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Multipropriedade: conceito, dinâmica e funcionamento

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16/09/2019 às 13:54

Resumo:


  • A multipropriedade é um regime de condomínio que permite a várias pessoas serem proprietárias de um mesmo imóvel, cada uma com direito a uma fração de tempo para uso exclusivo.

  • A Lei nº 13.777/2018 regulamentou a multipropriedade no Brasil, trazendo alterações no Código Civil e estabelecendo regras para a sua constituição, administração e registro.

  • O multiproprietário tem direitos e obrigações relacionados ao uso, conservação e administração da propriedade, devendo contribuir para as despesas comuns e respeitar o tempo de uso estabelecido para cada fração.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Lei 13.777/18 regulamenta a multipropriedade imobiliária, permitindo o uso exclusivo de frações temporais de um imóvel. Como esse regime combina lazer e economia? Ele se aplica a bens móveis?

Resumo: O presente artigo acadêmico tem por finalidade explorar quais as principais alterações legislativas trazidas pela Lei n.º 13.777 de 2018, que dispõe sobre a multipropriedade imobiliária. Para tanto, parte da perspectiva histórica sobre o instituto, analisa sua origem e desenvolvimento no Brasil e adentra, em sequência, nas alterações feitas no Código Civil. Em seguida, analisa os principais aspectos sobre a natureza jurídica do instituto, inclusive levando em consideração as divergências doutrinárias. O tema se aprofunda ao ser definida e analisada a dinâmica sobre as frações de tempo e, logo após, as formas pela qual a multipropriedade passa a existir. Ainda, aborda os direitos e obrigações do multiproprietário, bem como discorre sobre a sua função de administração. Todo o artigo faz paralelo com aspectos correlatos ao tema, seja na seara do direito civil, a exemplo do condomínio edilício, como na seara registral, essencial ao tema.

Palavras-chave: Direito Civil. Direito Imobiliário. Multipropriedade. Condomínio. Lei 13.777/18.

Sumário: 1. O que é a multipropriedade. 2. Qual a natureza jurídica da multipropriedade. 3. Como funciona a multipropriedade. 3.1. Entendendo as frações de tempo. 3.2. Como as frações de tempo podem ser utilizadas. 3.3. Frações de manutenção periódica. 4. Instituição da multipropriedade. 5. Quais são os direitos e as obrigações do multiproprietário. 6. Como a multipropriedade é administrada. 7. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. O QUE É A MULTIPROPRIEDADE?

Conceituar a multipropriedade não se tornou tarefa tão fácil, principalmente após as recentes alterações legais. De forma sucinta, sem misturar os dois panoramas e a título introdutório, é importante esclarecer que a multipropriedade é um regime jurídico com aplicabilidade em coisas móveis e imóveis, que já existia no Direito brasileiro.

A publicação da Lei n.º 13.777/2018, contudo, trouxe novos contornos para as relações jurídicas sob esse regime. Primeiramente, teve o condão de aperfeiçoar o que já estava vigendo e, em seguida, passou a ditar as regras para as novas relações a se constituir.

Antes de tudo, é salutar destacar que estudos estimam o nascimento da multipropriedade em berço francês, após os legisladores da época tentarem comungar aspectos societários e imobiliários. Conforme explicam SANTOS e OLIVEIRA (2018, p. 19), as intervenções legislativas, iniciadas em 1938, somente foram disciplinar efetivamente a multipropriedade em meados da década de setenta2. Logo em seguida, o instituto avançou por outras nações europeias, tendo novas leituras em Portugal e Itália (onde se destacou o modelo da Multipropriedade Hoteleira).

Ainda, os neófitos no Direito poderiam pensar que a Lei n.º 13.777/2018 instituiu a multipropriedade no Brasil. Mas não foi assim. Antes de sua edição, o instituto já era presente na realidade negocial pátria, tendo ganhado ao longo dos anos muito espaço no mercado imobiliário (talvez tenha sido esta, inclusive, a razão pela qual se editou a referida lei).

