O desacerto recente do STF e STJ sobre o tema de prescrição

acórdão confirmatório (não) interrompe prescrição?!

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O presente artigo visa discutir a natureza jurídica do acordão confirmatório de decisão penal condenatória, trazendo à tona a problemática da interrupção, ou não, da prescrição nesses casos.

1. Introdução

O Direito passa por uma crise existencial. Também o direito penal, que padece realmente de concepções ligadas à legitimação da punição, especialmente quando a tutela social assume a razão de ser do sistema punitivo. Direitos humanos de caráter estritamente fundamentais são massacrados pelo expansionismo penal. Dentro da perspectiva desse trabalho, uma frase é deveras oportuna: “tudo na vida tem um começo, um meio e um fim”. Trata-se de premissa regulatória do ser.

Essa crise existencial foi bem relacionada por Luís Roberto Barroso, no artigo jurídico denominado “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)”, porque “a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes​ e a insegurança é a característica da nossa era​.”[1]

O mundo não exala poesias. A mídia massacra noticiando catástrofes. Em termos, e infelizmente, deve o Direito ocupar-se dessas mazelas. Como os versos do poeta inglês Alexander Pope: “A natureza e as leis da natureza permaneciam escondidas na noite, Deus disse, Faça-se Newton, e tudo ficou claro”[2]; o Direito, diante desses desvios sociais, disse: “faça-se o direito penal, e tudo continuou igual”. Daí a razão para que parte (mundial) da doutrina preconize o abolicionismo penal, tema que não será objeto de discussão.

Em regra, o delito não é tolerado. A incursão em torno da insignificância do fato típico, que afasta a característica indesejável da infração penal, tem incidência perfeita no sentido analítico do crime. Não ontologicamente, considerada a perspectiva aprisionada no intelecto de cada ser, que por desdobramento do princípio democrático é o responsável direto de cada conduta definida como delito.[3]

É incorreta a afirmação de que cabe ao direito penal proporcionar a paz social, em perspectiva da defesa social. Em rigor, o direito penal é, na moderna situação de conformação constitucional das liberdades públicas, a última razão de ser, o campo último de tutela concreta a bens jurídicos, cujo acionamento somente deve se dar subsidiariamente, nos casos de lesão efetiva, formal e materialmente, ao objeto de proteção da norma penal.[4]

A propósito, a primeira quadra desse século vem informada pelas luzes de grandes pensadores penais, como o ilustre Professor Catedrático da Universidade de Buenos Aires, Eugenio Raúl Zaffaroni, para quem o direito penal, ramo drástico de punição, deve guiar-se obrigativamente pelo “Garantismo Penal” e pelo “Direito Penal Mínimo”; em rigor, pelo direito penal tutela-se a segurança jurídica[5].

Esta pletora de razões assentadas na linha argumentativa deduzida já atrai, de per se, as características da subsidiariedade e da fragmentariedade, inafastáveis à correta interpretação e aplicação do direito penal. A primeira estabelece que o direito penal – somente – seja invocado quando os demais ramos do controle social se mostrarem absolutamente insuficientes. A segunda equivale estabelece que o direito penal só deva cuidar das lesões ou ameaças de lesões qualificadas como graves.

Poder-se-ia questionar a razão destas afirmações, o que seria aceitável. Por meio delas busca-se sintetizar o que há de nuclear na ideia: a sensibilidade da Constituição da República com o direito penal é manifesta. Diante da natureza de documento axiologicamente aberto, a lei maior, além de reconhecer textualmente vários direitos e garantias humanas, permite que sejam incorporados outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte. Por isso é que o direito penal é reflexo das ordens emanadas da lei maior, sobretudo com o advento do neoconstitucionalismo, que colocou a Constituição em posição de destaque no ordenamento jurídico.

Todo segmento jurídico reclama análise constitucional, sem o Direito torna-se incompatível com os postulados inerentes ao Estado Constitucional e Democrático. Ao se investigar a aplicação de determinado tipo de injusto penal (subsunção), deve-se, obrigatoriamente, interpretá-lo; e essa tarefa há de ser feita sempre e em todo caso à luz da Constituição da República, em evidente constitucionalização dos demais “ramos” do Direito interno, os quais devem estrita observância àquelas diretrizes constitucionais, de caráter cogente.

As pretensões marcadas de conteúdo jurídico não são eternas. Não se tem por razoável a eternização da possibilidade de cobrar uma dívida[6]; o desinteresse pelo não exercício, por si só, já é revelador da pacificação social, teoricamente o fim almejado quando deduzida a pretensão em uma petição ao Estado-Juiz – destaque-se que, aqui, ainda se está a falar de questões ligadas àqueles direitos marcados pela característica da disponibilidade. Diametralmente oposta é a situação vinculada à proteção da liberdade, bem jurídico de relevância extraordinária, cuja supressão ou mitigação somente pode se dar, por meio do direito penal, após um devido processo legal, no qual inexoravelmente devem ser respeitadas todas as garantias fundamentais inerentes ao indivíduo, as quais funcionam como verdadeiro escudo de proteção contra o arbítrio do poder punitivo estatal.

