As raízes autoritárias do direito processual penal brasileiro

07/10/2019 às 22:43
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Estudar o passado para entender o presente.

Resumo

O objetivo do presente trabalho pauta-se na releitura do sistema processual vigente no Direito Brasileiro, principalmente no que tange às práticas inquisitoriais que existiram no passado medieval, na Europa, e foram transplantadas para o Brasil, fincando raízes que desafiam o tempo. Assim, estudando a inquisição portuguesa através de alguns textos normativos, como as Ordenações e os Regimentos, pode-se ter a exata noção da herança autoritária ainda existente em nosso direito penal, processual penal, processual civil, administrativo, tributário e até mesmo no direito constitucional, ao tratar das prerrogativas de função de algumas pessoas que ocupam determinados cargos. Será realizada uma pesquisa bibliográfica com os mais diversos autores que dissertam sobre os temas pertinentes para o desenvolvimento do trabalho.

Palavras chave: Direito Português e Brasileiro. Idade Média. Roma. Santo Ofício. Sistema Inquisitorial.

ABSTRACT

The aim of this work is to re-read the procedural system in force in Brazilian Law, mainly to the inquisitorial practices that existed in the medieval past in Europe, and were transplanted to Brazil by setting roots that defy time. Thus, studying the Portuguese inquisition through some normative texts such as Ordinances and Regiments it is possible to have the exact notion of the authoritarian inheritance still existing in our criminal law, criminal procedure, civil procedure, administrative, tax and even constitutional law, when dealing with the prerogatives of function of some people occupying certain positions. A bibliographical research will be carried out with the most diverse authors who discuss the pertinent themes for the development of the work.

Key words: Portuguese and Brazilian Law. Middle Ages. Rome. Holy Office. Inquisitorial system.

  1. Introdução

Durante toda a Idade Média, houve uma disputa entre a autoridade papal e o poder real. Nesse período, no entanto, a Igreja tinha a autoridade máxima, sobrepondo-se ao poder do Estado, que se encontrava, por sua vez esfacelado pelo sistema feudal. A Igreja, instituição universal, sobrepondo-se ao Estado, também o usava, como meio para atingir fim religioso, extirpando as opiniões contrárias aos seus dogmas. Por conseguinte, surgido no direito romano e ali largamente praticado com o objetivo de estabelecer uma verdade que impusesse uma relação de poder, o sistema processual inquisitorial é retomado na Idade Média pela Igreja Católica, com o mesmo objetivo, qual seja, a imposição de um poder que pudesse afastar as doutrinas hereges. Nesse sentido, passa a receber os influxos do Direito Canônico, sendo que o órgão julgador, além de decidir o litígio, era incumbido de elaborar a acusação penal, ex officio, e carrear as provas necessárias para a condenação, incluídas aí a investigação sobre o acusado que, despido de garantias processuais, era considerado um mero objeto de investigação.

De acordo com Foucault (2005, p. 55), “na Idade Média européia assiste-se a uma espécie de segundo nascimento do inquérito, mais obscuro e lento, mas que obteve um sucesso bem mais efetivo que o primeiro”. Ressurgem as práticas do Direito Romano e, nesse contexto, reaparece o sistema inquisitorial, introduzido pela Igreja, como forma de gestão política de manutenção de poder. Portanto, foi nessa forma de procedimento que a Igreja Medieval se firmou como a única detentora da verdade e do poder. É uma forma de justiça que se impõe de cima para baixo, afastando qualquer possibilidade das partes resolverem seus conflitos, como ocorria entre os povos bárbaros. É nesse contexto político que o saber jurídico se faz presente, uma vez que uma infração humana não só apresenta uma idéia de ofensa ao soberano, como também uma idéia de pecado. Segundo ainda Foucault (2005, p. 55), “muito curiosamente, a historia do nascimento do inquérito permaneceu esquecida e se perdeu, tendo sido retomada, sob outras formas, vários séculos mais tarde, na Idade Média.”.

Assim, pode-se afirmar que se trata de tema de ampla relevância no âmbito do Direito Processual Penal, pois conhecer a história de um Sistema de estabelecimento da verdade, como o Inquisitorial, amplamente utilizado na antiguidade Romana, e na Europa medieval, sendo posteriormente introduzido no Brasil, pelos colonizadores, através das Ordenações e Regimentos, é sem dúvida, ponto importantíssimo que não pode ser desprezado.

  1. Aspectos históricos da verdade inquisitorial

Não há duvida de que foi em Roma, na fase marcada por uma forte intervenção do Estado, portanto, fase do alto e baixo império, que vamos encontrar alguns traços interessantes do sistema inquisitorial e, por conseguinte, é também ali, que estão as raízes das práticas medievais da inquisição e, por via de conseqüência, ao modelo inquisitorial que vigeu em Portugal e no Brasil.

Portanto, foi no Império, - Alto e Baixo-, fase que veio em seguida à República, - fase de ouro e democrática do direito romano-, que voltou a predominar um sistema de apuração da verdade totalitário e absoluto, fortemente marcado pela centralização do poder nas mãos dos agentes públicos que passaram a desenvolver verdadeira atividade de policia judiciária. O objetivo era transmitir aos juízes os resultados de suas pesquisas, a principio, sempre que alguém deixasse de apresentar a accusatio.

Por sua vez, os magistrados foram ampliando cada vez mais a sua esfera de atribuições, alcançando aquelas antes reservadas aos particulares, até chegar ao extremo de se reunir em uma mesma pessoa, a figura do acusador e do julgador. Por outro lado, em 17 A.C, aparece o processo penal extraordinário (cognitio extra ordinem), que cuidava de um procedimento muito mais útil aos governantes totalitários do que aos cidadãos. Nesse sistema de apuração da verdade, os magistrados imperiais tinham poderes de invadir a esfera de atuação do acusador particular, o que vai dar ensejo ao surgimento do procedimento ex officio, poderoso instrumento de perseguição política. Nesse contexto, há o enfraquecimento do modelo acusatório, que existiu na fase republicana e o conseqüente fortalecimento do modelo inquisitorial. (Barros, 2002, p. 56).

Na fase do Baixo Império, por volta de 284 D.C. até 585 D.C, data em que morre Justiniano, a tortura passa a ser admitida oficialmente não só para os acusados como também para as testemunhas. É interessante registrar que nesse período, o processo passa a ser sigiloso e escrito, e não mais publico e contraditório, podendo o magistrado agir independentemente de uma acusação formal, determinando todas às diligencias para o esclarecimento do fato. Paradoxalmente, o discurso apresentado foi o de resguardar o bom êxito das investigações, bem como evitar que os humildes fossem injustiçados pela cólera dos poderosos. Nessa linha de raciocínio, acrescenta Prado (1999, p. 83):

(...) que a fundamentação para tal concentração de poderes nas mãos de uma só pessoa residia no fato de se tentar descobrir a verdade, não deixando ao desamparo os fracos, evitando assim o non liquet, qual seja, a impossibilidade de solução dos conflitos por parte do Estado.

Em suma, se na Republica, o magistrado tinha uma atuação de neutralidade na fase de instrução do processo penal, pois a produção das provas competia às partes, no período do Alto Império sua intervenção passou a ser admitida sem limitações, acumulando as funções do órgão acusador.

De todo o exposto, podemos dizer que a nova cognitio conferindo amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar, como também para colher provas, valer-se da tortura e julgar, seria a semente ideal aonde a Inquisição medieval iria buscar os seus recursos legais.

