MULTIPROPRIEDADE: CONCEITO, DINÂMICA E FUNCIONAMENTO
RESUMO
O presente artigo acadêmico tem por finalidade explorar quais as principais alterações legislativas trazidas pela lei n.º 13.777 de 2018, que dispõe sobre a multipropriedade imobiliária. Para tanto, parte da perspectiva histórica sobre o instituto, analisa sua origem e desenvolvimento no Brasil e adentra, em sequência, nas alterações feitas no Código Civil. Em seguida, analisa os principais aspectos sobre a natureza jurídica do instituto, inclusive levando em consideração as divergências doutrinárias. O tema se aprofunda ao ser definida e analisada a dinâmica sobre as frações de tempo e, logo após, as formas pela qual a multipropriedade passa a existir. Ainda, aborda os direitos e obrigações do multiproprietário, bem como discorre sobre a sua função de administração. Todo o artigo faz paralelo com aspectos correlatos ao tema, seja na seara do direito civil, a exemplo do condomínio edilício, como na seara registral, essencial ao tema.
Palavras-chave: Direito Civil. Direito Imobiliário. Multipropriedade. Condomínio. Lei 13.777/18.
SUMÁRIO
1. O QUE É A MULTIPROPRIEDADE?; 2. QUAL A NATUREZA JURÍDICA DA MULTIPROPRIEDADE?; 3. COMO FUNCIONA A MULTIPROPRIEDADE?; 3.1 ENTENDENDO AS FRAÇÕES DE TEMPO; 3.2 COMO AS FRAÇÕES DE TEMPO PODEM SER UTILIZADAS?; 3.3 FRAÇÕES DE MANUTENÇÃO PERIÓDICA; 4. INSTITUIÇÃO DA MULTIPROPRIEDADE; 5. QUAIS SÃO OS DIREITOS E AS OBRIGAÇÕES DO MULTIPROPRIETÁRIO?; 6. COMO A MULTIPROPRIEDADE É ADMINISTRADA?; 7. CONCLUSÃO; 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. O QUE É A MULTIPROPRIEDADE?
Conceituar a multipropriedade não se tornou tarefa tão fácil, principalmente após as recentes alterações legais. De forma sucinta, sem misturar os dois panoramas e a título introdutório, é importante esclarecer que a multipropriedade é um regime jurídico com aplicabilidade em coisas móveis e imóveis, que já existia no Direito brasileiro.
A publicação da Lei n.º 13.777/2018, contudo, trouxe novos contornos para as relações jurídicas sob esse regime. Primeiramente, teve o condão de aperfeiçoar o que já estava vigendo e, em seguida, passou a ditar as regras para as novas relações a se constituir.
Antes de tudo, é salutar destacar que estudos estimam o nascimento da multipropriedade em berço francês, após os legisladores da época tentarem comungar aspectos societários e imobiliários. Conforme explicam SANTOS e OLIVEIRA (2018, p. 19), as intervenções legislativas, iniciadas em 1938, somente foram disciplinar efetivamente a multipropriedade em meados da década de setenta[2]. Logo em seguida, o instituto avançou por outras nações europeias, tendo novas leituras em Portugal e Itália (onde se destacou o modelo da Multipropriedade Hoteleira).
Ainda, os neófitos no Direito poderiam pensar que a Lei n.º 13.777/2018 instituiu a multipropriedade no Brasil. Mas não foi assim. Antes de sua edição, o instituto já era presente na realidade negocial pátria, tendo ganhado ao longo dos anos muito espaço no mercado imobiliário (talvez tenha sido esta, inclusive, a razão pela qual se editou a referida lei).
Neste sentido, com seu surgimento no Direito Moderno brasileiro em meados de 1980, a primeira grande obra que dissecou a nova forma atípica de contratos eminentemente imobiliários foi feita pelo habilíssimo GUSTAVO TEPEDINO (2019, p. 11), em 1993[3]. A obra foi de suma importância para construir entendimento doutrinário e jurisprudencial apto a dar segurança jurídica às relações constituídas em multipropriedade, que até então eram juridicamente vulneráveis..
Assim, em termos práticos, a multipropriedade nada mais é do que uma forma diferente de se aproveitar determinada coisa móvel ou imóvel. Essa forma considera que os sujeitos acordem entre si frações ou unidades fixas de tempo. A lógica jurídica por trás do instituto é de que, durante esse período temporal que o multiproprietário possui, ele poderia gozar de forma exclusiva de sua propriedade e do mobiliário que ela possui (especificamente para casos de imóveis).
Sua razão de existir visa conjugar dois importantes aspectos da vida humana: o econômico e o lazer. Explico. É comum que determinadas famílias gostem de passar uma ou duas semanas das suas férias em seu “refúgio” – para algumas, por exemplo, um flat em Búzios/RJ; para outros, uma casa nas aconchegantes ruas de Gramado/RS. Em brilhante artigo que trata da multipropriedade como efetivadora do direito ao lazer, SANTOS e OLIVEIRA (2018, p. 24) arrematam que “elas são muito comuns em áreas turísticas como forma de segunda residência e têm a periodicidade como elemento essencial, pois o proprietário tem o direito exclusivo de usufruir determinado imóvel por um período predeterminado uma vez ao ano”[4].
Nem todas as famílias, contudo, possuem condições financeiras de arcar com os custos de aquisição e manutenção de uma propriedade, principalmente quando esta se encontra geograficamente distante do lar habitual.
Assim, a indústria imobiliária buscou meios de saciar a necessidade de lazer de todas as pessoas que poderiam se encontrar nesta situação, por meio do fracionamento do uso do imóvel. Isso reduziria consideravelmente o valor a ser desembolsado pelo comprador, que também ficaria mais tranquilo quanto à administração e conservação do bem (com a criação da figura do administrador).
