A DISCUSSÃO SOBRE A NOVA HIPÓTESE DE LEGITIMA DEFESA A FAVOR DOS POLICIAIS

23/09/2019 às 20:40
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE O PROJETO DE LEGÍTIMA DEFESA A FAVOR DOS POLICIAIS E UM RECENTE CASO CONCRETO.

 A DISCUSSÃO SOBRE A NOVA HIPÓTESE DE LEGITIMA DEFESA A FAVOR DOS POLICIAIS

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

A morte da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, assassinada com um tiro nas costas quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, aumenta as dificuldades de aprovação de um dos pontos mais polêmicos do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro. Segundo familiares, a menina foi morta por um disparo feito por policial militar. O grupo de trabalho da Câmara, encarregado de analisar o pacote de medidas, deve votar na terça-feira projeto sobre excludente de ilicitude , proposta que pode livrar de qualquer punição policiais acusados de agredir ou até mesmo matar em determinadas situações.

Segundo o relator do texto, deputado Capitão Augusto (PSL-SP), o projeto deve ser rejeitado pelo grupo, formado por uma maioria contrária ao pacote de Moro.

— Esse projeto não passa no grupo de trabalho. Vai ser rejeitado — disse o deputado ao GLOBO.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), também se pronunciou sobre o assassinato da menina. Para ele, “os casos de mortes resultantes de ações policiais nas favelas são alarmantes”, lembrando que outras quatro crianças foram vítimas este ano de bala perdida no Rio. No Twitter, ele afirmou que uma “política de segurança pública eficiente deve se pautar pelo respeito à dignidade e à vida humana”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Helder Salomão (PT-ES), não poupou críticas à ação da PM. Segundo ele, o caso não pode ficar impune. O político destaca que é preciso combater a criminalidade, mas não da forma vista no Rio:

—A gente não pode assistir à morte de uma criança e achar que isso é normal. Avalio que tem um erro na orientação que está sendo dada. Está havendo um aumento da letalidade no Rio. Vamos acionar todos os órgãos responsáveis. Este modelo de segurança pública não combate apenas o crime.

Por outro lado, o vice-presidente da República defendeu os policiais. "É aquela história, é a palavra de um contra o outro. E você sabem muito bem que nessas regiões aí de favela se o cara disser que foi traficante que atirou (contra a criança), no dia seguinte ele está morto", disse Mourão em conversa com jornalistas nesta segunda-feira.

Pelo depoimento do vice-presidente, repete-se a lógica do maniqueísmo já apresentada durante a ditadura militar, quando havia o combate ao comunismo às custas das perdas das liberdades individuais.

Haveria de um lado as forças de segurança e de outro, um inimigo que deve ser combatido: os traficantes.

É a doutrina de segurança nacional que parte do binômio, repita-se, amigoxinimigo.

É o maniqueísmo a ferro e fogo.

Essa tese de triste memória tem origem na visão de Karl Schmitt:

Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo, topograficamente localizado nointerregnum entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas, tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado, a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo menos eventualmente combatente, isto é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é hostis, nãoinimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)

II - A LEGÍTIMA DEFESA

Exige-se para a legítima defesa:

1. repulsa a agressão atual ou iminente e injusta;

2. defesa de direito próprio ou alheio;

3. emprego moderado de meios necessários;

4. orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos.

São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o modo de repelir a agressão também pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame (RTJ 85/475-7). Nessa linha de pensar, o emprego de arma de fogo não para matar, mas para ferir ou para amedrontar (tiro fora do alvo) poderia ser considerado, em certas circunstâncias, o meio disponível, menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. Tal solução merece sérios debates numa sociedade que precisa combater o uso de armas.

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Há a análise da questão da proporcionalidade, na legítima defesa.

III – O DANO COLATERAL

Fala-se que houve um dano colateral com a investida feita por policiais que terminou na execução da menina Àgatha Vitoria Sales Félix.

Dano colateral é qualquer dano causado a objetos ou pessoas diferentes do alvo pretendido. É um termo frequentemente utilizado nos meios militares para definir a destruição de alvos civis ou morte acidental de não combatentes.