O período Bizantino, que se inicia no ano 530 D.C e vai até 1453 D.C., deve ser registrado pela decisão do Imperador Justiniano, falecido em 565 D.C. de encarregar uma comissão de juristas, encabeçada por Triboniano, de elaborar uma compilação dos melhores momentos da história do direito romano, denominada de Digesto ou Pandectas.  É uma época em que o Império já havia se deslocado para Bizâncio, no Oriente e, estava marcado por uma grande decadência, não só do grande Estado, como também do antigo e clássico Direito Romano.

Ora, essa preocupação de Justiniano, qual seja, em razão da grande decadência, tentar resgatar um pouco da tradição e história do seu direito, compilando as mais famosas frases e citações dos grandes jurisconsultos romanos, contribuiu de forma indireta para o reencontro na Idade Média de suas fórmulas e princípios. Nesse sentido Lima Lopes (2002) esclarece que “Justiniano, os historiadores são unânimes em comentar isto, era amante da passada gloria romana. Reinando em Constantinopla, na metade do lado grego oriental do Mediterrâneo, sonhava com a tradição latina (...) tudo que era bom para ele, estava no passado e sua missão seria restaurar aquele passado, militar e culturalmente”. (LIMA Lopes, 2002, p. 117).

Assim, se o sonho de restaurar a antiga unidade religiosa, política e jurídica, que o império havia perdido, foi em vão, mas não foi em vão, o ressurgimento de alguns institutos jurídicos tão bem desenvolvidos na época de grandeza.

2.1. A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO APÓS A DECADÊNCIA E O SEU RESSURGIMENTO NA IDADE MÉDIA

É importante registrar, inicialmente, que com a invasão bárbara e o colapso do Império Romano Ocidental, ainda assim a influência romana não deixou de existir e, por via de conseqüência, a sua organização administrativa. O ius civile continuava sendo o direito das populações latinizadas, especialmente no sul, isto é, na Gália, Espanha e Itália. É lógico que ao norte do antigo império, próximo às fronteiras germânicas, o direito germânico dominou, salvo, talvez, em cidades mais fortemente romanizadas. O que importa é que as populações passaram a viver de acordo com as suas próprias leis, denominando-se tal prática como a aplicação do princípio da personalidade do direito, ou seja, o individuo vive segundo as regras do seu povo, não importando o local onde esteja.

E foi justamente a aplicação de tal principio que permitiu a sobrevivência do direito romano no Ocidente ainda durante os primeiros séculos após a sua queda. A jurisprudência romana continuava a existir, ainda que em contato com as populações germânicas, acarretando um distanciamento de suas fontes, sendo-lhe agregada um direito costumeiro, tosco, não escrito, surgindo com tal fusão, um direito romano vulgar. No entanto, tal foi a grandeza do Império Romano e a magnitude do seu direito, que a humanidade vai reencontrá-lo, talvez por necessidade para preencher um vazio, a partir do final do século XII e inicio do século XIII, despertando, por conseguinte, um novo interesse, após séculos esquecido. Assim, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano, recém-descoberto pelos juristas europeus, tornou-se a principal fonte para o estudo do direito romano.

Segundo Martins (2002, p. 196), podemos dividir em três fases o período da recepção do direito romano clássico. A primeira, que corresponde aos séculos XII e XIII, caracterizada pela predominância, no âmbito doutrinal, do direito romano sobre os vários direitos locais. A segunda, que compreende os séculos XIV e XV, assinala o desenvolvimento dos direitos locais como fonte ao direito Justiniano. E, por fim, a terceira fase, que se inicia no século XVI, com afirmação da supremacia dos preceitos legais e citadinos sobre o direito privado. Evidentemente para os fins do nosso trabalho interessa-nos a primeira fase.

É, pois, no começo do século XII, que ganha vulto na cidade italiana de Bolonha o que geralmente se chama renascimento do Direito Romano. Segundo Caetano (1985, p. 336), “renascimento, quer dizer o reencontro dos textos significativos de maior perfeição, pois, como temos dito, nunca deixou de se sentir na Europa em especial na Península a influencia romanista”.

Irnério vai dar origem ao movimento dos glosadores, através do método das glosas, inserindo nos textos, as explicações necessárias indispensáveis a uma efetiva compreensão. E, da mesma forma os textos canônicos foram glosados no ensino da nova faculdade universitária. De toda a Europa acorreram estudantes de Direito e Cânones a Bolonha que “estagnando-se na admiração da autoridade dos grandes mestres e a escola dos glosadores, que surgira como movimento de renovação cultural, entrou em decadência” (Caetano, 1985, p. 337).

2.2. O RESSURGIMENTO DO DIREITO ROMANO NA IDADE MÉDIA PELA AÇÃO DA IGREJA CATÓLICA

Com o pleno desenvolvimento do feudalismo nos séculos X, XI e XII de nossa era, e o conseqüente enfraquecimento do poder real, a Europa Ocidental se transforma em uma multiplicidade de pequenos senhorios, economicamente autossuficientes, com exércitos próprios e poderes locais, uma vez que o poder real, apesar de ocupar um lugar no topo da hierarquia medieval encontrava-se enfraquecido, e, por isso incapaz de impor a sua vontade e as suas leis aos nobres e ao povo, o que gerou o desaparecimento da atividade legislativa imperial e principalmente o deslocamento da atividade judiciária para os senhores feudais. Dessa forma o direito fica adstrito às relações feudo vassálicas, ou seja, as relações dos senhores com os seus servos. O costume passa a ser a fonte por excelência do direito feudal. Inexistiam escritos jurídicos nos séculos X e XI. Mesmo os contratos, que estavam na base dos laços de vassalagem e servidão, raramente eram escritos, salvo algumas instituições eclesiásticas que redigiam os atos que lhes interessavam. (Martins, 2002, p.196)

Nesse contexto, é importante tentar entender como a Igreja Católica, se tornou essa fortíssima instituição e, como se aproveitou de um poderoso instrumento de produção da verdade, como o procedimento inquisitorial, tão utilizado em Roma, e agora perdido na historia das práticas jurídicas.

Vimos linhas acima que a atomização do espaço público, decorrente das invasões dos povos germânicos, acabou originando numerosos sistemas de governo menores e autônomos, o que causou uma grande confusão entre autoridade e propriedade. O fim das relações entre Estado e a o individuo, e o nascimento de uma nova ordem de vínculos sociais e políticos através da subordinação pessoal, entre vassalo e senhor feudal, tornou-se característica dominante no período medieval.

Em um mundo conturbado e confuso, a Igreja era o único poder econômico, político e cultural, marcando com a sua presença e a força da religião, a vida dos indivíduos e das outras instituições medievais. Por toda a Europa reinava apenas uma Igreja, que ditava as regras de convivência. Assim, se um homem não fosse batizado ou mesmo excomungado, perdia automaticamente todos os seus direitos civis e políticos. Mas, era essa mesma Igreja que prestava serviços sociais aos pobres, dando abrigo a todas as almas em perigo entre seus muros. Era enorme o poder que a Igreja possuía, não só sobre as almas, como também sobre todos os negócios. Em suma, um poder coeso e universal, que se fazia presente em todas as estruturas da sociedade medieval. E, que deveria ser preservado contra toda e qualquer doutrina ou pensamento que pudesse contestar os seus cânones.