Dessa maneira, a título de exemplo, enquanto a família A utilizaria do imóvel na terceira semana de Abril, a família B prefere por utilizá-lo nas duas primeiras semanas de Julho (obviamente, desembolsou um pouco a mais). O sujeito C, frequentador da festa típica local, tornou-se proprietário da exata semana em que ela ocorre, pois poderá dela aproveitar todos os anos.
Finalmente, a Lei n.º 13.777/2018, ao incluir o art. 1.358-C no Código Civil, trouxe o conceito legal de multipropriedade da seguinte maneira:
Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.
Com isso, nota-se que a multipropriedade brinca com conceitos de espaço (na perspectiva da propriedade) e de tempo (na perspectiva de utilização desta propriedade). A figura do imóvel, sempre tratada com extremo rigor e formalismo, principalmente no tocante a forma pela qual se exerce a propriedade, é flexibilizada por motivos mercadológicos, financeiros e sociais. Em semelhante linha de raciocínio, OLIVEIRA (2019, p. 08) diz que isto representa a abstração do conceito de imóvel, e completa:
A Lei da Multipropriedade Imobiliária representa uma ruptura com a concepção tradicional de imóvel como algo físico, vinculado apenas ao espaço. A perplexidade que essa inovação causa na doutrina assemelha-se à que Einstein causou com sua Teoria da Relatividade ao romper com a tradição newtoniana e anunciar uma nova forma de imiscuir o tempo com o espaço na identificação do estado das coisas (espaço-tempo). O conceito de imóvel não se confunde mais apenas com uma coisa física (solo, construções e unidades de condomínios edilícios), mas também abrange um período do ano sobre essa coisa (unidade periódica)[5].
Percebe-se, portanto, que a multipropriedade, enquanto conceito, conjuga diversos fatores. O mesmo pode se afirmar, ainda, quanto aos seus reflexos jurídicos. Por ser forma de propriedade que comunga diversos sujeitos em favor de um interesse, resta ao Direito Civil e Imobiliário importante papel para evitar e solucionar os conflitos que surgem por conta desse regime jurídico. Ainda, resta ao Direito Registral e Notarial cuidar na aplicação e efeitos das relações de oponibilidade desta modalidade condominial com o restante da sociedade.
Por fim, é salutar lembrar que qualquer imóvel, rural ou urbano, poderá ser objeto da multipropriedade. Além disso, ela poderá ser instituída, inclusive, em unidades que já estão sob regime de condomínio edilício[6]. Ressalta-se, contudo, que a Lei n.º 13.777/2018 somente tratou da multipropriedade em bens imóveis, de modo que ainda restam sem amparo legal a multipropriedade de bens móveis (restando sua dinâmica às construções jurisprudenciais e doutrinárias), já que o regime jurídico aplicável aos imóveis não pode ser necessariamente aproveitado para os móveis.
Assim, após as linhas gerais sobre a conceituação da multipropriedade, o próximo passo é entender como ela funciona. Antes, contudo, resta esclarecer e investigar qual a natureza jurídica da multipropriedade.
2. QUAL A NATUREZA JURÍDICA DA MULTIPROPRIEDADE?
Uma das principais indagações a se fazer no estudo de determinado instituto é descobrir qual a sua natureza jurídica. No caso da multipropriedade, a atenção do leitor deve ser redobrada, pois existe mais de um entendimento sobre o assunto: uma corrente majoritária que tinha força antes do advento da Lei n.º 13.777/2018 e outra nova corrente de peso que surge após a edição da referida lei.
Neste sentido, antes do advento do diploma legal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no âmbito do REsp 1.546.165/SP, chegou a reconhecer a multipropriedade como direito real, em flagrante ampliação do rol dos direitos reais constante do art. 1.225 do Código Civil (CC). É importante ressaltar que o referido artigo lista o que seria direito real, e é visto por muitos civilistas como rol sacro e inviolável, principalmente pela alegação de que a listagem é a melhor opção para garantir maior segurança jurídica (sob o aspecto material e registral) diante das condições brasileiras.
O decisum provocou celeuma, mas foi defendido por vários doutrinadores de peso, que explicam que as partes, por meio da liberdade negocial, podem criar direito real entre si. Nas palavras de CAVALCANTE (2019, p. 13), por criar direito real entre as partes, “o participante detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo”[7]. Na mesma corrente, CHAVES e ROSENVALD (2017, p. 280) defendiam[8], em obra anterior a lei n.º 13.777/2018, que:
A multipropriedade imobiliária é direito real. Alguns poderiam insinuar que a legislação é silente nesse particular. Porém, sabemos que o atributo da taxatividade dos direitos reais não lhes insere na redoma da tipicidade. Assim, é plenamente possível o exercício de um espaço de autonomia negocial para que os particulares possam ajustar diferentes contornos ao direito de propriedade conforme as variações e demandas do tráfico jurídico. Ademais, no câmbio do direito de propriedade para os “direitos de propriedades”, veicula-se a noção de que a propriedade é dotada de plasticidade, podendo transitar entre um conteúdo jurídico máximo e um mínimo, traduzido este como o essencial para que o conteúdo do domínio se mantenha com o seu titular.
Este entendimento, apesar de filiar nomes de peso como o próprio TEPEDINO, foi muito contestado à época e continua sendo até hoje. Mas essa boa “luta doutrinária” tende a acabar com o que dispõe a nova lei, que trouxe a multipropriedade não como direito real de propriedade em si, mas sim como regime jurídico pertencente à seara condominial.