Isso assim deve ser, porquanto os bens jurídicos penais, sejam aqueles ligados propriamente ao objeto material, ou aquele ligado à pessoa humana que sofre o juízo de imputação penal pelo órgão da acusação oficial, necessariamente têm a estrutura marcada pela indisponibilidade, insuscetíveis de renúncia pelo titular. Tanto isso é verdade que como se sabe não se admite seja a confissão o fundamento único da condenação penal, conforme estabelece o art. 197 do CPP[7].

No mesmo sentido, a revelar a indisponibilidade do bem jurídico liberdade, não se pode nem mesmo cogitar da aplicação imediata da pena a uma pessoa que, em sede inquisitorial, confessa seus crimes a fim de se ver “livre” do processo penal, que, apenas por existir, em clássica lição de Carnelutti[8], já implica na imposição de uma “severa pena”. Em ambas as hipóteses, dado o caráter da indisponibilidade e irrenunciabilidade daqueles direitos grafados no “núcleo duro intangível”[9] da lei maior, há(veria) colisão com o processo penal democrático, acusatório por essência. Em outras palavras, o processo penal está assentado no princípio da necessidade, já que nulla poena et nulla culpa sine iudicio (não há delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo senão para determinar o delito e atuar a pena).

O direito penal tem na linguagem estrita o limite do exercício constitucional, portanto legítimo, da competência sancionatória do Estado. Os tipos penais devem conter com exatidão a descrição da conduta indesejada e a respectiva sanção penal pelo ingresso da pessoa humana nos termos da conduta tipificada. O regime jurídico-constitucional determina que a lei penal deva ser certa, inadmitindo dúvidas semânticas, porque o questionamento pode representar a tipificação equivocada de uma conduta humana, desencadeando incompreensível invasão na esfera privada, comportamental, da pessoa humana. Os chamados juízos delirantes de subsunção penal agridem severamente a própria base subjetiva da democracia constitucional, uma vez que o povo é o real detentor do Poder Sancionatório, a rigor do que consta do art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República.[10]

O regime de coerção penal (a sanção penal) é decisivo para a correta fixação do limite da litispendência do processo-crime ou do processo de execução. Noutros dizeres, o Estado-Juiz tem um tempo fixo para exercer regularmente o Direito de Punir (ius puniendi), porque, tecnicamente, ao lado do limite linguístico, encontra-se o Estado limitado também no plano temporal. O exercício da punição oficial não é eterno; em verdade deverá ser exercido em um determinado tempo, pré-fixado pela lei penal, a rigor o CP, em sua parte geral, aqui constando o gabarito oficial, atrelado, como já se disse, ao aspecto quantitativo da sanção penal correspondente.

A título de exemplo, cite-se o homicídio (CP, art. 121), ao qual, já em sua forma básica, é cominada a pena máxima em abstrato de vinte anos de reclusão. Para que possa, legitimamente, impor pena ao agente, terá o Estado, conforme o art. 109, I, do CP, o prazo de vinte anos, sob pena, então, de ocorrer o fenômeno da prescrição. Outro exemplo é injúria (CP, art. 140), que o diploma comina a pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. Se a tanto chegar o processo, a prescrição da pretensão penal ocorrerá em quatro anos (CP, art. 109, V).

Embora possa parecer óbvio, importante constatação é que o Direito Nacional veicula, de modo necessário, a prescrição à sanção penal correspondente ao tipo de injusto penal. Ou seja, a limitação temporal do direito de penar, que é a prescrição penal, é matematicamente calibrada pela sanção penal, número de anos de reclusão ou detenção.

Atendo-se às considerações inaugurais, por meio da metodologia de pesquisa bibliográfica, com análise pontual da jurisprudência pátria (leading cases), buscar-se-á, com a visão do processo penal como correto instrumento de efetivação de direitos e garantias fundamentais (instrumentalidade constitucional do processo penal)[11], discorrer sobre o fenômeno da prescrição penal e seus efeitos. Dividido em duas partes globais: na primeira, em subtítulos dogmaticamente distribuídos, as principais características do instituto, tais como histórico, natureza jurídica, conceitos e bases legitimantes.

Na segunda e última, demonstra-se o desacerto do recente posicionamento do STF que, de forma totalmente contrária aos escopos jurídico-criminais inerentes à noção própria de prescrição penal – como garantia do indivíduo a ter um processo de razoável duração –, passou a entender que acórdão confirmatório de sentença penal condenatória interrompe a o curso da prescrição penal (CP, art. 117, IV), ampliando ilegitimamente o marco temporal dado ao Estado para iniciar e concluir a persecução penal dentro das balizas constitucionais.