Assim, quando na baixa Idade Média a situação sócio, econômica e política, começou a se transformar, abalando o prestigio da Igreja, esta reagiu através das cruzadas e da inquisição, sendo essa ultima a questão que nos interessa. (Aquino, 1995, p. 492)

Percebe-se, por conseguinte, que a religião renasce dos escombros de Roma, tornando-se uma realidade de poder. Não só o estabelecimento de relações sociais e econômicas feudais, como também a legalização do catolicismo pelo Imperador Constantino, como religião oficial, no Edito de Tolerância de 313 D.C., vai favorecer o desenvolvimento da Igreja como autoridade religiosa e também autoridade temporal, uma vez que detinha poderes para tanto. Portanto, de acordo com Tigar e Levy (1978, p. 43 apud SANTOS, 2002, p. 226).

A Igreja foi uma força onipresente no desenvolvimento financeiro e jurídico da Europa. Como maior latifundiário, estava comprometida com a defesa do feudalismo, e com toda a sua autoridade auxiliou na repressão das revoltas de camponeses que varreram o continente. Denunciava como hereges ou trancafiava em mosteiros todos aqueles que desejavam restabelecer a imagem de uma igreja comunal, apostólica.

Pode-se afirmar que a Igreja foi o grande senhor feudal, despontando como proprietária de vastas extensões de terra e, por seu poder espiritual e temporal, pode dominar toda a Europa, sendo a única instituição sólida existente. Por conseguinte, vamos assistir a um grande trabalho de unificação de fé e de poder, que se projeta a todos os recantos da Europa, ainda que dominados por povos do oriente. Mas, é importante que se diga que tal trabalho se deu paulatinamente, passo a passo, primeiramente, pela inexistência de um poder judiciário organizado, resolvendo, primeiramente, questões temporais relativas às disputas de terras.

Depois passa a ter poderes para julgar os casos relativos ao casamento e demais litígios de direito de família e, todo procedimento ancorado nas regras denominadas cânones, isto é, regras de interpretação jurídico-sagrada e de verdade absoluta, porque reveladas por Deus. Vê-se que a ideologia dogmática canônica começava a despontar. A partir daí inicia-se a historia da sacralização do direito na Idade Média, pois uma infração, muito mais do que uma simples transgressão se tornava um enorme pecado.

Estabelecida a sua legitimidade divina restava ainda o encontro de um instrumento de dominação que aniquilasse todo aquele que se opusesse as verdades reveladas. E não foi tão difícil. A Igreja passando a dominar toda a produção intelectual jurídica na idade feudal passa a ter acesso a outras fontes de direito, - como aquele direito romano, que guardava os segredos de um sistema inquisitorial, tão largamente utilizado para a busca de uma verdade, que radicalizasse a autoridade do Imperador. Assim, tal direito, que serviu outrora como forma de poder e dominação deveria ser interpretado, agora, pelos doutores da Igreja, em seu próprio beneficio. Diga-se, doutores, abalizados pelo clero nas Universidades, como a de Bolonha, responsável pelos textos romanos. Acrescente-se que doutores, não pelo conhecimento, mas pela autoridade divina de revelar a verdade da lei.

Desse modo a Igreja passa a ter o poder de materializar a Palavra Divina na terra e de demarcar o território onde essa Palavra deve reinar. Nesse sentido, a Igreja é absoluta, onipresente e onipotente para dizer o direito, excluindo todo aquele que discorde de seus cânones, tais como: o herege, o mouro, o judeu, os cátaros, os albigenses, as bruxas, os seguidores da apostasia, da simonia, o sacrílego, e tantos outros inimigos.

Apesar da ascensão religiosa e ideológica da Igreja durante a Idade Média, alastrando-se por todo o território europeu, ainda assim a sua autoridade era contestada pelas opiniões contrárias, que punham em dúvida a doutrina católica apresentada. Por conseguinte, não havendo uma subserviência absoluta, os hereges, fazendo frente à rígida orientação doutrinária do clero católico e, influenciados por antigas religiões pagãs ou dando interpretação diversa ao ideário cristão, preconizavam um tipo diferente de prática religiosa, colocando em perigo toda a dogmática cristã. Por via de conseqüência, as primeiras investigações foram autorizadas pela Igreja contra aqueles que representassem uma ameaça a ideologia reinante.

Assim, a reação da Igreja criando mecanismos para combater os movimentos heréticos, através da Inquisição, vai surgindo vigorosamente, sendo a primeira fase documentada pela bula do Papa Lucio III, intitulada Ad abolendam, embrião para a criação do Santo Oficio. Por esta bula, os bispos foram obrigados a intervir ativamente para erradicar as heresias e foi dado o poder de julgar e condenar os hereges em sua diocese. Mais tarde, em 1252, o Papa Inocêncio IV, através da bula Ad extirpanda, autorizou o uso da tortura para extrair confissões de prisioneiros, recomendando, no entanto que os torturadores não se excedessem a ponto de mutilar o acusado ou denunciado. As penas eram variadas. Aqueles que se recusavam a abjurar, tais como os hereges "relapsos" foram entregues ao braço secular para a execução da pena de morte. Mais tarde, com a bula Multorum Querela de Clemente V, a tortura alcançou também os tribunais do Santo Ofício. Em 1487, publicava-se o Malleus Malleficarum, de autoria dos monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, posteriormente reconhecido pela bula papal Summis Desiderantes Affectibus e que consistia numa espécie de manual para diagnóstico de feitiçarias, inclusive com descrições requintadas dos meios e modos de inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria.

Por outro lado, é importante registrar que o sistema processual adotado pelo Tribunal do Santo Ofício foi aquele que existiu na antiguidade romana, qual seja, o inquisitorial, com características bem definidas e adaptadas a busca de uma verdade sagrada e absoluta. O órgão julgador, além de decidir o litígio, era incumbido de elaborar a acusação penal, ex officio, e produzir as provas que lhe interessasse, incluída aí a investigação sobre o acusado que, despido de garantias processuais, era considerado um mero objeto de investigação. O juiz-acusador valia-se de um procedimento investigatório secreto para carrear elementos que ratificassem a acusação por ele próprio elaborada e que resultava de dados colhidos a priori. A prova não era só fator de convencimento do juiz, mas, também, instrumento para este convencer os outros do acerto da acusação que apresentara liminarmente. Também, a denúncia anônima, era um meio apto a instaurar o processo, em princípio foi utilizada com reservas, mas em um segundo momento meio amplamente autorizado.

Em suma, o processo inquisitorial consistiu em uma peça fundamental na engrenagem da Inquisição prestando-se a castigar os que se colocavam contra os dogmas da doutrina católica, valendo precipuamente como meio de dominação. Possuía uma origem dupla: religiosa e secular, sendo desenvolvido através de perguntas acompanhadas de tortura e morte dos acusados. Tiveram ampla atuação nos séculos XII a XV, a principio para os hereges e depois para as feiticeiras. Segundo Foucault (2005, p. 73): “o inquérito na Europa Medieval é, sobretudo, um processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer”.