Conforme esclarece OLIVEIRA, era compreensível a lógica jurídica adotada pelo STJ, veementemente protetiva e garantidora de segurança jurídica para um instituto que, até então, era vulnerável. A multipropriedade, àquela época, se revestia por meio de contratos atípicos. Segundo o autor, a questão encontra-se vencida pois, por força dos artigos acrescidos ao CC, a multipropriedade assumiu a forma de condomínio[9].
Dessa forma, este último raciocínio possui corpo para se tornar a pedra-mestra da nova posição doutrinária e jurisprudencial, principalmente pelo fato de que o já mencionado art. 1.358-C do CC é expresso em afirmar a multipropriedade como regime (e não como direito real em si) de condomínio.
Trazer a multipropriedade como regime de condomínio tem repercussões práticas imediatas no tocante à aplicação de sistemas normativos e sua harmonização com os demais diplomas. Dessa forma, é importante compreender que há aplicação subsidiária de todas as regras de condomínio, tanto aquelas que constam do Código Civil quanto as que estão em legislações esparsas. Ainda, há quem advogue pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em determinadas relações jurídicas[10].
O operador do Direito que busca lidar com o instituto da multipropriedade deve buscar visão ampla das disposições civilistas, não restringindo sua análise ao que foi adicionado pela lei n.º 13.777/2018. A perspectiva ampla é fundamental para contextualizar o instituto da maior e melhor forma possível, sabendo aplicar as disposições principais e subsidiárias da forma correta.
Assim, após analisada a natureza jurídica do instituto, é necessário começar a dissecar seus pontos mais importantes.
3. COMO FUNCIONA A MULTIPROPRIEDADE?
3.1 ENTENDENDO AS FRAÇÕES DE TEMPO
Como foi dito, a multipropriedade em imóveis parte do pressuposto de que o imóvel-base será virtualmente fragmentado[11] em unidades periódicas, com medidas definidas por sua fração de tempo[12]. Assemelhando-se ao regime do condomínio edilício, cada quota de fração de tempo equivale a uma fração ideal, inclusive para deliberações internas. Essa divisão traz repercussões na órbita do direito civil e do direito registral.
Primeiramente, na seara civilista, é importante destacar que o §1º do art. 1.358-E do CC, estabelece que a fração de tempo não poderá ser inferior a 7 (sete) dias. Assim, a primeira conclusão que o leitor deve ter em mente é a de que o imóvel em regime de multipropriedade terá, no máximo, 52 unidades periódicas (pois em um ano existem cinquenta e duas semanas).
A sugestão de tempo mínimo trazida pela lei parece coadunar com a função social da multipropriedade, principalmente enquanto garantidora do lazer e da dignidade humana, haja vista ser um prazo mínimo razoável para que o sujeito consiga desfrutar dos benefícios de sua propriedade imobiliária e tudo o que ela tem, ainda que indiretamente, para oferecer.
Não se pode implicar, contudo, que este tempo mínimo vire regra. O ato que institui a multipropriedade pode adotar uma fração de tempo maior, de acordo com a dinâmica econômica do local em que o imóvel está situado, e levando sempre em consideração a capacidade aquisitiva do público-alvo (obviamente, partindo do pressuposto de que se trata de uma abordagem mercadológica). Caso a multipropriedade tenha sido instituída com outros fins que não econômicos (por vontade entre particulares), os critérios serão diferentes.
Outra conclusão imediata que deve ser evitada é a de que, por possuir no máximo 52 unidades periódicas, o imóvel-base virá a ter 52 pessoas diferentes como multiproprietários. Em verdade, uma mesma pessoa física ou jurídica pode vir a adquirir mais de uma unidade periódica, sem que isso importe em ilegalidade (art. 1.358-E, §2°, CC). Mas sobre tal tema, cabe ressalva: o art. 1.358-H do CC é claro em permitir que o instrumento que dá origem a multipropriedade crie limites de fração para uma mesma pessoa.
A finalidade jurídica por trás deste possível limite é simples: evitar o abuso econômico por parte de um dos multiproprietários. Para entender tal afirmação, basta inferir que se um sujeito possui 5 (cinco) unidades periódicas, ele seria detentor de 5 quotas de fração ideal no momento das deliberações internas. Assim, numa multipropriedade cujo imóvel-base foi dividido em 8 unidades periódicas, o sujeito que possui 5 delas detém a maioria em qualquer deliberação, inclusive para impor aos demais multiproprietários aquisições ou manutenções economicamente onerosas.
É de suma importância ressaltar o que a lei determina no art. 1.358-C, parágrafo único, pois se todas as frações de tempo forem do mesmo multiproprietário, a multipropriedade permanecerá existindo. Isto se deve ao fato de que cada unidade periódica constitui direito real de propriedade periódico, em vínculo que une o multiproprietário à unidade, estando todas elas subordinadas a algo maior: um regime jurídico condominial, com repercussões cíveis e registrais. Assim, a multipropriedade continuará a existir ainda que somente uma pessoa seja proprietária de todas as unidades periódicas.
Ainda sobre as frações de tempo, na seara registral há algo peculiar: cada fração de tempo possuirá uma matrícula individualizada. Neste sentido, com clareza trata BLASKESI (2019, p. 41): “uma vez registrado na matrícula-mãe, abrem-se matrículas individuais para cada fração de tempo desse novo direito real, onde consta, de forma específica, quando e como pode ser usado”[13]. A matrícula-mãe a que se refere a autora é a do imóvel-base, e as demais dela decorrem de acordo com cada fração de tempo, que é considerada como uma unidade imobiliária. Essa alteração promovida pela lei n.º 13.777/2018 na Lei de Registros Públicos (LRP) também possui uma importante repercussão tributária: o município poderá realizar a inscrição individualizada de cada unidade junto ao cadastro municipal (art. 176, §11), para fins de cobrança de IPTU e ITR.