Neste sentido, com seu surgimento no Direito Moderno brasileiro em meados de 1980, a primeira grande obra que dissecou a nova forma atípica de contratos eminentemente imobiliários foi feita pelo habilíssimo GUSTAVO TEPEDINO (2019, p. 11), em 19933. A obra foi de suma importância para construir entendimento doutrinário e jurisprudencial apto a dar segurança jurídica às relações constituídas em multipropriedade, que até então eram juridicamente vulneráveis..

Assim, em termos práticos, a multipropriedade nada mais é do que uma forma diferente de se aproveitar determinada coisa móvel ou imóvel. Essa forma considera que os sujeitos acordem entre si frações ou unidades fixas de tempo. A lógica jurídica por trás do instituto é de que, durante esse período temporal que o multiproprietário possui, ele poderia gozar de forma exclusiva de sua propriedade e do mobiliário que ela possui (especificamente para casos de imóveis).

Sua razão de existir visa conjugar dois importantes aspectos da vida humana: o econômico e o lazer. Explico. É comum que determinadas famílias gostem de passar uma ou duas semanas das suas férias em seu “refúgio” – para algumas, por exemplo, um flat em Búzios/RJ; para outros, uma casa nas aconchegantes ruas de Gramado/RS. Em brilhante artigo que trata da multipropriedade como efetivadora do direito ao lazer, SANTOS e OLIVEIRA (2018, p. 24) arrematam que “elas são muito comuns em áreas turísticas como forma de segunda residência e têm a periodicidade como elemento essencial, pois o proprietário tem o direito exclusivo de usufruir determinado imóvel por um período predeterminado uma vez ao ano”4.

Nem todas as famílias, contudo, possuem condições financeiras de arcar com os custos de aquisição e manutenção de uma propriedade, principalmente quando esta se encontra geograficamente distante do lar habitual.

Assim, a indústria imobiliária buscou meios de saciar a necessidade de lazer de todas as pessoas que poderiam se encontrar nesta situação, por meio do fracionamento do uso do imóvel. Isso reduziria consideravelmente o valor a ser desembolsado pelo comprador, que também ficaria mais tranquilo quanto à administração e conservação do bem (com a criação da figura do administrador).

Dessa maneira, a título de exemplo, enquanto a família A utilizaria do imóvel na terceira semana de Abril, a família B prefere por utilizá-lo nas duas primeiras semanas de Julho (obviamente, desembolsou um pouco a mais). O sujeito C, frequentador da festa típica local, tornou-se proprietário da exata semana em que ela ocorre, pois poderá dela aproveitar todos os anos.

Finalmente, a Lei n.º 13.777/2018, ao incluir o art. 1.358-C no Código Civil, trouxe o conceito legal de multipropriedade da seguinte maneira:

Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.

Com isso, nota-se que a multipropriedade brinca com conceitos de espaço (na perspectiva da propriedade) e de tempo (na perspectiva de utilização desta propriedade). A figura do imóvel, sempre tratada com extremo rigor e formalismo, principalmente no tocante a forma pela qual se exerce a propriedade, é flexibilizada por motivos mercadológicos, financeiros e sociais. Em semelhante linha de raciocínio, OLIVEIRA (2019, p. 08) diz que isto representa a abstração do conceito de imóvel, e completa:

A Lei da Multipropriedade Imobiliária representa uma ruptura com a concepção tradicional de imóvel como algo físico, vinculado apenas ao espaço. A perplexidade que essa inovação causa na doutrina assemelha-se à que Einstein causou com sua Teoria da Relatividade ao romper com a tradição newtoniana e anunciar uma nova forma de imiscuir o tempo com o espaço na identificação do estado das coisas (espaço-tempo). O conceito de imóvel não se confunde mais apenas com uma coisa física (solo, construções e unidades de condomínios edilícios), mas também abrange um período do ano sobre essa coisa (unidade periódica)5.

Percebe-se, portanto, que a multipropriedade, enquanto conceito, conjuga diversos fatores. O mesmo pode se afirmar, ainda, quanto aos seus reflexos jurídicos. Por ser forma de propriedade que comunga diversos sujeitos em favor de um interesse, resta ao Direito Civil e Imobiliário importante papel para evitar e solucionar os conflitos que surgem por conta desse regime jurídico. Ainda, resta ao Direito Registral e Notarial cuidar na aplicação e efeitos das relações de oponibilidade desta modalidade condominial com o restante da sociedade.

