Análise das elementares “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima” do delito de violação mediante fraude.

26/09/2019 às 11:40
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Passados dez anos da alteração realizada no artigo 215 do Código Penal pela Lei 12.015/2009, cremos pertinente uma atualização desse ponto do ensaio “Da posse à violação sexual mediante fraude. O novo alcance do art. 215 do Código Penal” publicado em 2009

No ano de 2009, quando foi editada Lei 12.015/2009, que realizou importante reforma dos crimes sexuais no Código Penal, escrevemos artigo intitulado “Da posse à violação sexual mediante fraude. O novo alcance do art. 215. do Código Penal”1, analisando a repercussão das mudanças textuais no bojo do delito ocorrida naquela oportunidade.

Com relação às elementares encontradas na segunda parte do caput do artigo 2152, a saber: "outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima", registramos nossa curiosidade sobre o alcance que a norma receberia com o decorrer do tempo.

Pois bem, passados dez anos da alteração procedida, cremos pertinente uma atualização desse ponto do texto original, como se verá a seguir.

Houve, no início da vigência do texto reformado em comento, uma tese polêmica no sentido de que a antiga alínea c do art. 224, hipótese de violência imprópria em que a vítima "não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência", passou a fazer parte do caput do art. 215, sob o argumento de subsunção nas elementares "outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima"3.

A prevalecer esse entendimento, a parte final do § 1º do art. 217-A perderia sua eficácia, já que ela reproduz exatamente o mesmo conteúdo da antiga alínea c do revogado artigo 224. Há que se definir, então, o alcance das elementares introduzidas no caput do art. 215, a fim de que possam coexistir com a mencionada hipótese de estupro de vulnerável.

Os critérios distintivos mais importantes entre o § 1º do art. 217-A e a parte final do art. 215, ao que parece, estão na possibilidade de oferecer resistência e na consensualidade. Segundo Luiz Flávio Gomes (2001, p. 131), há duas formas de se cometer crime de abuso sexual nec voluntarium nec violentum: 1) quando a vítima não resiste nem consente, porque incapacitada de oferecer resistência e 2) quando a vítima consente invalidamente.

Na primeira hipótese, de impossibilidade de oferecer resistência, a vítima, completamente indefesa, está impossibilitada, física ou psiquicamente, de reagir ao abuso, como nos casos de "enfermidades, paralisias, síncopes, desmaios, estados de embriaguês, etc." (cf. MIRABETE, 2005, p. 1866).

Decorre de circunstância pessoal do ofendido (ex: ser paralítico) ou de ato provocado por terceiro (ex: narcotizar uma pessoa). Estes eventos, sem sombra de dúvida, encaixam-se na situação prevista na cláusula "não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência" do § 1º do artigo 217-A.

Por outro lado, no segundo caso, a vítima, de certa forma, pode oferecer resistência, mas seu consentimento é considerado inválido, situação que se não estivesse presente transformaria o episódio em fato atípico.

Para os efeitos do Código Penal, o consentimento inválido, segundo nosso entendimento, pode ser encarado sob dois prismas:

  • 1) Se decorrente de circunstância pessoal da própria vítima (ex: ser menor de 14 anos), estaria normalmente abarcado pelo artigo 217-A;

  • 2) Se configurado em face de engano produzido por terceiro, existe um vício de consentimento provocado, que poderia se enquadrar na proposição da parte final do artigo 215, desde que tenha o ofendido mais de 14 anos de idade, seja mentalmente são e possa oferecer resistência.

Em outras palavras, a aquiescência aqui é inválida porque embasada em deturpada percepção da realidade, provocada ou mantida dolosamente por outrem. Não houvesse sido posta nesse estado, a vítima certamente não concordaria com o ato sexual. Sob essa ótica, a lesividade se assenta no fato de a vítima dispor de seu corpo de forma artificial, o que atinge a sua liberdade de escolha e, por conseguinte, sua dignidade.

O ato de dificultar (complicar, atrapalhar), indica ação de menor monta e não encontraria, em tese, óbices na sua subsunção ao caso concreto.