2. Prescrição penal: aspectos gerais

Nos subtópicos seguintes são traçadas as diretrizes do instituto da prescrição penal: principais linhas doutrinárias do histórico, conceito e natureza jurídica desse instituto democrático. Dessa forma, abordar-se-á a prescrição penal como um direito fundamental legítimo do cidadão, para chegar-se à conclusão de que sequer deveria existir crime imprescritível, como bem defende o penalista argentino Eugênio Raul Zaffaroni.[12]

2.1 Histórico da prescrição penal

A ciência jurídica contemporânea deve muito aos romanos. Do direito romano é que se tem a primeira ideia de prescrição.[13] A prescrição possui base etimológica na expressão latina praescriptio[14], significando escrever antes ou no começo. Naquela época a prescrição penal estava ligada ao perdão. Por possuir essa denotação, os romanos não atribuíam essa figura aos crimes de maior gravidade. Tem-se, portanto, notícia de que a prescrição teve seu marco aqui: com os romanos.

Leciona Cezar Roberto Bitencourt que a controvérsia em torno da prescrição é muito antiga. Os costumes e a cultura de cada povo ditavam os parâmetros para a aceitação da liberação de uma pessoa pelo simples decurso do tempo. O primeiro texto a cuidar do instituto foi a Lex Iulia de Adulteriis, de 18 a.C.[15]

O instituto da prescrição penal encorpou-se com o passar do tempo. Tem como marco contemporâneo a Revolução Francesa. O CP francês tratava da prescrição após o trânsito em julgado da sentença. Entre os séc. XVI-XVII, a prescrição penal alçou voos maiores, alcançando nações tradicionais, tais como a alemã e a italiana. No Brasil, somente a partir do CP-1890 é que se passou a adotar a prescrição da condenação (art. 72). A prescrição da ação penal foi adotada no CP-1830[16].

O cenário jurídico atual é propício ao fenômeno da prescrição penal. O instituto reveste-se de conteúdo amplamente aceito pela comunidade internacional. Há, contudo, locais em que a sorte ainda não lhe sorriu, a citar a legislação inglesa, que não prevê a “prescrição da condenação”, o que, no direito brasileiro, representa a prescrição da pretensão executiva.[17]

2.2 Conceito de prescrição penal

Sempre que se busca o conceito de determinado instituto jurídico, envidam-se esforços para encontrar um que exprima a ideia de forma clara e segura. Clara porque deve ser de fácil compreensão, sem se olvidar da profundidade científica. Segura, porque o conceito deve ser bastante para ser utilizado e (re)utilizado, sem perder a sua essência. Além disso, o conceito deve estar conforme a Constituição. A textura aberta dos valores constitucionais, em perspectiva axiologicamente valorada, é signo dessa verificação.

Ao abordar o instituto, Damásio de Jesus o conceitua como sendo a perda do poder-dever de punir do Estado pelo não exercício da pretensão punitiva ou da pretensão executória durante certo tempo.[18] O conceito é claro e seguro. Para além de um Poder-Dever, a prescrição penal é a garantia do cidadão perante o sistema punitivo oficial, nos planos: investigatório (Polícia Judiciária); persecutório (órgão do Ministério Público); e Estado-Juiz (aplicador e executor da sanção penal imposta).

No Estado Democrático e Constitucional de Direito, o ordenamento jurídico consagra instrumentos que introduzem o povo no governo. A preocupação é com a efetividade jurídica e com a dimensão material dos direitos humanos fundamentais. Atualmente, o maior problema não é a consagração dos direitos, mas sim que eles saiam do papel e possam entrar definidamente na vida das pessoas; possam ser aplicados concretamente, vale dizer. O enunciado normativo, o relato abstrato da lei, se não concretizado, não passa de lei no livro, praticamente imprestável.

Nessa ordem de ideias, a democracia deve ser vista (repensada) sob o ângulo substancial, assumindo a garantia de direitos fundamentais para todos, inclusive para as minorias, para que a Constituição seja aplicada diretamente aos conflitos sociais. Essa visão de Constituição pode ser chamada de essencialmente jurídica, pelo que o abandono da percepção de documento meramente político sem força positiva e negativa é medida imperativa. A institucionalização do Estado Democrático e Constitucional de Direito possibilitou a expansão da jurisdição constitucional, o mecanismo encarregado de assegurar a supremacia da Constituição, entregando-a ao órgão judiciário de cúpula (STF).

A prescrição penal qualifica-se como uma forma de limitação do direito de punir do Estado (limitação temporal). Essa especial garantia está inserida no catálogo dos direitos e garantias humanas estabelecidas no art. 5º, da CRFB. Nos incisos XLII e XLIV encontram-se os únicos tipos de imprescritibilidade: o racismo e a atuação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Outro ponto constitucional indicativo da garantia da prescrição penal é a impossibilidade da adoção de pena de caráter perpétuo, tal como disciplina o art. 5º, XLVII, “b”, da Constituição da República.[19]

O constituinte de 1987-8[20] não acrescentou em vão a palavra “caráter” no texto da Constituição. A colocação do referido vocábulo não é pouco, como pode ser tudo. Nas mais importantes passagens protecionais em relação ao direito repressivo, a Constituição utiliza referida expressão ou mesmo sinônimos que, em verdade, é a mesma coisa. Por mais que isso possa parecer despiciendo, a verdade é que isso se reveste de mensagem a todos, indistintamente.

