A independência da instituição permanente Ministério Público

16/09/2019 às 11:21
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O presidente e autoridades políticas brasileiras ameaçam a democracia, tentando enfraquecer o Ministério Público e restringir liberdades civis.

I – O FATO

Como revelou Carlos Ari Sundfeld (O MP está sob ameaça política?), em artigo divulgado no site do Estadão, no dia 13 de setembro do corrente ano, “autoridades políticas relevantes, a começar do presidente da República, flertam com o autoritarismo e sugerem em voz alta que querem submissão, nada menos. Diante disso, ao menos uma manifestação clara precisava vir do Supremo Tribunal Federal”.

Teme-se que o emprego sistemático de discursos que afrontam direitos e hostilizam instituições democráticas tenha uma função mais perversa, que é abrir espaço para a erosão do projeto de construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, como determinado pelo artigo 3º da Constituição.

Para revogar direitos, reduzir a independência de instituições e restringir o espaço de liberdade da sociedade civil é essencial desqualificá-los, estigmatizá-los e, no extremo, demonizá-los, de forma que os movimentos regressivos sejam vistos não apenas como naturais, mas também como legítimos.

Para tanto, seria essencial para o sistema que se quer se impor que seja dobrado o Ministério Público.

Em seu discurso de despedida, Raquel Dodge pediu que o Supremo Tribunal Federal fique alerta para sinais de pressão contra a democracia . Segundo ela, há no Brasil e no mundo “vozes contrárias ao regime de leis”.

Em eloquente depoimento o ministro Celso de Mello enfatizou que o Ministério Público não pode servir a governos ou a grupos ideológicos e destacou o papel da instituição na preservação do regime democrático.

— O Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem. O Ministério Público também não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, ou instrumento básico de ofensa de direito das minorias — disse o ministro.


II – O PAPEL CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Ora, não cabe ao Poder Executivo intervir em assuntos administrativos inerentes ao Ministério Público.

O presidente da República parece desconhecer os termos do artigo 129 da CF que deu independência ao Parquet. Quer vê-lo ainda como se via na E.Constitucional n. 1/69, que assim como as normas constitucionais anteriores via o Ministério Público como órgão subalterno ao Ministério da Justiça.

A demora em nomear o novo procurador-geral da República e os comentários feitos à Instituição, são sinais de que o atual presidente da República gostaria ver a Instituição como algo dócil, que não atrapalhe o seu governo. Seria uma chefia que teria poder para evitar atuações no campo ambiental, das minorias, ou talvez no campo criminal, que trariam confronto as suas ideias nessas áreas.

Com tudo isso parece que o atual presidente da República não disfarça sua preferência por um governo autocrata que desconhece a Constituição-cidadã de 1988.

É mister lembrar a opção da Constituição de 1988 que foi, sem dúvida, conferir um elevado status constitucional ao Ministério Público, quase o erigindo a um Quarto Poder, desvinculando a instituição permanente dos Capítulos constitucionais dedicados ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário.

Fê-lo a Constituição-cidadã de 1988 instituição permanente, essencial à prestação jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e a do próprio regime democrático (artigo 127); cometeu à instituição, zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (artigo 129, II); conferiu a seus agentes total desvinculação do funcionalismo comum, não só nas garantias para a escolha de seu chefe, como para a independência de sua atuação (artigo 127, § 1º e 128, parágrafos); concedeu à instituição autonomia funcional e administrativa com a possibilidade de prover diretamente seus cargos (artigo 127, § § 1º e 2º); conferiu-lhe a iniciativa do processo legislativo bem como da proposta orçamentária); assegurou a seus membros as garantias dos magistrados (artigo 129, § 5º, I), elencando-lhes vedações similares (artigo 128, § 5º, II) e impondo-lhes os mesmos requisitos de ingresso na carreira (artigos 93, I, e 129, § 3º) e a mesma forma de promoção e de aposentadoria (artigo 93, II e VI, e 129, § 4º); conferiu-lhes privativamente a promoção da ação penal pública, que corresponde a uma parcela direta da soberania do Estado (artigo 129, I); elevou à condição de crimes de responsabilidade os atos do presidente da República, que atentem contra o livre exercício do poder Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e dos poderes constitucionais das unidades da Federação (artigo 85, II); assegurou ao procurador-geral da República, par a par com os chefes de Poder, julgamento nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal (artigo 52, I e II).