Por fim, é salutar lembrar que qualquer imóvel, rural ou urbano, poderá ser objeto da multipropriedade. Além disso, ela poderá ser instituída, inclusive, em unidades que já estão sob regime de condomínio edilício6. Ressalta-se, contudo, que a Lei n.º 13.777/2018 somente tratou da multipropriedade em bens imóveis, de modo que ainda restam sem amparo legal a multipropriedade de bens móveis (restando sua dinâmica às construções jurisprudenciais e doutrinárias), já que o regime jurídico aplicável aos imóveis não pode ser necessariamente aproveitado para os móveis.

Assim, após as linhas gerais sobre a conceituação da multipropriedade, o próximo passo é entender como ela funciona. Antes, contudo, resta esclarecer e investigar qual a natureza jurídica da multipropriedade.


2. QUAL A NATUREZA JURÍDICA DA MULTIPROPRIEDADE?

Uma das principais indagações a se fazer no estudo de determinado instituto é descobrir qual a sua natureza jurídica. No caso da multipropriedade, a atenção do leitor deve ser redobrada, pois existe mais de um entendimento sobre o assunto: uma corrente majoritária que tinha força antes do advento da Lei n.º 13.777/2018 e outra nova corrente de peso que surge após a edição da referida lei.

Neste sentido, antes do advento do diploma legal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no âmbito do REsp 1.546.165/SP, chegou a reconhecer a multipropriedade como direito real, em flagrante ampliação do rol dos direitos reais constante do art. 1.225. do Código Civil (CC). É importante ressaltar que o referido artigo lista o que seria direito real, e é visto por muitos civilistas como rol sacro e inviolável, principalmente pela alegação de que a listagem é a melhor opção para garantir maior segurança jurídica (sob o aspecto material e registral) diante das condições brasileiras.

O decisum provocou celeuma, mas foi defendido por vários doutrinadores de peso, que explicam que as partes, por meio da liberdade negocial, podem criar direito real entre si. Nas palavras de CAVALCANTE (2019, p. 13), por criar direito real entre as partes, “o participante detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo”7. Na mesma corrente, CHAVES e ROSENVALD (2017, p. 280) defendiam8, em obra anterior a lei n.º 13.777/2018, que:

A multipropriedade imobiliária é direito real. Alguns poderiam insinuar que a legislação é silente nesse particular. Porém, sabemos que o atributo da taxatividade dos direitos reais não lhes insere na redoma da tipicidade. Assim, é plenamente possível o exercício de um espaço de autonomia negocial para que os particulares possam ajustar diferentes contornos ao direito de propriedade conforme as variações e demandas do tráfico jurídico. Ademais, no câmbio do direito de propriedade para os “direitos de propriedades”, veicula-se a noção de que a propriedade é dotada de plasticidade, podendo transitar entre um conteúdo jurídico máximo e um mínimo, traduzido este como o essencial para que o conteúdo do domínio se mantenha com o seu titular.

Este entendimento, apesar de filiar nomes de peso como o próprio TEPEDINO, foi muito contestado à época e continua sendo até hoje. Mas essa boa “luta doutrinária” tende a acabar com o que dispõe a nova lei, que trouxe a multipropriedade não como direito real de propriedade em si, mas sim como regime jurídico pertencente à seara condominial.

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Conforme esclarece OLIVEIRA, era compreensível a lógica jurídica adotada pelo STJ, veementemente protetiva e garantidora de segurança jurídica para um instituto que, até então, era vulnerável. A multipropriedade, àquela época, se revestia por meio de contratos atípicos. Segundo o autor, a questão encontra-se vencida pois, por força dos artigos acrescidos ao CC, a multipropriedade assumiu a forma de condomínio9.

Dessa forma, este último raciocínio possui corpo para se tornar a pedra-mestra da nova posição doutrinária e jurisprudencial, principalmente pelo fato de que o já mencionado art. 1.358-C do CC é expresso em afirmar a multipropriedade como regime (e não como direito real em si) de condomínio.