Exemplificado: quando a Constituição ventila a regra da inocência (CRFB, art. 5º, LVII), o faz emprestando sinônimo de contextualização da palavra caráter. Utiliza-se a palavra considerado, eis que: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É a cláusula que estabelece o estado jurídico de inocência, que bem poderia estar assim redigida: é vedada, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, qualquer consideração cujo caráter represente pré-julgamento da culpabilidade. O conteúdo - semântico - da palavra caráter é de altíssimo grau.[21]

Ademais, há de se fixar que a Constituição da República, ao estabelecer que não haverá penas de caráter perpétuo, assentou um conceito aberto, de modo a dar um amplo suporte fático, capaz de conceder maior abrangência ao enunciado e, assim, afastar qualquer espécie de pena que, num juízo concreto, represente perpetuidade, ainda que abstratamente não se tenha.

O Estado Constitucional e Democrático de Direito, pautado na estrita legalidade e na máxima efetividade dos direitos e garantias humanas fundamentais, só permite a extração dessa hermenêutica. E os casos clássicos dessa noção de caráter, melhor dizendo, a carga ampliativa permitida no dispositivo transcrito, são evidentes e, certamente, de amplo conhecimento de todos, pelo que prescinde da incursão em nível de exemplos. Quer-se aduzir que aqui está o ponto fundante da ideia da prescrição penal. Ora, antes que surjam comentos no sentido diametralmente oposto do defendido, é imperativo dizer que a pena criminal representa a consequência do crime praticado. Vale dizer: só há pena se estiver provada a existência do crime.

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É bem verdade que haverá comentários apontando lógica nessa premissa. E pode até ser. E para a lógica a obediência. Se se pensar na linha dos comentos acima – lógica –, dever-se-á entender, por corolário, como vã a seguinte questão: se o dispositivo que veda a pena de caráter perpétuo, previsto na Constituição da República, não é ponto fundante da prescrição penal, então há que se admitir que a noção de crime nada tem a ver com a de pena. Ou pior, poderá haver pena sem cometimento de infração penal. Se ao Estado fosse franqueada a possibilidade (o poder-dever) de eternamente punir o cidadão pela prática de determinado fato delituoso, certamente seria a extinção do Estado Constitucional e Democrático de Direito. Em verdade, passar-se-ia a um Estado Policial de Direito, meramente aplicador de sanções penais, ao largo de legitimidade, de qualquer fundamento constitucional.

2.3 Natureza jurídica da prescrição penal

Prescrição penal não se confunde com a irmã civil. Lá os interesses são outros, bem mais singelos que os daqui. Dentre as abissais distinções uma salta aos olhos: na prescrição criminal o Estado perde o Direito apurar e punir determinada infração penal; vale dizer, a prescrição criminal atinge a tanto a perseguição quanto o próprio Direito. A situação revela-se diversa na prescrição civil, é que aqui se perde o direito de perseguir o direito, em outras palavras, perde-se o direito de ação, preservada a incolumidade do direito material em jogo, só podendo ser atingido pela figura jurídica da decadência.

Ditas as linhas acima, insta saber se a prescrição criminal é instituto de direito material ou de direito processual ou misto. A matéria não é pacífica no meio jurídico. Ressalta-se que prevalece a corrente que emprega a prescrição penal como um instituto genuinamente de direito penal, mas com inegáveis reflexos imediatos na processualística penal. Trata-se, como acima se avisou (v., supra) de um legítimo direito humano fundamental: direito de não ser processado, julgado ou executado após o decurso do tempo previsto para se extinguir a punibilidade. É um direito que se encorpa ao plexo jurídico do cidadão em razão da renúncia do estado em exercer seu poder-dever de punir.

Pois bem. A investigação em torno da natureza jurídica de determinado instituto resume-se na averiguação de que setor esse instituto se enquadra. Nesse particular, a lei é clara em alocar a prescrição criminal no âmbito das figuras extintivas de punibilidade, o que corrobora a percepção material do instituto. É que está prevista como tal no CP, no rol estabelecido em seu art. 107. Em rigor, prescrição penal é direito humano fundamental, sendo certo que decorre da cláusula vedadora da impossibilidade de vinculação da perpetuidade em matéria penal.[22]

Logo, a primeira ideia sobre a natureza jurídica do instituto da prescrição criminal é, inapelavelmente, a de direito humano individual e fundamental. Trata-se de premissa que dificilmente consegue-se afastar. Essa extração constitucional do instituto da prescrição determinou ao legislador infraconstitucional a adoção de medidas instrumentalizadoras e que garantissem a sua máxima efetividade. E assim o fez: CP, art. 107, IV, seguido pelas diretrizes constantes do art. 109-119 do mesmo diploma.

De mais a mais, a prescrição penal reveste-se de norma com caráter público, devendo obrigatoriamente ser declarada de ofício, pelo magistrado, a requerimento do Ministério Público ou do próprio interessado; daí que constitui questão preliminar. Operada a prescrição, o juiz não poderá enfrentar o mérito; deverá pronunciá-la, de plano, em qualquer fase do processo, nos termos do art. 61 do Código de Processo Penal.

