada a plano secundário, na jurisprudência. Quanto aos bancos de sangue e de sêmen, a culpa é objetiva.”

Intuímos que a jurisprudência elegeu o posicionamento de que entre o médico e o paciente cria-se um contrato, sendo assim a responsabilidade médica é de natureza contratual, entretanto, não pode presumir a culpa, pois o médico não pode prometer a cura, mas tão somente agir de acordo com as regras e procedimentos que a profissão exige.36

Na prática, a condenação e a reparação de danos na área médica não é tão simples e doutrinadores explanam essa informação, segundo COUTINHO;

Se não são muito frequentes os processos movidos contra médicos, no Brasil, se deve a dois motivos: *somente nos últimos tempos a população está deixando de ver no médico a figura de um semideus diferente dos outros mortais; *as dificuldades para o reconhecimento do erro médico e sua comprovação. Não me refiro, aqui, a eventuais dificuldades opostas por outros médicos, para proteger o colega, tão condenáveis quanto as de policial protegendo policial, ou quaisquer outras categorias profissionais. Refiro-me a dificuldades inerentes à própria complexidade do exercício da Medicina.”

Lembramos que, casos de erro médico são de uma complexidade enorme para apuração, visto que alguns processos acabam em prateleiras ou na absolvição além do que o próprio Judiciário não está tão habituado a lidar com casos médicos, a começar pela linguagem por demais técnica e as perícias que se tornam cada vez mais complexas37. Outro fator negativo é que em qualquer classe de profissão vislumbramos o corporativismo, porém nunca tão exarcebado como na área médica. Não estamos aqui para fazer críticas, apenas a demonstrar uma infeliz realidade pelos hospitais, tanto é que Miguel Kfouri Neto38 também explanou: “No Brasil, para que o ressarcimento do dano oriundo da culpa médica se torne mais frequente, é mister que nossos juízes e tribunais amenizem as exigências para a aferição da culpa – e verificação do nexo de causalidade.” O mesmo autor afirma e exemplifica sobre o excesso de rigor dos Tribunais ao analisar a Apelação do TJSP, onde a sentença de 1º grau julgou procedente caso em que uma mulher ao se submeter a uma cirurgia de varizes portanto natureza estética e obrigação de resultado, não de meio, ficou com o pé caído, por conta do corte de um nervo, entretanto a parte contrária recorreu (médico) e obteve a procedência do recurso, por não restar configurada a culpa, embora tenha ocorrido o dano e o nexo de causalidade. Note-se que, o vote vencido consignou a clara imperícia do médico renomado. (RT 545/73)39. Nesse caso foi quebrado o princípio da confiança.

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Por outro lado, há quem defenda o uso da Teoria da Imputação Objetiva ou Teoria da Adequação Social ou da Conduta40 ou seja, por ela, o médico não pode ser apenado pela sua profissão sofrer riscos naturais, pois inviabilizaria o exercício da medicina, causando uma medicina defensiva41 alicerçada em altos seguros para se poder exercê-la. A solução na prática seria sempre se fazer um sopesamento42 tanto das condições anteriores, como das posteriores do paciente, análise dos procedimentos médicos e os danos causados, a fim de configurar a culpa.


7. Conclusão

O profissional médico, muitas vezes, se depara com situações de difícil solução, que envolvem a divulgação ou não de um determinado segredo que tomou conhecimento em decorrência da profissão, vendo-se diante de um dilema ético.

Podemos concluir que, havendo a quebra do segredo médico, ocorre o rompimento do Juramento de Hipócrates, do Código de Ética Médica e ainda do direito do médico de ficar calado diante do Juiz. Por outro lado, os órgãos profissionais, as universidades e a sociedade têm sua parcela de culpa, afinal devem preparar os profissionais a fim de que consigam, diante dessas situações, serem imparciais e discretos independentemente das escolhas políticas, classe econômica, ser o paciente pessoa pública ou não. Precisam carregar a todo tempo, os princípios do Código de Ética Médica e da Bioética e lembrarem acima de tudo, do juramento realizado.


“Penetrando no interior das famílias, meus olhos serão cegos e minha língua calará os segredos que me forem confiados

Hipócrates, 460 a.C.


Referências

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Sobre a autora
Roberta Martins Pires

Pós-Graduada em Direito Civil, em Processo Civil, em Direito Médico pela Faculdade Legale – São Paulo. Pós-Graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Advogada em São Paulo. Alteração de Nome em geral

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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