Trazer a multipropriedade como regime de condomínio tem repercussões práticas imediatas no tocante à aplicação de sistemas normativos e sua harmonização com os demais diplomas. Dessa forma, é importante compreender que há aplicação subsidiária de todas as regras de condomínio, tanto aquelas que constam do Código Civil quanto as que estão em legislações esparsas. Ainda, há quem advogue pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em determinadas relações jurídicas10.

O operador do Direito que busca lidar com o instituto da multipropriedade deve buscar visão ampla das disposições civilistas, não restringindo sua análise ao que foi adicionado pela lei n.º 13.777/2018. A perspectiva ampla é fundamental para contextualizar o instituto da maior e melhor forma possível, sabendo aplicar as disposições principais e subsidiárias da forma correta.

Assim, após analisada a natureza jurídica do instituto, é necessário começar a dissecar seus pontos mais importantes.


3. COMO FUNCIONA A MULTIPROPRIEDADE?

3.1. ENTENDENDO AS FRAÇÕES DE TEMPO

Como foi dito, a multipropriedade em imóveis parte do pressuposto de que o imóvel-base será virtualmente fragmentado11 em unidades periódicas, com medidas definidas por sua fração de tempo12. Assemelhando-se ao regime do condomínio edilício, cada quota de fração de tempo equivale a uma fração ideal, inclusive para deliberações internas. Essa divisão traz repercussões na órbita do direito civil e do direito registral.

Primeiramente, na seara civilista, é importante destacar que o §1º do art. 1.358-E do CC, estabelece que a fração de tempo não poderá ser inferior a 7 (sete) dias. Assim, a primeira conclusão que o leitor deve ter em mente é a de que o imóvel em regime de multipropriedade terá, no máximo, 52 unidades periódicas (pois em um ano existem cinquenta e duas semanas).

A sugestão de tempo mínimo trazida pela lei parece coadunar com a função social da multipropriedade, principalmente enquanto garantidora do lazer e da dignidade humana, haja vista ser um prazo mínimo razoável para que o sujeito consiga desfrutar dos benefícios de sua propriedade imobiliária e tudo o que ela tem, ainda que indiretamente, para oferecer.

Não se pode implicar, contudo, que este tempo mínimo vire regra. O ato que institui a multipropriedade pode adotar uma fração de tempo maior, de acordo com a dinâmica econômica do local em que o imóvel está situado, e levando sempre em consideração a capacidade aquisitiva do público-alvo (obviamente, partindo do pressuposto de que se trata de uma abordagem mercadológica). Caso a multipropriedade tenha sido instituída com outros fins que não econômicos (por vontade entre particulares), os critérios serão diferentes.

Outra conclusão imediata que deve ser evitada é a de que, por possuir no máximo 52 unidades periódicas, o imóvel-base virá a ter 52 pessoas diferentes como multiproprietários. Em verdade, uma mesma pessoa física ou jurídica pode vir a adquirir mais de uma unidade periódica, sem que isso importe em ilegalidade (art. 1.358-E, §2°, CC). Mas sobre tal tema, cabe ressalva: o art. 1.358-H do CC é claro em permitir que o instrumento que dá origem a multipropriedade crie limites de fração para uma mesma pessoa.

A finalidade jurídica por trás deste possível limite é simples: evitar o abuso econômico por parte de um dos multiproprietários. Para entender tal afirmação, basta inferir que se um sujeito possui 5 (cinco) unidades periódicas, ele seria detentor de 5 quotas de fração ideal no momento das deliberações internas. Assim, numa multipropriedade cujo imóvel-base foi dividido em 8 unidades periódicas, o sujeito que possui 5 delas detém a maioria em qualquer deliberação, inclusive para impor aos demais multiproprietários aquisições ou manutenções economicamente onerosas.

É de suma importância ressaltar o que a lei determina no art. 1.358-C, parágrafo único, pois se todas as frações de tempo forem do mesmo multiproprietário, a multipropriedade permanecerá existindo. Isto se deve ao fato de que cada unidade periódica constitui direito real de propriedade periódico, em vínculo que une o multiproprietário à unidade, estando todas elas subordinadas a algo maior: um regime jurídico condominial, com repercussões cíveis e registrais. Assim, a multipropriedade continuará a existir ainda que somente uma pessoa seja proprietária de todas as unidades periódicas.