2.4 Fundamentalidade política da prescrição penal e suas bases legitimantes

Andrei Zenkner Schidt, mencionado por Cezar Roberto Bitencourt, arrola os fundamentos que, politicamente, embasariam a legitimidade do instituto[23], dentre os quais se destacam que o decurso do tempo leva (i) ao esquecimento, por parte da sociedade, do cometimento da infração; (ii) à recuperação do agente – que não é mais aquele que cometeu o suposto crime; (iii) à deslegitimação do poder punitivo estatal que, com sua morosidade, perde o direito de impor a pena material, restando inapagável, no entanto, a pena processual, de submissão do cidadão ao processo penal (Carnelutti), imposta ao agente processado ilegitimamente por longos anos, sem o pronunciamento definitivo sobre a sua culpabilidade (ou não); e, por fim, (iv) ao enfraquecimento do suporte probatório necessário à prolação de uma sentença penal condenatória.

Quanto ao (i) esquecimento do fato, em tese criminoso, Giulio Battaglini preleciona que o próprio decurso do tempo faz cessar “a exigência de uma reação contra o delito, presumindo a lei que, se o tempo não cancela a memória dos acontecimentos humanos, pelo menos atenua ou a enfraquece”.[24] Dentro dessa perspectiva, aceitando-se que o alarma social é tanto mola propulsora como mantenedora da intervenção penal oficial, onde não mais se o verificar, e não sendo o crime reprimido, não terá o Estado legitimidade/interesse na pretensão punitiva.[25]

Ademais, forçoso reconhecer que (ii) o decurso de tempo, aliado à inércia estatal, leva à recuperação do agente. Assim se argumenta, na medida em que o decorrer dos anos, sem uma postura ativa e tempestiva do Estado na imposição da sanção criminal, acaba por deslegitimar os fundamentos próprios da pena, que, de um ponto de vista eclético, visa tanto a retribuição do mal causado quanto a evitação de que novos delitos aconteçam, bem como que o agente, por meio da pena, se ressocialize.

Nesse mesmo sentido, Magalhães Noronha esclarece, em reforço, que não se pode negar que, ao longo de grande lapso de tempo decorrido, sem que o agente haja praticado outra infração penal, está a indicar que ele foi capaz de alcançar, por si mesmo, o fim que a pena tinha em mira, que é a readaptação ou reajustamento social.[26]

Em que pese os positivistas não admitam que a periculosidade social possa desaparecer com o decurso do tempo, pois que, como afirmava Cesare Lombroso, o criminoso é um ser atávico, ou seja, é ele uma regressão ao homem primitivo ou selvagem; ele já nasce delinquente e, como tal, continuará agindo até morrer, razão não lhes assiste, justamente porque, tal como leciona Cezar Roberto Bitencourt, a prescrição resolve os anseios individuais e coletivos de repressão, seja pelo aspecto preventivo, seja pelo retributivo.[27]

Deveras, na atual envergadura dos direitos e garantias fundamentais do homem, não se pode conceber como legítima a situação de alguém que, por ter – em tese – cometido uma infração penal, fique sujeito, eternamente, ao império da discricionariedade estatal punitiva. Vale dizer, a premissa de que se existem prazos para serem fielmente cumpridos, a sua preterição gera ônus, o qual não pode ser sopesado contra o acusado, que é a parte hipossuficiente da relação processual penal.[28] Assim, (iii) diante desse quadro de inércia, perecerá o Estado de interesse social e de legitimidade política em submeter o agente da infração penal a um processo ou a uma determinada pena criminal.

Nesse contexto, não se pode perder de perspectiva que o decurso do tempo acaba, inexoravelmente, por (iv) levar ao enfraquecimento do suporte probatório necessário à prolação de uma sentença penal condenatória, uma vez que, com a demora estatal na instrução do feito, o arcabouço probatório, quando existente, torna-se cada vez menos seguro, desautorizando, assim, a imposição da punição criminal, que só tem lugar quando a culpa se forma para além da dúvida razoável, standard probatório que inadmite juízo de dúvida (beyond a reasonable doubt).[29]

3. Do (des)acerto no entendimento firmado pelo STF e endossado pelo STJ no tocante à possibilidade de interrupção do prazo prescricional pela publicação de acórdão penal confirmatório de condenação

Conforme trabalhado nos tópicos antecedentes, trata-se a prescrição não de mecanismo viabilizador da impunidade, de estorvo da marcha processual, com a aniquilação da celeridade e efetividade do processo, como alguns incautos chegam a sustentar. Cuida-se, isto sim, de garantia constitucional de dupla faceta, uma vez que constitui, por um lado, um direito fundamental da pessoa humana de ser julgada em tempo razoável (CRFB, art. 5º, LXXVIII), vedando-se a possiblidade, ad aeternum, da imposição de medidas segregativas, ao passo que, por outro, consubstancia um dever estatal de agir, a tempo (nos prazos legalmente positivados) e modo (com estrita observância ao devido processo legal), para que possa penar alguém.