A busca sem limites de uma verdade real ou material era um dos objetivos dos inquisidores. Também estavam presos a um critério de provas tarifadas em que a confissão era a rainha das provas e a tortura admitida para obtê-la. E tudo para desenvolver o processo de culpa e a conseqüente purificação da alma. Assim, tudo era válido para revelar o oculto e descobrir o acontecido: privação da liberdade, a ofensa à integridade física ou a dignidade da pessoa humana, a eliminação da vida, ou, qualquer meio que justificasse os fins sagrados. Consoante o demonstrado, a autonomia dos juízes para absolver, era bem limitada, ficando adstrita, aos termos dos Regimentos e demais regulamentos.

O juiz tinha o dever de julgar de acordo com as provas carreadas aos autos prevalecendo o princípio do in dúbio para a Inquisição. Mas entre as provas carreadas aos autos, encontrava-se a confissão, o que fazia com que decidisse de acordo com o que estava provado. Aplicava-se a formula decidir secundum acta et probata. Proibia-se assim qualquer outro meio probatório que não fosse o admitido nos regimentos, como por exemplo, a proibição das ordálias, que poderia ensejar decisão favorável ao acusado. Na verdade, o sistema legal das provas só tinha valor para a condenação e jamais para a absolvição, daí a confissão como a rainha das provas.

Sabemos que no sistema de provas legais, os meios de prova gozam de valor abstrato diferenciado e, por via de conseqüência, o magistrado não detém nenhuma liberdade na aferição do valor concreto, da robustez e da coerência das provas produzidas. Se uma testemunha veraz e fidedigna convencer o juiz da culpabilidade do mais perverso dos criminosos, tal testemunho não terá valor para a condenação, impondo-se a absolvição, pois de acordo com a regra legal pré-fixada, para a sua valoração, testis unus, testis nullius. Por outro lado, pode-se afirmar que a consolidação da confissão como a prova por excelência, ou regina probarum, deveu-se aos influxos religiosos que apontavam para um indicio de arrependimento, suscitando o forte argumento de uma possível reconciliação com Deus, daí a magnitude da confissão.

Quanto à tortura, pelo demonstrado, em sendo um meio hábil de perseguir a verdade real, ela se legitimava quando da confissão, sendo plenamente admitida e legalizada através das bulas papais, como Ad extirpanda, de autoria de Inocêncio IV e Multorum Querela de Clemente V. Apesar das várias recomendações regulamentares para se evitar o excesso de dor, na prática valia tudo, pois o que se apurava era a própria sobrevivência da Igreja atacada pelas heresias. O interrogatório era a busca da verdade por meio de tormentos, ou seja, da tortura; e à tortura era o próprio interrogatório, para se averiguar a verdade. Por conseguinte, bastava que existissem alguns indícios contra alguém, e se podia submetê-lo à tortura, tudo de acordo com o prudente arbítrio do juiz inquisidor.

Não se pode perder de vista que a engenhosa estrutura do processo inquisitório contava com fundamentos teóricos de filósofos e teólogos de notória erudição. Assim, forjaram um conveniente discurso de superação mundana e conseqüente purificação da alma pelo arrependimento e sua elevação ao Reino de Deus. Sob tal discurso, tudo valia a pena, inclusive a tortura como um caráter medicinal para a alma, sendo as marcas deixadas no corpo interpretadas como sinais externos de purificação.

O poder da Igreja transcendia a própria natureza humana, pois era divino, chegando a todos indiscriminadamente. Tudo tinha a sua explicação sagrada, como constranger as pessoas a comprar indulgências, extorquir taxas, punir a qualquer um que questionasse os seus dogmas, obrigar comunidades inteiras a assistir missas, liturgias e festividades.

Em suma, a Inquisição como instituição que existiu tanto no período medieval como no período moderno, foi um movimento político e religioso, que sob o argumento de uma luta contra o diabo, os hereges e as bruxas, buscou consolidar o seu poder hegemônico, através de um discurso paternal onde tudo valia a pena. A Inquisição nos revelou com nitidez, os laços íntimos entre um projeto político e um sistema processual penal que lhe deu sustentação e, de que forma o segundo se adaptou ao primeiro, desvinculando-se do seu projeto político originário.

Segundo Nilo Batista (2000, pp. 163-164):

(...) a promiscuidade conceitual entre delito e pecado, da qual resulta a sacralização do primeiro e a politização do segundo, abrirá ao direito penal canônico uma perspectiva de intervenção moral comparável a poucas experiências judiciais da antiguidade, e cabalmente inéditas quanto ao totalitarismo do discurso e à expressão quantitativa de suas vitimas. Essa intervenção moral do sistema penal estará doravante legitimada para ocupar-se do pensamento, porque o pecado (e logo o delito) pode perfeitamente residir no pensamento, seja ele uma inquietação herética ou um desejo sexual nefando.

Por via de conseqüência, resumindo os argumentos legitimadores utilizados naquela época, de que era necessária a intervenção Inquisitorial Medieval, como forma de restabelecimento da ordem naquele universo caótico, pois “da luta entre a ordem virtuosa, representada pelo tribunal canônico, e o desviado inerme, cuja alma deve ser reconduzida ao grande programa salvacional da Igreja, ainda que a custa do seu extermínio”, fazia-se a vontade de Deus, afastando-se o caos infracional. (Batista, 2000, pp 163-164)

2.3. O DIREITO ROMANO E O DIREITO CANÔNICO, A RECEPÇÃO EM PORTUGUAL: AS ORDENAÇÕES

Também em Portugal foi recebido o novo Direito e se procurou fazê-lo vigorar com pouco intervalo dos acontecimentos italianos. No entanto, adverte Caetano (1985, p. 340) que “a recepção do Direito Justinianeu pela corte não se fazia, porém, indiscriminadamente. Uma lei de D. Afonso IV, de 1352, é muito clara: Não devemos guardar os ditos direitos escritos se não enquanto são fundados em boa razão e em prol dos nossos sujeitos”.

Segundo Miranda, (1981, pp. 49-50), o Direito Português tem em suas origens o Direito Romano (mais político do que moral e religioso), o Germânico (mais moral do que político e religioso) e o Canônico (mais religioso do que político e moral), adicionando-se a esses os elementos da vida peninsular, particularmente a lusitana. De acordo com Caetano (1985, p. 337), havia um mosaico de direitos “onde cada pedra corresponde ao particularismo de certo regime jurídico”. Acrescenta o autor que, se de um lado tinha-se um direito canônico, com a legislação pontifícia como sua fonte principal, de outro havia um direito elaborado na razão e na experiência humana e “numa riquíssima experiência ecumênica”, que é o Direito Romano. (CAETANO, 1985, p. 337). Por conseguinte, é dessa fusão da “índole já cristianizada do Direito Justiniano e a profunda romanização da Igreja e do Direito Canônico” (CAETANO, 1985, p. 337) que se tem o predomínio de um ou outro, consoante, prepondera na Europa o Papado ou o Poder Temporal.

Segundo o Mestre Português, o direito romano renascido, e submetido aos preceitos do direito divino, torna-se, assim o Direito Comum da Cristandade, aquele que serve de padrão para as legislações nacionais e corrige as deficiências dos sistemas particulares. “Os reis, apoiados nos legistas, não podem deixar de acarinhar este movimento, que os torna sucessores dos imperadores e reforça a sua autoridade nos seus reinos”. (CAETANO, 1985, p. 338)

E conclui Caetano (1985, p. 340) que “além da influencia através das classes cultas, que pouco a pouco foi penetrando no alto clero e na corte, nos tribunais e nos corregedores, há que mencionar a exercida através dos textos castelhanos, ordenados ou sugeridos pelo rei Afonso X, o Sábio (que reinou entre 1252 e 1284) e onde, além de muitas normas vigentes em Leão e Castela no século XIII, foram incluídas e outras extraídas (e às vezes reproduzidas) dos textos canônicos e justianeus”.