Ainda sobre as frações de tempo, na seara registral há algo peculiar: cada fração de tempo possuirá uma matrícula individualizada. Neste sentido, com clareza trata BLASKESI (2019, p. 41): “uma vez registrado na matrícula-mãe, abrem-se matrículas individuais para cada fração de tempo desse novo direito real, onde consta, de forma específica, quando e como pode ser usado”13. A matrícula-mãe a que se refere a autora é a do imóvel-base, e as demais dela decorrem de acordo com cada fração de tempo, que é considerada como uma unidade imobiliária. Essa alteração promovida pela lei n.º 13.777/2018 na Lei de Registros Públicos (LRP) também possui uma importante repercussão tributária: o município poderá realizar a inscrição individualizada de cada unidade junto ao cadastro municipal (art. 176, §11), para fins de cobrança de IPTU e ITR.

Por força dessa disposição, portanto, o multiproprietário somente pagará o IPTU referente à sua unidade periódica, afastando-se qualquer hipótese de solidariedade tributária, onde o Fisco poderia alegar que o multiproprietário deveria ser cobrado pela dívida de todo o imóvel-base. Qualquer argumento em contrário a esta conclusão encontra claro óbice, pois a unidade periódica é vista como imóvel autônomo, onde o multiproprietário exerce seu direito real de propriedade periódico e, portanto, somente praticará o fato-gerador do IPTU relativo à sua unidade periódica.

Ainda na seara tributária, é importante ressalvar que caso um dos multiproprietários esteja devendo ao Fisco, sofrerá a sanção somente em sua unidade periódica, restando os demais resguardados de qualquer prejuízo. Isto se dá ao fato de que a restrição acontece, como se explicou, somente sobre o direito real de propriedade do imóvel periódico.

3.2. COMO AS FRAÇÕES DE TEMPO PODEM SER UTILIZADAS?

Para entender a forma de utilização das frações de tempo, é importante saber que o art. 1.358-E do CC deixa claro que a fração em si é indivisível, ou seja, se o sujeito A é dono de fração equivalente a 15 dias seguidos no mês de janeiro (e tal informação deve constar na matrícula da unidade), não poderá solicitar a divisão desta unidade, por meio do desfazimento da matrícula relativa a esta fração, e criar, em seguida, três outras matrículas, com 5 dias cada, para desfrutar parte em janeiro, parte em maio e parte em julho. Assim, deve ser respeitado o que a matrícula da unidade periódica diz.

Não se pode confundir, contudo, o caso narrado com a hipótese do uso intercalado da fração (este, por sua vez, admitido por lei). O Código Civil, em seu art. 1.358-E, §1º, diz que a fração pode ser utilizada de forma seguida ou intercalada. É seguro que o uso intercalado conste expressamente da matrícula da unidade periódica, bem como seja pormenorizado na convenção da multipropriedade. Neste caso, portanto, a fração do sujeito poderia comportar 15 dias intercalados, a serem gozados de acordo com o que se acordou no instrumento apropriado.

Ainda, o referido artigo traz em seus incisos a forma pela qual a fração pode ser utilizada. A primeira modalidade, chamada de período fixo e determinado, é quando o sujeito sempre goza do mesmo período em cada ano (assim, se o sujeito A possui 10 dias na primeira metade de maio, assim se repetirá ano a ano). A segunda modalidade é a flutuante – aqui, o critério irá ser decidido por procedimento objetivo e isonômico entre os multiproprietários, e poderá ter repercussões práticas (ex.: em anos pares, o sujeito A possuirá 10 dias na primeira metade de maio; em anos ímpares, os 10 dias serão aproveitados na primeira semana de setembro). Por fim, a última modalidade é a mista, que poderá combinar os dois sistemas anteriores.

3.3. FRAÇÕES DE MANUTENÇÃO PERIÓDICA

Por ser constantemente utilizado, há necessidade de que o imóvel-base seja constantemente preservado. Por isso, achou o legislador prudente em dispor de fração específica para manutenção das instalações, equipamentos e mobiliário do imóvel-base.