Por força dessa disposição, portanto, o multiproprietário somente pagará o IPTU referente à sua unidade periódica, afastando-se qualquer hipótese de solidariedade tributária, onde o Fisco poderia alegar que o multiproprietário deveria ser cobrado pela dívida de todo o imóvel-base. Qualquer argumento em contrário a esta conclusão encontra claro óbice, pois a unidade periódica é vista como imóvel autônomo, onde o multiproprietário exerce seu direito real de propriedade periódico e, portanto, somente praticará o fato-gerador do IPTU relativo à sua unidade periódica.
Ainda na seara tributária, é importante ressalvar que caso um dos multiproprietários esteja devendo ao Fisco, sofrerá a sanção somente em sua unidade periódica, restando os demais resguardados de qualquer prejuízo. Isto se dá ao fato de que a restrição acontece, como se explicou, somente sobre o direito real de propriedade do imóvel periódico.
3.2 COMO AS FRAÇÕES DE TEMPO PODEM SER UTILIZADAS?
Para entender a forma de utilização das frações de tempo, é importante saber que o art. 1.358-E do CC deixa claro que a fração em si é indivisível, ou seja, se o sujeito A é dono de fração equivalente a 15 dias seguidos no mês de janeiro (e tal informação deve constar na matrícula da unidade), não poderá solicitar a divisão desta unidade, por meio do desfazimento da matrícula relativa a esta fração, e criar, em seguida, três outras matrículas, com 5 dias cada, para desfrutar parte em janeiro, parte em maio e parte em julho. Assim, deve ser respeitado o que a matrícula da unidade periódica diz.
Não se pode confundir, contudo, o caso narrado com a hipótese do uso intercalado da fração (este, por sua vez, admitido por lei). O Código Civil, em seu art. 1.358-E, §1º, diz que a fração pode ser utilizada de forma seguida ou intercalada. É seguro que o uso intercalado conste expressamente da matrícula da unidade periódica, bem como seja pormenorizado na convenção da multipropriedade. Neste caso, portanto, a fração do sujeito poderia comportar 15 dias intercalados, a serem gozados de acordo com o que se acordou no instrumento apropriado.
Ainda, o referido artigo traz em seus incisos a forma pela qual a fração pode ser utilizada. A primeira modalidade, chamada de período fixo e determinado, é quando o sujeito sempre goza do mesmo período em cada ano (assim, se o sujeito A possui 10 dias na primeira metade de maio, assim se repetirá ano a ano). A segunda modalidade é a flutuante – aqui, o critério irá ser decidido por procedimento objetivo e isonômico entre os multiproprietários, e poderá ter repercussões práticas (ex.: em anos pares, o sujeito A possuirá 10 dias na primeira metade de maio; em anos ímpares, os 10 dias serão aproveitados na primeira semana de setembro). Por fim, a última modalidade é a mista, que poderá combinar os dois sistemas anteriores.
3.3 FRAÇÕES DE MANUTENÇÃO PERIÓDICA
Por ser constantemente utilizado, há necessidade de que o imóvel-base seja constantemente preservado. Por isso, achou o legislador prudente em dispor de fração específica para manutenção das instalações, equipamentos e mobiliário do imóvel-base.
Esta fração, comumente chamada de fração de manutenção periódica, tem previsão no art. 1.358-N do CC, e ela poderá ser atribuída ao instituidor da multipropriedade ou aos multiproprietários, de forma proporcional às suas frações. No primeiro caso (atribuída ao instituidor), possuirá matrícula própria. No segundo (atribuída aos multiproprietários), contudo, não terá matrícula própria e fará parte das demais unidades, em proporção de cada fração.
Assim, por exemplo, o condomínio em multipropriedade pode definir que os reparos serão sempre feitos em dois momentos: no primeiro dia de maio e no último dia de novembro em cada ano, o que dá a fração de 48h. Neste caso, atribuída ao instituidor da multipropriedade, a fração terá matrícula própria e este prazo sempre será respeitado.
Na segunda hipótese, por sua vez, poderia ser feito diferente: suponhamos que o imóvel-base seja dividido entre 48 multiproprietários, que abdicam sempre de 1 (uma) hora no último dia de sua estadia. Durante essa hora, é feita a limpeza e vistoria da unidade. Se todos fizerem isto, teremos as mesmas 48h, diluídas nas frações dos multiproprietários. Deste jeito, a fração de manutenção não possuiria matrícula própria.
Este último caso é uma exceção ao princípio de que a fração de tempo não pode ser dividida, pois não se trata aqui da fração de uso convencional da unidade periódica (enquanto exercício do direito real de propriedade periódico), mas sim de fração que é essencial ao uso e existência de todo o regime jurídico de multipropriedade que recai sobre o imóvel.
Ainda, é salutar lembrar que manter o período mínimo de 7 dias para uma fração destinada a manutenção e reparos pode ser, a depender do tamanho do imóvel-base, desrazoável. Desta forma, pela perspectiva da inteligência jurídica por trás desta fração, é totalmente compreensível que este período seja fragmentado ou seja inferior a 7 dias[14].
É importante notar, ainda, que esta fração não é obrigatória, pois a previsão legal fala em “poderá”, mas recomenda-se que os multiproprietários leiam-na como “deverá”.
Ainda, pode surgir a situação onde há necessidade de realizar reparo urgente. Os reparos ou obras urgentes partem do pressuposto de que a necessidade de realização do serviço corretivo é imediata. Neste caso, o art. 1.358-J, IX do CC é claro em colocar como um dos deveres do multiproprietário a permissão de realização de obras ou reparos urgentes. Dessa forma, sendo necessário fazer tais serviços, o multiproprietário não pode criar óbices ou entraves, ainda mais pela consciência coletiva de cuidado e preservação que é inerente ao condomínio em multipropriedade.