Por outro lado, a exegese do ato de impedir (impossibilitar, inibir, embargar) a espontânea manifestação de vontade da vítima, previsto no artigo 215, deve receber a devida aplicabilidade para tipo incriminador, sob pena de, em conflito aparente com os crimes de estupro, ceder-lhes o lugar. Neste sentido, César Roberto BITENCOURT (2010, p. 919) adverte:

(...) Ora, meio que impeça a livre manifestação de vontade significa vontade inexistente, e esta não se confunde com vontade viciada ou fraudada. Alguém sem vontade livre, com vontade suprimida ou inexistente não reage, não pode “oferecer resistência”, e ser possuído(a) “sem poder oferecer resistência”, configura estupro, e sendo menor de quatorze anos é vulnerável (art. 217-A, § 1º). Por isso, recomenda-se muita cautela no exame dessa elementar, que não pode chegar ao ponto de impedir a livre manifestação da vítima.

Ultrapassado o citado impasse interpretativo, a doutrina, com o passar do tempo, buscou enquadrar algumas situações nesta parte aberta do texto do crime.

Eduardo CABETTE (2010, p. 54), o fez, no passado, com relação aos atos libidinosos furtivos, usando o exemplo da apalpação rápida de seios, sem chance de reação. Chamando-os de “rápidos e inopinados”, houve menção da existência dessa corrente por Renato N. Fabbrini (MIRABETE, 2015, p. 1551).

Estes atos, que tomam a vítima de surpresa, vedando-lhe a possibilidade de defesa, em verdade, configuravam, até a chegada da Lei 13.718/2018, a contravenção de importunação ofensiva ao pudor (art. 61, hoje revogado). Atualmente há subsunção desses casos no recente crime de importunação sexual (art. 215-A)4.

Noutro viés, NUCCI (2010, 104) cita, o caso da embriaguez acidental, quando a capacidade da vítima de oferecer resistência for relativa5.

A interpretação majoritária constatada na doutrina e jurisprudência, ao que parece, restringiu a abrangência da tipificação, exigindo a similitude à fraude para a configuração das elementares em comento. Assim como em outros crimes, a lei estaria se valendo da interpretação analógica, primeiro elencando um exemplo de modo de obstrução à livre manifestação de vontade da vítima (a fraude) para, na sequência, generalizar com a expressão "ou outro meio que impeça ou dificulte", deixando ao intérprete o encargo da inclusão de circunstâncias que não foram expressas (cf. lição de NUCCI, 2005, p. 499).

Por essa ótica, a fraude seria o referencial para a identificação de outras condutas ilícitas cometidas por meios que impeçam ou dificultem a livre manifestação da vontade.

O exemplo mais próximo desse quadro é trazido por Maximiliano e Maximilianus FÜHRER (2015, p. 394. e 400), quando descrevem hipótese do agente que ministra substância inebriante, extasiante ou sedativa sem que a vítima perceba, ocasião em que, tendo sua vontade normal afetada por ação do que ingeriu, vem a ser abusada. Ressalvam os autores, entretanto, que, se o abuso ocorrer com vítima desmaiada (inconsciente), há estupro de vulnerável.

Este, talvez, seja o exemplo mais plausível de adequação típica das elementares em comento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Tiago Lustosa Luna de. Da posse à violação sexual mediante fraude. O novo alcance do art. 215. do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2241, 20 ago. 2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/13361/da-posse-a-violacao-sexual-mediante-fraude>. Acesso em: 26 set. 2019.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Lei n° 12.015 de 07 de agosto de 2009. Sítio da Presidência da República. 2009. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/_leis2009.htm >. Acesso em: 10 ago. 2009.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: temas relevantes. Curitiba: Juruá, 2010.

___________, CABETTE, Bianca Cristine Pires dos Santos. Estupro de Vulnerável e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Curitiba: Juruá, 2018.

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FÜHRER, Maxmiliano Roberto Ernesto, e FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal comentado. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: RT, 2001.

JOVELI, José Luiz. Breves considerações sobre a noviça Lei nº 12.015/2009 . Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2233, 12 ago. 2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/13313/breves-consideracoes-sobre-a-novica-lei-n-12-015-2009>. Acesso em: 14 ago. 2009.

MIRABETE, Julio Fabbrini; Renato N. Fabbrini. Código Penal interpretado. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

_______. Crimes contra a dignidade sexual. 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SILVA, Tadeu Antônio Dix. Crimes Sexuais: reflexões sobre a nova Lei 11.106/2005. Leme: J. H. Mizuno, 2006.