Sobre tal multiplicidade de direitos, Pierangelli (2001) cita uma série de Leis que tiveram existência em Portugal, antes das Ordenações, tais como: Flores de las Leyes, Fuero Real, Código das Sete Partidas, os Forais, O Livro de Leis e Posturas. Dessa relação, seguindo os ensinamentos de Pierangelli, podemos destacar as Flores de las Leyes e o Fuero Real, como obras importantes no período medieval, no campo do processo penal, “pois foram obras de conteúdo Romano-Justinianeu e que influíram de perto no Direito Português dos primeiros tempos da monarquia”. (PIERANGELLI, 2001, p. 34).

Quanto ao período correspondente à segunda metade do século XIII e quase todo o século XIV, nos reinados de D. Afonso III, D. Diniz, D. Afonso IV, D. Pedro I e de D. Fernando, o processo penal e o direito penal tiveram grande modificação, com a recepção de um Direito Romano Imperial e o Direito Canônico. (, 1985, p. 359). No que toca ao direito criminal, a tendência será apenas para uniformizar no País alguns tipos de delitos puníveis e as respectivas sanções, até então variáveis ao sabor dos costumes locais, consagrados ou não nos forais.

De acordo com o citado autor podem ser consideradas características deste período:

  1. Predomínio progressivo das leis gerais sobre o costume e o Direito foraleiro;
  2. Aperfeiçoamento da justiça regia, quer na corte, quer através dos magistrados de jurisdição local;
  3. Regulamentação legislativa do processo e diferenciação entre o processo civil e o processo penal, sob a influência do Direito Romano-Canônico, implicando a redução a escrito das peças processuais e a organização do sistema de recursos;
  4. Prosseguimento da luta contra a vindicta privada.
  5. Limitação das jurisdições senhoriais.

Depois de um período em que o poder central esteve bastante debilitado pelos desmedidos privilégios concedidos à nobreza e ao clero, com o que se possibilitava opressões e espoliações de toda ordem, e que ganhara, segundo Pierangelli (2001, p.45) “especial realce no reinado de Don Sancho II, cuja autoridade régia era amiúde desrespeitada, revelando-se o soberano impotente para coibir tais abusos, um novo período se formou”.

Por via de conseqüência, com a deposição de D. Sancho II, deu-se o fortalecimento do poder real e o surgimento do rei legislador, culminando com o aparecimento das Ordenações, em nome de D. Afonso V, contando apenas sete anos de idade, e, por tal motivo, segundo Pierangelli (2001, p. 55), “a direção do País foi entregue ao Infante D. Pedro, tio do pequenino Rei. (...) O trabalho ficou concluído em 28 de Julho de 1446, na Vila da Arruda (...) vindo a publico, provavelmente no mesmo ano de 1446 ou no ano seguinte, por ordem do Infante D. Pedro, em nome de D. Afonso V”.

Portanto, com o fim de unificar o direito, evitando-se a diversificação e o enfraquecimento do direito português, como ficou registrado, dada às suas origens romana, germânica e canônica, surgem as Ordenações e, mais especificamente as Ordenações Afonsinas, com vigência até 1521, à época do descobrimento do Brasil, quando foi promulgada as Ordenações Manuelinas. É de se ver que, tal pretensão de purificação do direito português não vingaria, pois, de acordo com Almeida Junior (1920, p. 119), no livro V:

(...) contem-se as leis penais e o processo criminal. Os defeitos dos Códigos criminais de meia idade se acham neste de mistura com as disposições de Direito Romano e Canônico. O legislador não teve em vista tanto os fins das penas, e a sua proporção com o delito, como conter os homens por meio do terror e do sangue. O crime de feitiçaria e encantos, o trato ilícito do Cristão com judia ou Moura, e o furto do valor de marco de prata, são igualmente punidos com pena de morte. O crime de lesa-majestade foi adotado com todo o odioso das leis imperiais, assim enquanto à qualidade do crime, como enquanto ao modo de processá-lo. Na imposição das penas reconhece-se a desigualdade do sistema feudal: aos nobres impõem-se sempre penas menores do que aos plebeus. O marido poderia em flagrante matar impunemente o adúltero, exceto se este for cavalheiro o fidalgo de solar, em atenção à sua pessoa e fidalguia. Para a indagação dos crimes admitiu-se não só o meio de acusação do Direito Romano e as querelas, filhas dos antigos costumes, mas também as inquirições devassas do Direito Canônico.

Por conseguinte, trata-se de um direito penal e processo penal demasiadamente influenciados pelo direito canônico e, por via de conseqüência, pelo direito romano, onde se utiliza a expressão pecado como sinônimo de crime, pois o pecado é “um fato que vai também contra a lei de Deus ou da Igreja e toca a consciencia do delinqüente” (Caetano, 1985, p. 553).

Assinala Augusto Thompson (1976, pp. 70-71), que as Ordenações Afonsinas:

(...) usando por padrão ou modelo a doutrina do Corpus Juris, seguiu quanto ao método e à disposição das matérias, as Decretais do Papa Gregório IX. Assim tem largo assento nele o Direito Romano de Justiniano e o Direito Canônico, notando-se como fontes principais: o Direito Civil de Justiniano, conhecido pelo nome de Leis Imperiais; o Canônico, que se fez célebre na Europa logo depois do meio do século XII, debaixo do nome de Direito Comum, com as doutrinas dos glosadores e interpretes; o Código Visigótico, na versão do Fuero Juzgo; as Leis das Sete Partidas; as leis editadas pelos monarcas, desde Afonso II; as resoluções das Cortes, celebradas desde Afonso IV; as concordatas de D. Diniz, D. Pedro e D. João; alguns costumes e forais.

E, tal posicionamento sobre a miscelânea de direitos se torna cristalina, pela análise do texto referente às Ordenações Afonsinas, onde se pode vislumbrar, os crimes contra a religião; crimes contra o rei e os direitos régios; crimes contra a moralidade; crimes contra a pessoa, sua honra e reputação e crimes contra o patrimônio.

Nos crimes de heresia, cuja competência era da jurisdição eclesiástica, mas a pena prevista representava em derramamento de sangue, a Igreja, segundo Caetano (1985, p.555), não poderia proceder a sua execução (Ecclesia abhorret sanguinem) e por isso recorria ao braço secular, isto é, à justiça ordinária. “Para esse fim, o tribunal eclesiástico remetia o condenado, com o respectivo processo e sentença ao rei, o qual mandava rever os autos pelos seus ‘desembargadores da Justiça’ para que cumprissem as sentenças e as executassem como acharem de direito”. Tal fato, posteriormente foi estendido a outros casos de processos criminais e civis, a fim de que se fizesse uma revisão formal e substancial das decisões eclesiásticas.

Ainda, Caetano (1985, p. 574) acrescenta que o titulo 87 do livro V, previa os tormentos, reproduzindo leis de D. Pedro I e de D. João I, e a partir do § 4º a legislação própria das Ordenações Afonsinas. Mas registre-se que, ficava ao arbítrio do julgador decidir se o acusado deveria ou não ser metido a tormento, “só lhe cumpre tomar tal decisão se, examinada toda a inquirição dada contra o preso, achar tanta prova contra ele que o mova a crer que ele fez aquilo em que é culpado”.