Surge, contudo, um problema: justamente pela não-previsibilidade do fato urgente, pode ter havido prejuízo para algum multiproprietário, que teve de ceder parte de sua unidade periódica para que as obras fossem realizadas. A lei, por sua vez, não dispõe sobre nenhuma forma de compensação ou reparação pelo dano sofrido pelo multiproprietário. Neste diapasão, OLIVEIRA traz dois argumentos[15] que permeiam tal problemática.
O primeiro deles é o de que o risco existe para todos os multiproprietários, razão pela qual não lhe caberia compensação alguma. O segundo é o de que cabe a compensação por meio de indenização em pecúnia, custeada pelos demais multiproprietários. O autor sugere, inclusive, que a convenção poderia prever alguns valores como referência a título de indenização.
Assim, ainda se constrói qual o melhor posicionamento nessa situação fática. Em virtude da novidade legislativa, as lides envolvendo o possível problema ainda surgirão na realidade, o que oportunizará o pronunciamento do Judiciário sobre o tema. Analisando objetivamente, contudo, é inegável que existe o dano nesta situação, e por mais que todos os multiproprietários estejam sujeitos ao imprevisível, o mero reparo da obra não tem o condão de reparar o prejuízo pela não utilização da unidade periódica, razão pela qual é necessária, de alguma forma, uma compensação para o prejudicado.
4. INSTITUIÇÃO DA MULTIPROPRIEDADE
A multipropriedade pode ser instituída de duas maneiras, ambas trazidos pelo Código Civil em seu art. 1.358-F: por ato entre vivos ou fruto de testamento. Independente de como tenha sido, este ato necessariamente será registrado no cartório de Registro de Imóveis competente, e nele deverá conter algumas das características essenciais para a existência e funcionamento da multipropriedade, como a pormenorização de cada fração de tempo, com suas respectivas durações.
No primeiro caso disposto em lei, ela é instituída por ato entre vivos, ou seja, pode tanto nascer da liberdade volitiva de uma pessoa que é proprietária do imóvel-base e deseja instituir o regime de multipropriedade como meio de auferir pecúnia, bem como da vontade de duas ou mais pessoas, que veem neste regime jurídico uma forma melhor de conciliar seus interesses econômicos e/ou de lazer.
Dessa forma, quando a multipropriedade é feita por ato entre vivos, é necessário considerar o que a lei exige quanto à formalidade do ato instituidor e dos respectivos atos de transmissão da propriedade. Isto porque, conforme sinaliza grande parte dos doutrinadores, seria imperiosa a aplicação do art. 108 do Código Civil, de forma que o instrumento instituidor, para imóveis cujo valor supere a 30 salários-mínimos, deve ser público[16]. Outros autores alertam, contudo, que para alguns atos, a exemplo da transmissão do direito de propriedade, não haveria exigência restrita da forma, sendo de faculdade das partes, nos termos do inciso XI, do art. 1.358-Q do Código Civil, como explica[17] BLASKESI:
Na dicção do citado artigo, “a transferência do direito de multipropriedade e a sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil”, deixando entrever a dúvida: A forma do instrumento de transmissão dessa copropriedade se dará por instrumento público ou, como no caso desse instituto, a lei não determinou a forma específica, dar-se-á também por instrumento particular?
O art. 109 do Código Civil preconiza que “o negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato”.
A previsão da exigibilidade da forma pública é encontrada no art. 108, ao rezar que, “não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
Entretanto, a dúvida se instala no momento em que o legislador, na própria Lei do Condomínio em Multipropriedade, optou por determinar, expressamente, quando tratou do regimento interno, que “o regimento interno poderá ser instituído por escritura pública ou por instrumento particular (parágrafo único, XI, art. 1.358-Q)”. O fato de ter facultado a forma (particular ou pública) em um dos instrumentos que integrarão o condomínio em multipropriedade, leva a presumir que, não tendo exigido ou estipulado para os demais, será à escolha dos contratantes.
Dentre os dois posicionamentos, contudo, parece ser mais cauteloso e prudente prezar por aquele que segue a regra geral do sistema civilista, e isto é claro no art. 108 do CC. A segurança jurídica e registral trazida pela confecção do instrumento instituidor ou transmissor na forma pública favorece para que não haja máculas na lógica de oponibilidade erga omnes que é inerente ao sistema de direitos reais.
É importante, ainda, verificar o caso da instituição via testamento. Isso porque nem sempre o testamento foi feito com a consultoria de alguém especializado no assunto (diferentemente de quando a multipropriedade é feita por ato entre vivos, onde os mesmos geralmente buscam a assessoria adequada para criar o regime), de forma que poderia se alegar que a instituição da multipropriedade pela via testamentária, caso não feita necessariamente nos termos da lei civil, estaria inviabilizada.
Adotando, contudo, uma interpretação finalística, o bom-senso e a razoabilidade, pode-se inferir que, no caso de instituição via testamento, certos requisitos podem ser preenchidos pelos sucessores, principalmente no tocante ao preenchimento dos atos formais e procedimentais necessários para a existência da multipropriedade.
Pensar de forma diferente poderia ofender duplamente ao que prevê a lei, haja vista que, por um lado, se desrespeita a expressão de vontade estabelecida na via testamentária (que, por sua vez, deve ao menos ser clara, se propondo estabelecer um regime de multipropriedade, indicando ao menos as unidades periódicas), e por outro, ainda, se desrespeita completamente a finalidade jurídica do instituto da multipropriedade.