Portanto, o não exercício do ius puniendi estatal conduz, inexoravelmente, à perda de tal direito-dever [de penar], de modo que retira do Estado a possibilidade jurídica de exercitar sua pretensão – punitiva ou executória –, numa verdadeira espécie de “punição”, ou deslegitimação da imposição da pena, em decorrência da (de)mora na persecutio criminis que, se permitida fosse, implicaria insofismável violação a diversos preceitos constitucionais, tais como: (i) a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB); (ii) a vedação de penas [ainda que processuais] de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b” CRFB); (iii) a razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB); (iv) devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB);  etc.

Nesse contexto, decorrido o lapso temporal grafado no art. 109, do CP, sem que tenha havido qualquer causa interruptiva do curso da prescrição, cuja previsão encontra-se inserta no art. 117, do mesmo diploma, ou ainda de causa suspensiva do transcurso prescricional, a exemplo do que ocorre no art. 366, do Código de Processo Penal, extingue-se o processo, sem resolução de mérito, nos moldes do art. 107, IV, do CP, devendo o magistrado declarar a extinção da punibilidade. 

Impõe-se consignar que, em razão do estado jurídico de inocência (art. 5º, LVII, CRFB), ainda que a decisão declaratória de extinção da punibilidade não tenha natureza jurídica eminentemente absolutória, já que não adentra o meritum causae, ela não pode produzir qualquer efeito condenatório, haja vista que, por inexistir a comprovação da culpa do processado, seu status pessoal permanece inalterado, em obediência à retrocitada clausula pétrea, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em que pese o art. 117, do CP[30], traga diversas causas que interrompem o fluxo do prazo prescricional, o presente estudo tem por escopo a análise, dogmática e teleológica, do inciso IV, do citado diploma normativo, o qual estipula como marco interruptivo da prescrição a publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis.

Destarte, atendo-se ao alcance normativo do dispositivo em comento, demonstrar-se-á a razão pela qual o entendimento adotado pelo STF, segundo o qual acordão condenatório – quando confirmatório de sentença penal condenatória – interrompe o curso do prazo prescricional, é absolutamente equivocado e antidemocrático, na medida em que elastece, ao arrepio da verdadeira finalidade do instituto da prescrição (que é a proteção do indivíduo contra processos infindáveis e morosos), dando azo ao arbítrio incontrolável do poder punitivo estatal, que acaba por se eternizar no tempo, ensejando, de forma reflexa, a vedada e inconstitucional imprescritibilidade generalizada.

A despeito de o STF e o STJ, em tempos outros, terem assentado o entendimento de que o acordão condenatório confirmatório de sentença penal condenatória não interrompia o curso da prescrição, em 2017, por meio do HC 138086[31], dando uma virada jurisprudencial, a Corte Suprema passou a decidir de modo diverso, o que foi reiterado em 2018 (Emb. Decl. no HC 138.088/RJ[32]) e 2019 (Ag.Reg. no RE com Agravo 1.188.699/ES[33]).

Em recentíssimo acórdão, para não reconhecer a prescrição, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Ag.Reg. no RE com Agravo 1.188.699/ES, fazendo interpretação rasa do instituto da prescrição, trouxe para o campo penal os danosos efeitos recursais imperantes no processo civil (mas não no processo penal), em acórdão que restou assim ementado:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE INÉRCIA DO ESTADO. RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

1. A prescrição é, como se sabe, o perecimento da pretensão punitiva ou da pretensão executória pela inércia do próprio Estado. No art. 117 do Código Penal que deve ser interpretado de forma sistemática todas as causas interruptivas da prescrição demonstram, em cada inciso, que o Estado não está inerte.

2. Não obstante a posição de parte da doutrina, o Código Penal não faz distinção entre acórdão condenatório inicial e acórdão condenatório confirmatório da decisão. Não há, sistematicamente, justificativa para tratamentos díspares.

3. A ideia de prescrição está vinculada à inércia estatal e o que existe na confirmação da condenação é a atuação do Tribunal. Consequentemente, se o Estado não está inerte, há necessidade de se interromper a prescrição para o cumprimento do devido processo legal.

4. Agravo regimental a que se nega provimento. [34]

Malgrado a pobreza da fundamentação teórica da decisão que, para fazer uma “interpretação sistemática”, aduziu apenas o argumento de que o CP não faz distinção entre acórdão condenatório inicial e acórdão condenatório confirmatório da decisão, fato é que o Supremo se olvida, na análise, do principal aspecto que deslegitima sua decisão, qual seja, de que acórdão condenatório é aquele impõe uma condenação. Por conseguinte, pressupõe-se que, para haver condenação em sede de acórdão, é necessária uma sentença penal absolutória em primeiro grau.

Não bastasse o erro da Corte Maior, a qual passa a errar cada vez com mais frequência e em casos cada vez mais absurdos[35], o STJ, a Corte da Cidadania, a quem compete interpretar a Lei Federal[36], tem contrariado seu próprio posicionamento[37], para endossar, como recentemente o fez no bojo do ED AgRg no REsp 1.521.735/RS, o crasso equívoco do Supremo, a saber:

Ademais, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, ao ponderar as repercussões do efeito substitutivo dos recursos (art. 1.008 do CPC c/c o art. 3º do CPP), reinterpretou o art. 117, IV, do Código Penal e adotou este entendimento: "O acórdão confirmatório da sentença implica a interrupção da prescrição" (HC 136.392, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJe 18/10/2017). Trata-se de superação de jurisprudência em sentido contrário, ante a constatação de que a decisão que julga o mérito da apelação fundada em error in judicando sobrepõe-se à sentença, independentemente do resultado do julgamento e de eventual alteração dosimétrica.