Em principio não podiam ser metidos a tormentos os privilegiados ou homens honrados, tais como fidalgos de solar, cavaleiros de espora dourada, doutores em Leis, em Direito Canônico ou em Medicina e vereadores das cidades, salvo quando a lei expressamente o permitisse como nos casos dos crimes de lesa-majestade, falsidade, cárcere privado e feitiçaria. Aos tormentos eram equiparados os açoites. (CAETANO, 1985, pp. 573-574).

E, tal qual o preconizado nos manuais inquisitoriais, “o acusado não podia ser condenado por confissão arrancada em tormento sem a ratificar em juízo, devendo a audiência de ratificação realizar-se em lugar distanciado daquele em que foi atormentado, de modo que no momento de ratificar não estivesse o acusado vendo esse local. Também essa audiência só podia ser marcada para alguns dias depois do tormento,quando o acusado já não estivesse sofrendo as dores dele, porque ‘em outra guisa presume o Direito que com dor e medo do tormento que houve, o qual ainda dura nele, receando a repetição, ratificará a dita confissão ainda que verdadeira não seja”. (CAETANO, 1985, p. 574)

            Quanto ao processo penal, o mesmo mantém uma estrutura de poder próprio da Inquisição, uma vez que se iniciava, segundo o registrado por Pierangelli (2001, p. 56), pelas “inquirições devassas que se processavam de três modos: a acusação, que se inscrevia pelo auto de querela; a denúncia, meio de delação secreta e da súplica dos fracos, que não se inscrevia e a inquirição, normalmente ex officio”. Também é importante assinalar que as “Ordenações Afonsinas apresentam um flagrante combate à vingança privada, que, aliás, era a tônica das legislações a partir do século XIII, como já vimos, em favor do publicismo da justiça penal. É o que se pode observar de todo o livro V, Titulo IV.”.

Importa registrar no presente trabalho a figura do juiz, que ganha corpo e autoridade tendo em vista o sistema processual então vigente. Primeiramente, não é por demais lembrar, que o Estado era nessa época, nos séculos XV e XVI, no dizer de Wehling e Wehling (2007, p. 29):

(...) um amálgama de funções em torno do rei: não havia divisão de poderes ou funções, ao estilo de Montesquieu. O papel da justiça real era diverso, absorvendo atividades políticas e administrativas, ao mesmo tempo em que coexistia com outras instituições judiciais, como a justiça eclesiástica e a da Inquisição. O direito, refletindo tal sociedade e tal Estado, estava longe do sistematismo cartesiano-newtoniano dos juristas-filósofos do liberalismo; era casuístico justapondo diferentes tradições e experiências jurídicas: romanista, regalista, canônica, consuetudinária.

Também, e ainda de acordo com Wehling e Wehling (2007), pela consolidação do poder absoluto das monarquias da Europa ocidental teve o Estado, o controle da justiça pelo soberano como aspecto fundamental. Portanto, nas origens do absolutismo nasce outra justiça, que carrega o autoritarismo da época. No caso da justiça portuguesa, ela compreendeu “a justiça real diretamente exercida e a justiça concedida”, aliás, com aplicação não só em Portugal, como no Brasil. (WEHLING E WEHLING, 2007, p.37).

De Paula (2002, pp. 147-148) afirma que a esta época a organização judiciária do Estado Português se apresentava com uma estrutura de poder hierarquizada, onde o Rei exercia a mais alta e principal função. “Era dele o papel de Governador da Casa da Justiça na corte, tido como o maior e o mais principal Oficial da Justiça”.

Em suma, os autores são unânimes em exaltar e, entre eles, Pierangelli (2001, p. 57), a importância das Ordenações Afonsinas, “principalmente, em razão do seu pioneirismo e da época em que surgiu, constituindo-se no ponto de partida para a posterior evolução do Direito Português, inclusive e principalmente, para as Ordenações Manuelinas e Filipinas, as quais mantiveram essencialmente o plano das primitivas e se limitaram a introduzir alterações em diferentes lugares. As Ordenações Afonsinas são, assim, um marco fundamental na historia do Direito Português”.

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Quanto às Ordenações Filipinas, essas sim, aplicadas por mais de dois séculos, no Brasil, até mesmo depois da independência, de acordo com Pierangelli (2001, p. 63), “tiveram por fonte as outras Ordenações, principalmente as Afonsinas”.

As Ordenações Filipinas que teve vigência durante boa parte no Brasil colonial foi editada em 1603, por Felipe II de Portugal, o que de acordo com Lima Lopes (2002, p.268), “tanto para reorganizar o direito régio português, quanto para agradar os Portugueses”.

Na verdade, as Ordenações Filipinas, tiveram por fonte, as outras duas Ordenações e toda a legislação editada posteriormente. A luta contra a justiça privada é uma constante no Direito Português, procura-se o fortalecimento da justiça pública. Trata-se de uma lei rigorosa, onde o legislador ali só teve em vista conter os homens por meio do terror. Como disse Pierangelli (2001, p. 58), em sua outra obra sobre os Códigos Penais no Brasil, “penas crudelíssimas eram cominadas a infrações muitas vezes sem maior importância. E o catálogo de delitos era tão extenso que um rei africano estranhou, ao lhe serem lidas as Ordenações, que nelas não se contivessem penas para quem andasse descalço”.

Além de bárbaras e atrozes as penas eram desiguais, influindo na sanção a qualidade ou condição da pessoa envolvida, pois se puniam de forma diferente o nobre e o plebeu. A arbitrariedade imperava, atendendo a ideologia autoritária da época, também vigente em Portugal. Tão grande era o rigor das Ordenações, onde a cominação da pena de morte era uma constante, que se conta haver Luis XIV, da França, famoso pelo seu absolutismo, interpelado ironicamente o embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis alguém havia escapado com vida. Nem o direito penal, nem o processo penal, tinham princípios garantidores de alguns direitos básicos do ser humano. E prossegue Pierangelli (2001, p. 58), apresentando um exemplo, previsto na lei, no Titulo I, “em que se mandava punir os hereges com as penas determinadas pelo direito, mas sem esclarecer qual esse direito aplicável”.

No que tange à pena de morte, ainda tendo a obra de Pierangelli (2001) como referência, diversos dispositivos a cominavam e para os mais variados fatos, ordenando-se que o sujeito “morra de morte natural”, nos casos dos feiticeiros, previstos no Titulo III; “morra por morte natural cruelmente”, a respeito dos crimes de Lesa Majestade previstos no Titulo VI; “morra morte natural de fogo”, para os que fazem ‘meida’ falsas ou a despendem, e dos que cerceam a verdadeira, ou a desfazem, hipóteses previstas no Titulo XII; “que sejão queimados, e ella também, e ambos feitos per fogo em pó”, para os que formem com suas parentas e affins, tal o previsto no Titulo XII; “que seja queimado, e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória”, para os que comettem peccado de sodomia e com alimárias, com previsão no Titulo III. (Pierangelli, 2001, pp. 97-98).