Assim, bastando que o testamento traga as linhas gerais da intenção de existência da multipropriedade, traçando ao menos algum esboço de como seria a divisão das unidades periódicas, não se vê óbice para que os sucessores suplementem e concretizem a vontade externada na via testamentária.
O instrumento que institui a multipropriedade poderá conter várias disposições fruto da liberdade negocial entre as partes, mas algumas delas deverão necessariamente constar por expressa determinação legal, conforme explicitam os arts. 1.358-G e 1.358-H do CC. Recomenda-se ao leitor o conhecimento do teor dos artigos, que são de fácil entendimento e autoexplicativos.
É de se notar, contudo, que para o operador do Direito ou conhecedor do teor das convenções condominiais, muitas das exigências feitas pelos citados artigos são análogas ou extremamente semelhantes ao que já se tem na prática. E não poderia ser diferente, haja vista se estar tratando de regime jurídico pertencente ao sistema de condomínios. Assim, trará em seu bojo disposições gerais sobre deveres e obrigações, limites de pessoas, regras de acesso, fundos de reserva e disposições para imprevisibilidades, bem como possíveis multas.
Por fim, é importante ressaltar que a instituição da multipropriedade pode ser vedada em condomínios edilícios. Para tanto, basta que a convenção do condomínio edilício ou seus instrumentos instituidores congêneres traga proibição expressa. Outra forma, ainda, é pela deliberação da maioria absoluta dos condôminos (que também têm poder para, posteriormente, passar a permitir o regime da multipropriedade).
5. QUAIS SÃO OS DIREITOS E AS OBRIGAÇÕES DO MULTIPROPRIETÁRIO?
Antes de iniciar a discussão sobre os direitos e obrigações do multiproprietário, é importante ressaltar que os arts. 1.358-I e 1.358-J do CC trazem rol mínimo do referido tema, ou seja, as partes possuem liberdade negocial para criar outros direitos e obrigações, desde que respeitem a harmonização com a legislação constitucional e civilista aplicável ao regime da multipropriedade. Assim, as obrigações e direitos contidos nos artigos são objetos que deverão ser observados pelas partes, sem prejuízo das demais que elas convencionarem.
Ainda, recomenda-se que o leitor faça análise atenta dos dispositivos, que terão seus pontos principais abordados, sem a pretensão exaustiva, principalmente para não tornar o estudo cansativo.
Quanto aos direitos, os primeiros três incisos do art. 1.358-I dão alguns fatores importantes para a existência da propriedade plena, a saber: uso, gozo, cessão e alienação.
Em relação ao uso e gozo, serão limitados à fração de tempo, e abarcam não só a estrutura física do imóvel-base em si, como quaisquer mobiliários que dela façam parte. É salutar notar os principais traços sobre estes direitos, pois podem ser a razão pela qual o multiproprietário adquiriu sua unidade periódica. Assim, comunicam-se com este direito algumas obrigações impostas aos demais multiproprietários e à administração do condomínio em multipropriedade, pois se não houver o cuidado e cautela para a preservação de toda a estrutura, resta flagrantemente atingido um direito basilar do multiproprietário.
Neste diapasão, outro direito de exercício sobre a multipropriedade é o da cessão da fração, seja por locação, seja por comodato. Isso decorre do fato de que nem sempre o sujeito que possui a unidade periódica tem o desejo de utilizá-la para seu lazer. Poderá o multiproprietário, portanto, quando bem entender, deixar de usar de sua fração em determinado momento para locá-la a outra pessoa, também pelo tempo que julgar necessário.
Assim, permite o dispositivo que haja a alienação do direito real de propriedade do multiproprietário sobre sua unidade[18]. Esta alienação pode se dar por ato entre vivos ou por causa de morte, a título gratuito ou oneroso. Ainda, permite-se que a unidade seja onerada. O multiproprietário, contudo, por expressa previsão legal, deve comunicar ao administrador sobre a alienação ou oneração que foi feita sobre a unidade periódica.
É fundamental abrir um parêntese para tratar do que o §2º do art. 1.358-L traz, pois ele torna o adquirente solidariamente responsável com o alienante por certas obrigações não cumpridas (constando do §5º do art. 1.358-J, estas obrigações foram vedadas pelo Presidente da República, mas não impedem interpretações abertas tendentes a prejudicar o adquirente). A única forma do adquirente não ser solidariamente responsável com débitos existentes pelo alienante é se aquele exigir deste uma declaração de inexistência de débitos. Por conta disso, recomenda-se esta cautela aos operadores do direito que forem auxiliar procedimentos de compra e venda de unidades periódicas em multipropriedade.
Dessa forma, com o exercício do direito de venda ou utilização da unidade periódica como objeto de direitos reais sobre a coisa alheia (a exemplo da alienação fiduciária), há o dever de comunicação pelo multiproprietário ao administrador, que deverá tomar as providências administrativas cabíveis.
O referido artigo trata, ainda, de outro direito básico para qualquer regime condominial, que é o de participação nas deliberações feitas por todos os multiproprietários. Para tanto, poderá votar pessoalmente ou por procurador, e o artigo põe como condição essencial o adimplemento do sujeito com as obrigações condominiais. Assim, a princípio, se não estiver pagando aquilo que o condomínio o impõe, perderá sua prerrogativa de votar.
O peso do voto, contudo, levará em conta à quota de sua fração de tempo. Assim, por exemplo, caso o mesmo imóvel-base possua quatro multiproprietários com igual fração temporal, cada voto equivalerá a 25% ou ¼ do total.