Em bem traçada síntese, Diogo Schelp(Àgatha não é vítima colateral do combate ao crime: é a vítima principal) disse:

"Dano colateral" ou "vítima colateral" são expressões que servem de eufemismo para a morte de civis ou não combatentes em um conflito armado. Atribui-se o início do uso desses conceitos às forças americanas durante a Guerra do Golfo, também conhecida como Primeira Guerra do Iraque, entre agosto de 1990 e março de 1991. Era com a expressão "collateral damage" que os militares americanos se referiam à morte de civis nos bombardeios a Bagdá, querendo dizer com isso que eles não eram os alvos dos ataques, "apenas" vítimas não intencionais.”

Ora, em sendo assim, seria o caso do Rio de Janeiro algo similar ao combate aos terroristas no mundo moderno?

No Estado democrático de direito isso não se coaduna. O Estado de direito não se coaduna a políticas de eliminação, tal qual ocorre nos casos acima citados.

Vem a pergunta: O que fará o Ministério Público diante desses casos?

Some-se a isso que os casos de mortes cometidas por policiais e acompanhadas pelo Monitor da Violência desde 2017 são os que menos caminham na polícia e na Justiça, apontam os dados publicados pelo G1 neste domingo (22). Das 1.195 mortes analisadas pelo Monitor da Violência, 67 ocorreram nestas circunstâncias (5,6% do total).

Os casos aconteceram de 21 a 27 de agosto de 2017. Como o levantamento leva em consideração apenas uma semana, os índices encontrados podem não representar com exatidão a realidade de todas as mortes violentas ocorridas no país no ano de 2017, mas são um indicativo de como é o andamento desses casos no sistema criminal brasileiro.

IV  - OS EXCESSOS DO PROJETO

O projeto do ministro Sérgio Moro desconhece os elementos componentes da legítima defesa; abre a porta à subjetividade, oferecendo licença para matar ao acrescentar parágrafo 2.º ao artigo 23, assim redigido: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Quebra-se, com essa proposta, o eixo central da figura da legítima defesa, consistente em agir para fazer cessar uma agressão, com ânimo de se defender. Na hipótese apresentada por Moro, acolhe-se como legítima defesa uma agressão desnecessária, fazendo dessa excludente um escudo protetor da violência policial, tendo por desculpa o medo, a surpresa ou a violenta emoção, da parte daquele que é especificamente treinado para enfrentar riscos, aliás, naturais ao seu mister.

Mas é inaceitável que pretenda escusar o excesso doloso, consistente em prolongar desnecessariamente uma reação com intenção direta de agredir, sob a escusa de se agir com medo ou surpresa, como bem acentuou o professor Miguel Reale Jr.em artigo para o Estado de São Paulo, em 7 de setembro do corrente ano.

De outra parte, amplia-se especificadamente para os policiais a situação de legítima defesa, ao prever que o agente de segurança pública age licitamente em face de risco iminente de conflito armado, para prevenir injusta e iminente agressão. Redundante a figura: risco iminente de conflito armado para prevenir iminente agressão, como ainda acentuou o ex-ministro Miguel Reale Jr.

Assim a proposta apresenta uma conduta imoderada, desproporcional, objetivando justificar essa nova hipótese de legítima defesa, como excludente.

A tudo isso se somaria a legitimação do famigerado auto de resistência, tão condenado na doutrina.

Essa proposta que escapa aos limites da sensatez é a do excludente de ilicitude, figura jurídica que Bolsonaro defende que seja aplicada a atos de violência praticados por policiais. Em caso de morte, em vez de o policial responder a processos que averiguarão se ele cometeu homicídio sem justificativa plausível, estará sempre preestabelecido que agiu em legítima defesa.

Não haverá investigação. Existe projeto com este objetivo, de autoria do próprio Bolsonaro, em tramitação na Câmara.

Não se desconhecem os riscos que policiais correm ao enfrentar bandidos em terreno perigoso, e muitas vezes usando armas melhores e mais poderosas que as suas. É certo que não se pode considerar normal esta situação. Deve-se enfrentá-la.

Seria legitimar o que chamam de auto de resistência, afrontando-se os limites da razoabilidade empírica. Leve-se ainda em conta a imprescindível aplicação do princípio da reserva de lei.

Urge rechaçar um projeto naquilo que cria para os policiais uma legítima defesa que não existe para os demais, e pode albergar uma proteção excessiva aos policiais.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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