Nos crimes de Lesa-Majestade, não raro toda a família do ‘infrator’, deveria ser condenada, por meio da infâmia, ainda que seus membros não tivessem qualquer tipo de culpa, sendo que de acordo com o Titulo VI, parágrafo 9º, 2ª parte: “os filhos são exclusos da herança do pai, se forem varões, ficarão infamados para sempre, de forma que nunca possa haver honra de Cavalleria, nem de outra dignidade, nem Offico; nem poderão herdar a parente, nem lhes seja dada, ou deixada, assi entre vivos, como em ultima vontade, salvo sendo primeiro restitidos à sua primeira fama e stado”. (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98)

Nem mesmo o defunto encontrava a paz, de modo que ainda de acordo com os crimes de Lesa-Majestade, previstos no Titulo VI, “se o culpado nos ditos casos fallecer, antes de ser preso, accusado, ou infamado póla dita maldade, ainda depois de sua morte se póde inquirir contra elle, para que, achando-se verdadeiramente culpado, seja sua memória danada e seus bens confiscados para a Coroa do Reino” (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98).

Outras penas eram previstas, como “açoutes ao pé do Pelourinho com baraço e pregão”, pena prevista no Titulo II ou “açoutes com senhas de cappela de cornos”, no caso de conivência do marido, tal o contido no Titulo XXIV, parágrafo 9º; penas de confisco de bens e perda de toda a fazenda (recursos), ou de suspensão de oficio, para as hipóteses do Titulo XI, parágrafo 1º, “Do Scrivão, que não põe a subscrição conforme a substancia da Carta ou Provisão para EL- Rey assinar”; pena de prisão, como a prevista no Titulo V, “para os que fazem vigílias em Igrejas, ou vódos fora dellas”. (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98)

Havia ainda a pena de degredo, seja por tempo determinado, como o previsto no Titulo CXVII, ou por tempo indeterminado, (até nossa mercê), tal a hipótese prevista no Titulo VIII, parágrafo 4º, “dos que abrem as Cartas del Rey, ou da Rainha, ou de outras pessoas”. Até os magistrados poderiam ser punidos por meio de degredo para a África, como no caso de descumprimento das obrigações referentes à prisão dos malfeitores, previstas no Titulo CXIX. (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98).

No que concerne à eleição dos delitos e acerca das condutas puníveis, tem-se que a Igreja ostenta ainda grande influencia, tanto que o Livro V das Ordenações Filipinas, - seguindo o contido nas Ordenações Afonsinas-, começa elencando os crimes de heresia, antes de qualquer outro, como previstos nos Títulos I, II, III, IV e V. Tal localização é importante para demonstrar a fé na Igreja, que não poderia ser abalada. Somente após os crimes de heresias, aparecem os crimes de Lesa-Majestade e outros crimes relacionados ao Rei e à família real, assim de acordo com os Títulos VI a XI, das Ordenações Filipinas.

Também aqui, tanto quanto nas Ordenações Afonsinas, é possível vislumbrar-se uma desigualdade de tratamentos, ou seja, uma série de privilégios com que eram tratadas as pessoas de acordo com a sua condição social. Por conseguinte, de acordo com o disposto no Titulo CXIX, havia restrição à prisão dos Fidalgos de “grandes stados e poder”, que não poderiam ser presos senão por um “nosso special mandado”. (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98)

Em regra, pelo Titulo CXXXIII, ao tratar dos Tormentos, excluía os:

(...) Fidalgos, Cavalleiros, Doutores em Cannonnes, ou em Leis, ou Medicina, feitos em Universidade per exame, Juízes e Vereadores de alguma Cidade, não serão mettidos a tormento, mas em lugar delle lhes será dada outra pena, que seja ao arbítrio do Julgador, salvo em crime de Lesa Majestade, aleivosia, falsidade, moeda falsa, testemunho falso, feitiçaria, sodomia, alcoavitaria, furto: porque segundo Direito, nestes casos não gozão de privilegio de Fidalguia, Cavallaria, ou Doutorado, mas serão atormentados e punidos, como cada um outro do povo.

É de se ver, portanto, que a disparidade de tratamento, se repetia durante as Ordenações Filipinas, sendo que excepcionalmente não haveria privilégios, dependendo também do interesse que estava em jogo. Exemplifica-se com o disposto no Titulo XII, parágrafo 2º, que: “neste crime de moeda falsa, ninguém gozará de privilegio pessoal, que tenha de Fidalgo, Cavallero, Cidadão, ou qualquer outro semelhante, porque sem embargo delle, será atormentado e punido como cada hum do povo, que privilegiado não seja”. (PIERANGELLI, 2001, p. 97-98)

De acordo com Pierangelli (1983, p. 64), em sua obra sobre a evolução histórica do Processo Penal Brasileiro, no que tange ao processo penal, os crimes eram divididos em particulares e públicos. Nos crimes particulares, a acusação dependia da querela da vitima, seguida da inquirição sumária, do corpo de delito e da pronuncia.

Nos crimes públicos,

(...) a acusação estava na dependência: da querela ou da denuncia; da caução das custas, emenda e satisfação; do corpo de delito e da pronuncia ou da devassa, como instrumento do procedimento oficial do Juiz, seguida de inquirição judicial das testemunhas, isto é, de sua repergunta e confrontação em presença do réu, e, afinal, da pronuncia. (Pierangelli, 1983, p. 64)

Diga-se que a pronúncia, que era a sentença do juiz que declarava o réu suspeito do delito, que o tornava objeto da devassa ou da querela contra ele, colocando-o no rol dos culpados, “tinha por base a confissão, os tormentos, os instrumentos, as testemunhas, o corpo de delito e os indícios de autoria”. (PIERANGELLI, 1983, p. 64).

As causas públicas podiam ser intentadas por qualquer cidadão. Já as causas particulares, somente pela parte ofendida. Por outro lado, o conhecimento dos crimes chegava a juízo por meio de devassas, inquirições, querelas e denúncias. Segundo Pierangelli (1983) “devassas eram inquirições para a informação dos delitos e que se classificavam em devassas gerais e devassas especiais (...), as devassas gerais sobre delitos incertos, eram tiradas anualmente, quando os juízes começavam a servir em seus cargos, (...) deviam terminar dentro de trinta dias depois de começadas; as especiais deviam começar dentro de oito dias depois do sucesso, exceto nos casos de incêndio e de flagrante delito, e terminar dentro de trinta dias”. (PIERANGELLI, 1983, p. 65).

Importa esclarecer que, como eram procedidas sem citação da parte, as devassas “não eram consideradas inquirições judiciais para o efeito de julgamento, sem que as testemunhas fossem reperguntadas”. De acordo com Pierangelli (1983, p. 65), o numero máximo de testemunhas perguntadas nas devassas não poderiam exceder o numero de trinta. “A doutrina em geral classifica as devassas, como originária do direito canônico”.

As querelas, segundo o mencionado autor, eram as acusações que qualquer do povo fazia nos crimes públicos e pelas partes ofendidas nos crimes particulares, devendo ser instrumentalizadas pelo auto de querela. Em ambos os casos, “querela era, portanto, a delação que alguém fazia no juízo competente, de um fato delituoso, ou no interesse público, ou, ainda, como ofendido, do que se lavrava o auto de querela”. (PIERANGELLI, 1983, p. 65)

Segundo Pierangelli, a denúncia, “era a comunicação feita à justiça do cometimento de um crime público, para que o juiz procedesse de oficio. Assemelha-se ao que hoje denominamos de notitia criminis. Os denunciantes faziam a comunicação ao juiz acerca da existência de um crime ou de seu autor, sem querer tomar parte ativa no procedimento”. (PIERANGELLI, 1983, p. 68)

O acusador era aquele que perseguia alguém em juízo, sem interesse próprio, deixando, por conseguinte o procedimento por conta da justiça. “A denúncia só tinha lugar nos delitos que admitiam a devassa ou naqueles em que a lei expressamente a facultava. (...) A única solenidade da denúncia era o juramento. O denunciador, na hipótese do denunciado ser ‘achado sem culpa’, era condenado nas custas” (PIERANGELLI, 1983, p. 68).