Todavia, caso a multipropriedade faça parte de condomínio edilício, a dinâmica de votação deverá ser vista com cautela. Isto porque, no âmbito de multipropriedade que funcione em regime edilício existirão duas deliberações: aquelas feitas para o próprio condomínio edilício em si, e aquelas feitas somente para a unidade que está em multipropriedade.
Para não confundir o leitor, eis um exemplo: imagine que a Torre Celeste, no Rio de Janeiro, é prédio residencial que funcione em regime de condomínio edilício, e possua 10 andares. Em cada andar, um apartamento. Após obter aprovação dos demais condôminos, o proprietário do apartamento do 1º andar resolve por instituir, em sua unidade, o regime de multipropriedade. Digamos, ainda, que a unidade foi virtualmente fracionada em três unidades periódicas, que de pronto foram adquiridas por três pessoas.
Assim, estas três pessoas, enquanto multiproprietários da unidade do 1º andar, podem decidir por realizar uma assembleia interna para deliberar sobre a aquisição de novo mobiliário para unidade. Nesta assembleia, como somente é de interesse dos três sujeitos, cada voto equivalerá a 33%, ou 1/3 (considerando que suas frações sejam iguais).
Mas não se pode esquecer, contudo, que existem as assembleias que dizem respeito a toda Torre Celeste. Neste caso, pelo prédio possuir 10 apartamentos de iguais proporções, cada voto equivalerá a 1/10 do total. Com o apartamento do 1º andar, contudo, não funcionará desta forma. O voto desta unidade poderá ser menor do que 1/10, pois ele terá seu peso repartido entre os três multiproprietários, respeitando proporcionalmente sua quota de fração de tempo. Assim, caso os três votem em consenso, o peso será 1/10. Contudo, caso um deles não vote com os outros dois, este 1/10 perderá 33% em seu peso (neste ponto, não se exige do leitor a habilidade matemática, mas somente a noção de que existe uma dinâmica diferente dentro das unidades que possuem o regime de multipropriedade em âmbito de condomínio edilício).
Evitando-se o aprofundamento matemático, razão pela qual muitos resolveram por adentrar na seara do Direito, segue-se para os estudos das obrigações do multiproprietário.
O art. 1.358-J traz como primeiro inciso a obrigação corriqueira e básica de qualquer relação negocial: o pagamento[19]. Neste caso, o multiproprietário deve pagar não só a contribuição condominial da multipropriedade (útil para conservação e manutenção), como também, caso seja aplicável, a do condomínio edilício. Ainda, o inciso se previne e diz que não adianta o multiproprietário fazer renúncia do uso ou gozo de determinado mobiliário ou instalação, sendo obrigado a pagar da mesma forma.
Assim, não pode o sujeito alegar que não usou o home theater de sua unidade, requerendo um possível desconto proporcional. Não poderá, tampouco, alegar que sempre usa as escadas e dispensa o elevador. Somente pela disponibilização das instalações e do mobiliário, já será o multiproprietário obrigado a adimplir com as contribuições, sob pena, inclusive, de não poder deliberar nas convenções, conforme foi visto anteriormente.
Em seguida, obriga o artigo que o multiproprietário responda pelos danos que causar ao imóvel, suas instalações, equipamentos e mobiliário. Ainda, amplia o inciso a responsabilidade do multiproprietário, tornando-o responsável pelos danos que seus acompanhantes, convidados ou autorizados causarem. A responsabilidade aqui é objetiva, respondendo ainda que o dano tenha sido causado com culpa. Escusa-se, contudo, caso o dano seja oriundo do desgaste natural das coisas, em decorrência do uso recorrente. Neste caso, não há dever de indenizar. Dessa forma, deve o multiproprietário prezar pela responsabilidade e consciência no uso da estrutura principal do imóvel-base, bem como do mobiliário que dela faz parte.
Ainda na seara da conservação e preservação da estrutura física e do mobiliário, o inciso II do art. 1.358-J dá ao multiproprietário o dever de comunicar ao administrador quaisquer defeitos, avarias e vícios dos quais tiver conhecimento durante sua utilização. Esta obrigação é fundamental, primeiramente porque permite que o condomínio comece a prever possíveis gastos com consertos, bem como cria um histórico de deterioração de certo bem. Desprezar esse dever pode gerar gastos imprevisíveis, e a depender do problema (a exemplo de um defeito hidráulico), pode fazer com que o prejuízo tome proporções maiores.
Assim, caso a despesa decorra do uso normal e do desgaste natural do bem ou do imóvel, será de responsabilidade de todos os multiproprietários. Contudo, será de responsabilidade exclusiva do multiproprietário caso tenha havido uso anormal por parte dele ou de quem ele tenha autorizado, sem prejuízo de multa.
Os demais deveres muito dizem a ver com o uso consciente, responsável e zeloso da unidade, devendo o multiproprietário manter o imóvel em boas condições, e utilizá-lo para seu destino e natureza (a título de exemplo, não poderia o multiproprietário que tem como sustento a pintura de telas, utilizar de sua fração em unidade periódica residencial para transformar o ambiente em uma galeria, onde venderia suas pinturas).
Sobre o uso consciente, o multiproprietário deve respeitar também o prazo de estadia, de entrada e de saída, cooperando inclusive para possíveis períodos de manutenção que possam acontecer durante sua fração (permitindo, caso necessário, obras urgentes). Caso não desocupe o imóvel a tempo, poderá ser penalizado com multa diária (e aí reside, mais uma vez, a importância da convenção do condomínio em multipropriedade conter, em seu bojo, disposições expressas sobre as multas, inclusive sobre sua progressividade).
Para finalizar as disposições sobre obrigações e direitos, é importante ressaltar que o art. 1.358-K do CC equipara à condição de multiproprietário os promitentes compradores e cessionários de direitos relativos a cada fração de tempo.