Notas

1 ARAÚJO, Tiago Lustosa Luna de. Da posse à violação sexual mediante fraude. O novo alcance do art. 215. do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2241, 20 ago. 2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/13361/da-posse-a-violacao-sexual-mediante-fraude>. Acesso em: 26 set. 2019.

2 O crime de violação sexual mediante fraude, também conhecido como "estelionato sexual", está previsto no art. 215. do estatuto penal e tem o seguinte texto dado pela Lei 12.015/2009: "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único: Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa”. Sobre o emprego da fraude pelo agente, há que se considerar que não é qualquer tipo de engano capaz de tipificar o crime sob comento, é indispensável o emprego de estratagemas que tornem insuperável o erro ao qual é levada a vítima, e as circunstâncias devem ser tais que a conduzam a se enganar sobre a identidade pessoal do agente ou a cerca da legitimidade da relação sexual (nesse sentido, vide Tadeu Antonio Dix Silva, 2006, p. 127).

3Assim explanava, dentre os defensores da tese no início da vigência da lei reformadora, José Luiz JOVELI (2009): "A novidade é que o artigo 224, que definia a violência presumida, foi revogado pela nova lei. Nesse artigo, mais precisamente em sua alínea "c", presumia-se a violência se a vítima não podia, por qualquer outra causa, oferece resistência. Tratava-se, como se sabe, daquelas situações em que a vítima se encontrava impossibilitada de oferecer resistência, como, por exemplo, enfermidade física grave, embriaguez completa, narcotização etc. Em alguns casos, quando causadas pelo agente do crime sexual, caracterizavam violência imprópria, como, por exemplo, a narcotização. Esse tipo de violência passou agora a ser prevista no caput da nova redação dada ao artigo 215 do CP, que prevê o crime de violação sexual mediante fraude, com pena de reclusão, de dois a seis anos, para o agente que mantém conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com alguém (que tenha pelo menos 14 anos ou mais, sob pena de incidir no novel artigo 217-A, que prevê o estupro de vulnerável, ou seja, menor de catorze anos, sem discernimento ou sem resistência, com pena de reclusão, de oito a quinze anos), mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. A parte final deste artigo contempla, sem dúvida, hipótese de violência imprópria de que tratava a alínea "c" do revogado artigo 224".

4 Com a entrada em vigor da Lei 13.718/2018, foi criado, para substituir a antiquada contravenção importunação ofensiva ao pudor, o crime de importunação sexual, tipificado no novel artigo 215-A, com a seguinte redação: “Art. 215-A. Praticar, contra alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave”. Como exemplos de atos configuradores podemos elencar: 1) passar mão em partes íntimas (seios, genitália, nádegas), 2) o “encoxamento”, 3) esfregar órgãos sexuais em locais de aglomeração de pessoas (típico em transportes públicos), 4) levantar uma peça de roupa para contemplar a intimidade do corpo, 5) a masturbação direcionada à pessoa objeto da ação delituosa. Estas ações, são o que se pode chamar de furtivas (rápidas, praticadas de surpresa, dissimuladas). Conforme dita a própria redação do artigo 215-A, a importunação só se configura “se o ato não constitui crime mais grave”, mostrando-se subsidiária em relação a outros delitos. Se houver, por exemplo, incidência de violência ou grave ameaça na conduta, o crime passa a ser de estupro (art. 213). Caso a vítima seja menor de 14 (catorze) anos ou vulnerável, o enquadramento será no estupro de vulnerável (art. 217-A). Se os atos libidinosos, por outro lado, são praticados mediante fraude, incide em seu lugar a figura típica da violação sexual mediante fraude (art. 215).

5 Quanto à incapacidade de oferecer resistência, para fins distintivos entre os artigos 215 e 217-A, leciona o respeitável autor que se for absoluta (resistência nula ou pertubação total), trata-se de estupro de vulnerável. Por outro lado, se for relativa (resistência relativa ou perturbação relativa), faz incidir o delito de violação mediante fraude (cf. NUCCI, 2010, 88).

Sobre o autor
Tiago Lustosa Luna de Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pós-graduado em Ciências Penais pela UNISUL-IPAN-Rede LFG. Mestre em direitos humanos pela Universidade Tiradentes - UNIT. Delegado da Polícia Civil no Estado de Sergipe.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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