Esta fração, comumente chamada de fração de manutenção periódica, tem previsão no art. 1.358-N do CC, e ela poderá ser atribuída ao instituidor da multipropriedade ou aos multiproprietários, de forma proporcional às suas frações. No primeiro caso (atribuída ao instituidor), possuirá matrícula própria. No segundo (atribuída aos multiproprietários), contudo, não terá matrícula própria e fará parte das demais unidades, em proporção de cada fração.

Assim, por exemplo, o condomínio em multipropriedade pode definir que os reparos serão sempre feitos em dois momentos: no primeiro dia de maio e no último dia de novembro em cada ano, o que dá a fração de 48h. Neste caso, atribuída ao instituidor da multipropriedade, a fração terá matrícula própria e este prazo sempre será respeitado.

Na segunda hipótese, por sua vez, poderia ser feito diferente: suponhamos que o imóvel-base seja dividido entre 48 multiproprietários, que abdicam sempre de 1 (uma) hora no último dia de sua estadia. Durante essa hora, é feita a limpeza e vistoria da unidade. Se todos fizerem isto, teremos as mesmas 48h, diluídas nas frações dos multiproprietários. Deste jeito, a fração de manutenção não possuiria matrícula própria.

Este último caso é uma exceção ao princípio de que a fração de tempo não pode ser dividida, pois não se trata aqui da fração de uso convencional da unidade periódica (enquanto exercício do direito real de propriedade periódico), mas sim de fração que é essencial ao uso e existência de todo o regime jurídico de multipropriedade que recai sobre o imóvel.

Ainda, é salutar lembrar que manter o período mínimo de 7 dias para uma fração destinada a manutenção e reparos pode ser, a depender do tamanho do imóvel-base, desrazoável. Desta forma, pela perspectiva da inteligência jurídica por trás desta fração, é totalmente compreensível que este período seja fragmentado ou seja inferior a 7 dias14.

É importante notar, ainda, que esta fração não é obrigatória, pois a previsão legal fala em “poderá”, mas recomenda-se que os multiproprietários leiam-na como “deverá”.

Ainda, pode surgir a situação onde há necessidade de realizar reparo urgente. Os reparos ou obras urgentes partem do pressuposto de que a necessidade de realização do serviço corretivo é imediata. Neste caso, o art. 1.358-J, IX do CC é claro em colocar como um dos deveres do multiproprietário a permissão de realização de obras ou reparos urgentes. Dessa forma, sendo necessário fazer tais serviços, o multiproprietário não pode criar óbices ou entraves, ainda mais pela consciência coletiva de cuidado e preservação que é inerente ao condomínio em multipropriedade.

Surge, contudo, um problema: justamente pela não-previsibilidade do fato urgente, pode ter havido prejuízo para algum multiproprietário, que teve de ceder parte de sua unidade periódica para que as obras fossem realizadas. A lei, por sua vez, não dispõe sobre nenhuma forma de compensação ou reparação pelo dano sofrido pelo multiproprietário. Neste diapasão, OLIVEIRA traz dois argumentos15 que permeiam tal problemática.

O primeiro deles é o de que o risco existe para todos os multiproprietários, razão pela qual não lhe caberia compensação alguma. O segundo é o de que cabe a compensação por meio de indenização em pecúnia, custeada pelos demais multiproprietários. O autor sugere, inclusive, que a convenção poderia prever alguns valores como referência a título de indenização.

Assim, ainda se constrói qual o melhor posicionamento nessa situação fática. Em virtude da novidade legislativa, as lides envolvendo o possível problema ainda surgirão na realidade, o que oportunizará o pronunciamento do Judiciário sobre o tema. Analisando objetivamente, contudo, é inegável que existe o dano nesta situação, e por mais que todos os multiproprietários estejam sujeitos ao imprevisível, o mero reparo da obra não tem o condão de reparar o prejuízo pela não utilização da unidade periódica, razão pela qual é necessária, de alguma forma, uma compensação para o prejudicado.

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Sobre o autor
Moisés Emidio de Paiva

Advogado. LL.M em Direito dos Contratos. Especialista em Direito Imobiliário. Extensão em Direito Norte-Americano pela University of Pennsylvania (EUA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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