  Como se nota, para o STF, a decisão que julga o mérito da apelação fundada em error in judicando “substitui” a sentença condenatória primeira (e única, frise-se), independentemente do resultado do julgamento e de eventual alteração dosimétrica. Aqui, faz-se importação deformada da teoria geral dos recursos processuais cíveis para, com fundamento no (inaplicável) efeito substitutivo, dizer-se que “o julgamento proferido pelo juízo ad quem substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso, ainda que seja negado provimento à impugnação”.[38]

  De ver-se que, para tal posicionamento (teratológico) vingar, é necessário verdadeiro “contorcionismo hermenêutico”, na medida em que se toma, por empréstimo, com base no art. 3º, do Código de Processo Penal, o atual art. 1008, previsto no “Capítulo I”, das “Disposições Gerais” do Novo Código de Processo Civil[39], em verdadeira analogia in malam partem, tudo para criar um novo marco prescricional interruptivo inexistente.

  Com efeito, não carece grande esforço interpretativo para perceber que a redação “acórdão condenatório” foi criada, pelo legislador, justamente para abarcar aqueles casos em que, em primeiro grau, o réu é absolvido e há apelação por parte do Ministério Público. Totalmente infundada, portanto, é a premissa de que:

[...] A ideia de prescrição está vinculada à inércia estatal e o que existe na confirmação da condenação é a atuação do Tribunal. Consequentemente, se o Estado não está inerte, há necessidade de se interromper a prescrição para o cumprimento do devido processo legal.[40]

  É lógico que o a ideia de prescrição está vinculada à inércia estatal, assim como lógico também o é que, num recurso, por meio do qual não se instaura uma nova relação processual (um novo e singular processo), operando-se por ele mero prosseguimento da relação processual já existente [41], não se condena duas vezes, porque a pretensão acusatória deduzida em juízo é julgada procedente apenas uma só vez. Se a procedência se der em primeiro grau, havendo apelo do réu, pode o Tribunal reformá-la para absolvê-lo, quando, então, o acórdão, por ser absolutório, não interromperá o curso prescricional.

Entrementes, se há improcedência da pretensão em instância primeira, e o órgão oficial da acusação recorrer para ver reformada a decisão absolutória, aí sim será possível ter-se acordão penal condenatório interruptivo da prescrição, pois que este é o momento primeiro em que a pretensão acusatória é julgada procedente, pelo Tribunal, através do recurso, que não dá vida a nova relação jurídica, senão que mantem existente no mundo jurídico a relação processual primeva, iniciada com o recebimento da exordial de acusação.

  Nesse exato sentido, encampando o entendimento retro, João Paulo Orsini Martinelli e Leonardo Schimitt de Bem, na obra “Lições Fundamentais de Direito Penal”, são enfáticos ao dizer que “o acórdão condenatório não é aquele que confirma a condenação, mas o que modifica a sentença absolutória”.[42] Assim, na dicção dos autores, se o acusado é condenado pelo julgador em primeiro grau, interromper-se-á o prazo prescricional; na hipótese de recurso, se o Tribunal mantiver a condenação, ainda que altere a dosimetria, independentemente do motivo, não haverá nova condenação[43], de modo que apenas “haverá interrupção pelo acórdão se este alterar sentença penal absolutória”.[44]

  De igual modo, ao discorrer sobre o art. 117, IV, do CP, Luiz Regis Prado, objetivamente, explica que:

A interrupção ocorre com a publicação da sentença ou acórdão (art. 389, CPP). Reformada pelo Tribunal a sentença absolutória para condenar o réu, tal decisão interrompe a prescrição, a partir da data do julgamento do recurso. Confirmada pelo Tribunal a sentença condenatória, não ocorre nova interrupção. Contudo, reformada a sentença condenatória, absolvendo o acusado, mantém-se a interrupção provocada pela publicação da sentença de primeira instância.[45] (grifou-se)

  Em idêntica linha intelectiva, os consagrados Delmantos, no clássico “Código Penal Comentado”, também não deixam dúvidas quanto ao desacerto do atual entendimento do STF, o qual tem, ilegitimamente, se consagrado inclusive no âmbito do STJ, que é – ou deveria ser –, por determinação constitucional, o intérprete máximo da legislação infraconstitucional:

O antigo inciso IV deste art. 117 previa que o curso da prescrição interrompia-se “pela sentença condenatória recorrível”. A nova redação diz: “pela publicação da sentença ou acórdão recorríveis”. [...] Em face da nova redação dada a este inciso IV, pela Lei nº 11.596/2007, dispondo que o curso da prescrição interrompe-se “pela publicação da sentença ou acórdão recorríveis”, continuamos a entender que acórdão confirmatório de condenação não interrompe a prescrição.[46]