Ao Ministério Público foi dado o papel de um dos defensores da democracia. Aliás, o Ministério Público é instituição que só atinge sua destinação última em meio essencialmente democrático. A ordem democrática e o correto cumprimento da leis são tarefas que a Constituição incumbiu ao Parquet.

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As garantias e prerrogativas são concedidas pela lei em casos específicos, a fim de que certas autoridades melhor possam desempenhar suas atribuições em proveito do próprio interesse público.

Por sua vez, as garantias são da pessoa, do órgão, do ofício, da instituição. As prerrogativas ligam-se ao cargo.

As prerrogativas não constituem privilégios que quebrem o princípio da isonomia, como ensinou Nelson de Souza Sampaio (artigo na RDP, 68:16) e ainda, dentre outros, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição brasileira, São Paulo, 1977, pág. 124).

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/69, 1970, volume III, pág. 560) e ainda Sampaio Dória (Comentários à Constituição de 1946, 1960, volume III, pág. 422) já diziam que a inamovibilidade de juízes e de promotores é uma prerrogativa.

Na visão de Hely Lopes Meirelles (Justitia, 123:188, n. 17), as prerrogativas “são atributos do órgão ou do agente público, inerentes ao cargo ou a à função que desempenha na estrutura do Governo, na organização administrativa ou na carreira a que pertence. São privilégios funcionais, normalmente conferidos aos agentes políticos ou mesmo aos altos funcionários, para a correta atribuição de suas atribuições legais. As prerrogativas funcionais erigem-se em direito subjetivo de seu titular, passível de proteção por via judicial, quando negadas ou desrespeitadas por qualquer outra autoridade”.

Sujeitam-se os membros do Ministério Público a regime jurídico especial e gozam de independência no exercício de suas funções (CF, artigos 127 a 130 e 128, § 1º, da LC nº 40/81).

É certo que, fruto de lobby, o artigo 29, parágrafo terceiro, em defesa dos interesses daqueles membros da Instituição que pleitearam a opção pelo regime anterior, em dispositivo transitório, cuja inconstitucionalidade é patente, permitiu a eles advogar, se já advogavam e ainda permitindo atividades político-partidárias, criando, praticamente, dois quadros paralelos de carreira no Parquet. Essa norma, contraindo o princípio da igualdade, visava acomodar situações particulares. Mas, o STF, chamado a intervir entendeu, como fundamentação, que o Supremo Tribunal Federal não é legislador positivo, mas negativo. Ora, isso transborda do razoável, mas não elimina o problema que é atacar inconstitucionalidade em norma de caráter transitório. Inexiste direito adquirido de servidor à imutabilidade de regime jurídico (RTJ 121:859).

Os dispositivos traçados envolvendo as atividades que a Constituição Federal destinou ao Ministério Público e ainda as respectivas prerrogativas e garantias concedidas são verdadeiras garantias institucionais, que se traçam como cláusulas pétreas.

A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza.

Temos uma garantia contra o Estado, e não através do Estado.

Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt.

J.H. Meirelles Teixeira (Curso de Direito Constitucional) prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos.

Tais direitos se configuram quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato.

São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt:

a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida;

b) a proteção jurídico-constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins;

c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele;

d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição.

Em sendo assim, o descumprimento pelo presidente da República desses misteres essenciais e nobres dispostos pela Constituição-cidadã de 1988, eleva essa administração ao desprezo pela própria Carta Fundamental, de forma a olhar essa conduta como afrontosa aos princípios e normas emanados da Carta.


III – AS PERIGOSAS CONSEQUÊNCIAS DE UMA FRAGILIZAÇÃO DO MP

É desastroso para a democracia, para os interesses gerais e para a luta contra a corrupção que procuradores sejam intimidados ou cooptados pelo poder político, pelo poder econômico ou pelo crime organizado.

Essa é a mensagem que fica do momento atual diante de uma perigosa incursão de setores antidemocráticos.

O Parquet não pode ser considerado como “uma rainha” no tabuleiro do xadrez do presidente da República.

O Ministério Público não é órgão de governo, mas de Estado, órgão independente, na defesa dos lídimos interesses públicos primários emanados da sociedade.

Não é o presidente da República que vai dizer se ele deve seguir “esse ou aquele caminho” que convirja com os seus interesses.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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