6. COMO A MULTIPROPRIEDADE É ADMINISTRADA?
A multipropriedade, como já se viu, não é tão simples como muitos pensam ser. Uma figura apta a administrar é necessária, principalmente para mediar tantos interesses, muitas vezes exercidos por diversas pessoas. Assim, o instrumento de instituição ou a convenção do condomínio em multipropriedade (ou, na falta disto, assembleia geral dos condôminos) deve indicar um administrador. Não há, contudo, vedação para que o condomínio em multipropriedade adote, em conjunto com o administrador, um síndico, desde que suas funções sejam repartidas.
Recomendo ao leitor a leitura do art. 1.358-M do Código Civil, que trata das principais funções do administrador, que giram em torno da gestão e coordenação das unidades periódicas, de seus usuários e de seus mobiliários.
Caso o condomínio em multipropriedade tenha existência no âmbito de condomínio edilício, o art. 1.358-R do CC faz exigência expressa de que haja, necessariamente, um administrador profissional, que cuidará de todas as disposições internas e administrativas referentes às unidades em multipropriedade, tendo o poder, inclusive, de fazer pequenas alterações regimentais.
Neste caso, o administrador profissional deve coexistir com o síndico do condomínio edilício. Em verdade, com as devidas alterações no regimento interno e nas convenções condominiais, não há motivo para choque entre as duas figuras, haja vista restar ao administrador a gestão das unidades em multipropriedade, no que tange ao respeito dos direitos e obrigações dos multiproprietários (bem como das atividades administrativas acessórias inerentes ao sistema).
Muito se discute sobre o termo “administrador profissional”. Seria, de fato, alguém com qualificação técnica e inscrição no órgão de classe? Em lúcida argumentação, OLIVEIRA esclarece[20] que:
E mais: esse administrador terá de ser um administrador profissional, assim entendido aquele com inscrição no pertinente Conselho Regional de Administração (art. 1.358-R, CC). Entendemos que o administrador pode ser também uma pessoa jurídica dedicada a essa atividade, pois a lei não obriga que se trate de uma pessoa natural. Ademais, o administrador pode ou não ser um prestador de serviço de hospedagem (art. 1.358-R, § 5º, CC).
O mesmo autor, ainda, já se pronunciou por entender inconstitucional essa disposição, conforme expressa: “De qualquer forma, entendemos pela inconstitucionalidade do dispositivo ao exigir um administrador profissional por ofensa à liberdade profissional e à livre iniciativa”[21].
Nada melhor, portanto, do que esperar a movimentação jurisprudencial com o tema, que certamente suscitará dúvidas. Adotando-se, contudo, o pressuposto de que ser “profissional” em algo não necessariamente implica na formação técnica, e sim na aptidão prática, a visão de ofensa à livre iniciativa pode tomar corpo.
Por fim, cabe esclarecer que em caso de demandas judiciais, o condomínio em multipropriedade poderá ser representado em juízo por seu administrador. Ao administrador, portanto, são dadas as atribuições de gestão da multipropriedade e das pessoas que dela fazem parte.
7. CONCLUSÃO
Com base em tudo que foi visto, onde se tentou abordar os principais pontos trazidos pela lei n.º 13. 777/2018, o regime do condomínio em multipropriedade possui certas peculiaridades, principalmente sobre a forma pela qual se exerce a propriedade. É inevitável, contudo, dissociar este regime de seu “irmão” jurídico, que é o condomínio edilício, razão pela qual muitos institutos são assemelhados entre si, inclusive com a aplicação subsidiária e harmonização das mesmas normas civilistas.
Dessa forma, levando em consideração que o tema ainda é extremamente novo para o Direito, ainda se espera as primeiras impressões, decisões e entendimentos jurisprudenciais sobre o tema, que serão essenciais para que a doutrina e o próprio instituto do condomínio em multipropriedade possa encontrar sua melhor aplicação no seio social.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLASKESI, Eliane. Multipropriedade ou Time-Sharing: Primeiras Impressões. Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano IX, n.º 49, Jan-Fev de 2019, pp. 30-42.
CASTRO, Rodrigo de; MIRANDA, Gisela Alves de Melo; OLIVEIRA, Andreia Maria de. Multipropriedade. Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano VIII, n.º 48, Nov-Dez de 2018, pp. 9-14.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Breves Comentários à Lei nº 13.777/2018 (Condomínio em Multipropriedade). Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano IX, n.º 49, Jan-Fev de 2019, pp. 9-25.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 4: direito das coisas – 31. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais – 13. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Análise detalhada da multipropriedade no Brasil após a Lei nº 13.777/2018: pontos polêmicos e aspectos de Registros Públicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2019 (Texto para Discussão nº 255). Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Acesso em 26 de março de 2019.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Considerações sobre a recente Lei da Multipropriedade ou da Time Sharing (Lei nº 13.777/2018): principais aspectos de Direito Civil, de Processo Civil e de Registros Púbicos. Disponível em: <https://bit.ly/2UrtefC>. Acesso: 02 de abril de 2019.
SANTOS, Aline Cecília Alexandrina Bezerra dos; OLIVEIRA, Catarina de Almeida de. Multipropriedade Imobiliária e a Concretização da Função Social na Garantia do Acesso à Moradia de Lazer. Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano VIII, n.º 48, Nov-Dez de 2018, pp. 15-35.
TEPEDINO, Gustavo. Aspectos atuais da multipropriedade imobiliária. In: Fábio de Oliveira Azevedo e Marco Aurélio Bezerra de Melo (coord.). Direito Imobiliário. São Paulo: Atlas, 2015 (disponível em: <https://bit.ly/2WLG8Cn>).