Com base nesses fundamentos, é possível constatar que a base dogmática da discussão, a qual está passando ao largo das decisões dos Tribunais, deve ser, conforme João Paulo Orsini Martinelli e Leonardo Schimitt de Bem, a de que não existem duas condenações no mesmo processo. Ou a condenação provém do julgador de primeira instância, e o Tribunal apenas confirma ou corrige a dosimetria, ou acusado é condenado somente pelo Tribunal, no caso em que o juízo de primeiro grau o absolve.[47]

Por conseguinte, malgrado a ideia de que a prescrição esteja vinculada à inércia estatal, deve-se ter claro em mente que o art. 117, IV, do CP, está a ser interpretado erroneamente, haja vista que o STF e o STJ têm sustentado, com supedâneo em princípios recursais próprios do direito processual civil – analogia in malam partem, pois –, que o acórdão condenatório substitui-se à sentença penal condenatória, querendo fazer crer que, numa mesma relação processual, pudesse haver duas condenações penais ou, dito de outro modo, que possível fosse, num mesmo processo penal, existir a procedência dúplice/duplicada de uma mesma e única pretensão acusatória.

Nessa ordem de ideias, afigura-se imperiosa a conclusão de que o atual entendimento – inaugurado pelo STF e, reprovavelmente, encampado pelo STJ – peca por partir de premissa equivocada, segundo a qual a prescrição deve(ria) ter como base apenas e tão somente a inércia estatal, que não fica(ria) demonstrada no acórdão penal confirmatório de sentença penal condenatória, uma vez que esse somente reforçaria a atividade do Poder Judiciário. Nada obstante, há de ser reafirmado que o direito penal tem na linguagem estrita o limite do exercício constitucional, portanto legítimo, da competência sancionatória do Estado, de modo que essa limitação linguística deve ser empregada para, corretamente, distinguir a natureza de um acórdão que condena de outro que confirma uma condenação preexistente, notadamente porque “as palavras dizem coisas e, por isso mesmo, devem ser pensadas e (re)pensadas antes de serem ditas”.[48]

Destarte, conclui-se que não se trata, a prescrição, de mecanismo viabilizador da impunidade, cujo objetivo seria talvez o estorvo da marcha processual, com a aniquilação da celeridade e efetividade do processo. Todo o oposto! O instituto, na atual quadra da democracia brasileira, somente pode ser visto como instrumento de efetivação da celeridade processual – vez que impõe ao Estado o dever de agir –, que, para além de buscar no processo apenas a velocidade na prática dos atos, precisa ter como bússola os direitos e garantias fundamentais, funcionando como verdadeiros elementos de legitimação do Dever Punitivo Estatal.

4. Considerações finais

Como se pôde constatar, poder punitivo oficial é limitado, porque o sistema penal está estruturado, ou deveria, na “Teoria do Garantismo Penal” e no “Direito Penal Mínimo”. A limitação, como restou demonstrada no presente artigo, possui parâmetros bem divisados, inseridos no contexto axiológico da Constituição da República, sendo a limitação temporal, que caracteriza a prescrição penal, objeto do ensaio; a limitação espacial, que encerra a territorialidade ou a aderência da jurisdição penal; e a limitação modal, a determinar o respeito à dignidade da pessoa humana. Poder punitivo oficial sem limitações é poder tirano, poder que não conhece a densidade da liberdade, poder que nada vale para o Direito. É preciso perceber isso, sob pena de esvaziar o conteúdo axiológico dos direitos humanos fundamentais inaugurado pela Constituição da República.

Demonstrou-se que a prescrição penal possui dignidade constitucional, tendo por objetivo não só a celeridade processual, na medida em que impõe ao Estado balizas temporais para agir, como também visa evitar a eternização do poder-dever de punir. Assentou-se, outrossim, que o não exercício da pretensão punitiva ou executória ocasiona, inexoravelmente, a perda da legitimidade estatal de impor a sanção penal, tendo em vista que o transcurso demasiado do tempo faz própria punição perder sua razão de existir.

Por derradeiro, evidenciou-se que o posicionamento reducionista o qual vem sendo adotado, tanto pelo STF como pelo STJ, não encontra respaldo na dogmática penal, já que, além de fazer uso indevido de categorias próprias do processo civil (efeito substitutivo, p. ex.), em verdadeira analogia in malam partem, se olvida que, no campo do processo penal, é impossível existirem duas condenações, sobretudo porque, com a interposição de recurso, não se inicia uma nova relação jurídico-processual, senão que se estende aquela mesma inaugurada com o recebimento da exordial acusatória. Concluiu-se, assim, que o acórdão somente será condenatório quando impuser a reforma de uma sentença absolutória, hipótese na qual interromperá, validamente, o curso da prescrição, tal como preconiza o art. 117, IV, do CP; leitura outra, que não essa, é campo fértil para o punitivismo desenfreado.

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Sobre os autores
Fernando Cesar Faria

graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (turma 2010). Especializando em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso. Servidor efetivo do Ministério Público de Mato Grosso.

Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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