Quanto aos tormentos, “como vimos, eram perguntas feitas pelo juiz ao réu de crimes graves, a fim de compeli-lo a dizer a verdade mediante tortura (tratos no corpo)”. Pierangelli (1983, p. 68), citando Almeida Junior (1920), esclarece que os “tormentos só podiam ser postos em prática ocultamente e depois de acusação escrita e de graves indícios, e só em virtude de decisão judicial, da qual cabia recurso, como se tratasse de sentença final”. Mas, como o demonstrado alhures, haviam pessoas excluídas dos tormentos, tais como “o fidalgo de solar, o cavaleiro de espora dourada, o doutor em leis ou em física, os vereadores, ressalvado o crime de lesa majestade, falsidade, cárcere privado e feitiçaria”.

Assim, o rigor e a iniqüidade contidos no Livro V, das Ordenações do Reino, é marca registrada e privativa da legislação da época. Contudo, há que se considerar essa legislação tendo-se em vista o momento histórico que se vivia. Lima Lopes (2002, p. 268) aponta que as Ordenações Filipinas não eram um código no sentido moderno do termo, mas uma consolidação de direito real, as quais são criticadas especialmente pelas contradições e repetições, “perfeitamente compreensíveis quando se sabe que nem pretendiam ser um código, nem desejava o rei castelhano impor novidades a Portugal, preferindo manter o que já havia”.

Penas severas e cruéis, afirmação de privilégios, tipificação de condutas absolutamente sem sentido, como o crime de heresia, prevista no Titulo I, que pertencia aos Juízes Eclesiásticos; ou o crime de Feitiçaria, do Titulo II; ou, mesmo o crime de Mexerico previsto no Titulo LXXXV. Também no Brasil encontramos exemplos da extrema crueldade dessa legislação. Servindo-nos do exemplo de Pierangelli, em sua obra sobre os Códigos Penais no Brasil, (pg.59), no caso de Tiradentes, acusado e condenado de crime de lesa majestade, foi enforcado, esquartejado, sendo os seus membros fincados em postes colocados à beira das estradas nas cercanias da Vila Rica, com “slogans destinados a advertir ao povo sobre a gravidade dos atos de conspiração contra o monarca (à época, D. Maria, a Louca). As inscrições diziam que ninguém poderia trair a rainha, porque as próprias aves do céu se encarregariam de lhe transmitir o pensamento de traidor. Ainda quanto Tiradentes, impôs-se a pena de infâmia até a sua quarta geração”.

Para Bruno (2003, p. 101), as Ordenações Filipinas, devem ser entendidas dentro de sua época, isto é o Século XVI, refletindo os costumes e princípios jurídicos então vigentes. Punia-se tudo e quase tudo era punido com a pena de morte. No dizer do mestre pernambucano “a legislação lusitana é, portanto, apenas um exemplo daquelas que vigeram no período do absolutismo monárquico, contra a qual se levantaria com toda a força da intima simpatia humana, a voz de Beccaria”.

Segundo Miranda (1981), enquanto as Ordenações Afonsinas resultaram da necessidade da afirmação nacional, após a vitória de Aljubarrota, as Ordenações Manuelinas tiveram como fatores principais a ambição pessoal do monarca e a necessidade de aproveitar, no então novo código, as doutrinas romanistas do poder absoluto dos reis. As Ordenações Filipinas, por sua vez, foram elaboradas por reis espanhóis com ato de sedução, ou seja, tentativa, por parte dos Filipes, de cativar o povo português, bem como na intenção de reagir contra o realce do Direito Canônico.

De acordo com Faoro (2000, p. 84):

As ordenações Filipinas foram basicamente e principalmente o estatuto da organização político-administrativa do reino, com a minudente especificação das atribuições dos delegados do reino, não apenas daqueles devotados à justiça, senão dos ligados à corte e à estrutura municipal. Eles respiram, em todos os poros, a intervenção do Estado na economia, nos negócios, no comercio marítimo, nas compras e vendas internas, no tabelamento de preços, no embargo de exportações aos países mouros e à Índia. A codificação expressa, além do predomínio incontestável e absoluto do soberano, a centralização política e administrativa.

2.4. ORDENAÇÕES NO BRASIL

Segundo Prado (1999), as Ordenações Afonsinas foram publicadas no reinado de Dom Afonso V e vigoraram de 1446 a 1520, servindo de modelo para as ordenações posteriores, mas não tiveram aplicação no Brasil. Também, com relação às Ordenações Manuelinas, estas passaram a vigorar no Brasil poucos anos após a sua descoberta, de 1514 a 1603, após o inicio da exploração Portuguesa, não tendo sido verdadeiramente aplicadas porque a Justiça era realizada pelos donatários. Ainda, segundo Prado (1999), os ordenamentos citados não chegaram a ser eficazes, em face da situação peculiar reinante na Colônia.

Assim, muito embora, formalmente, as Ordenações Manuelinas estivessem vigorando na época das capitanias hereditárias, eram abundantes as determinações reais, especialmente decretadas para a nova colônia, as quais, aliadas às cartas de doação com força semelhante à dos forais, abacinavam as regras do código unitário. O arbítrio dos donatários, na prática, é que estatuía o Direito empregado e, como cada um tinha um critério próprio, era exatamente caótico o regime jurídico da América. (PRADO, 1999, p. 115)

Por sua vez, Dotti (1998), afirma que embora formalmente estivessem vigorando ao tempo das capitanias hereditárias, as Ordenações Manuelinas não constituíam a fonte do direito aplicável no Brasil, pois o arbítrio dos donatários, na prática, é que impunha as regras jurídicas.

Ao capitão era dada a faculdade de nomear ouvidor, o qual conhecia das apelações e agravos de toda a capitania e de ações novas até dez léguas de distancia onde se encontrasse. A alçada do ouvidor era de cem mil réis nas causas cíveis, enquanto nas questões criminais o capitão e o ouvidor tinham competência para absolver ou para condenar impondo qualquer pena, inclusive a de morte, salvo tratando-se de pessoa de ‘mor qualidade’, pois nesse caso, excetuados os crimes de heresias, traição, sodomia e moeda falsa, só tinham alçada até dez anos de degredo e cem cruzados de multa (DOTTI, 1998, p. 42).

Também, nesse sentido é a opinião de Bruno (2003, p. 99) ao afirmar que:

(...) no regime das capitanias, o que de fato regia era o arbítrio do donatário, fonte viva de um Direito informal e personalista, com o qual se pretendia manter a ordem social e jurídica em núcleos tão mesclados de homem de ambição e aventura ou de delinqüentes degredados ou vindos a procurar aqui espontaneamente couto e homizio, que, longe da metrópole, não se sentiam muito presos às habituais limitações jurídicas e morais.

E prossegue Bruno (2003) acrescentando que, posteriormente, ao tempo dos governos gerais, mais centralizada e mais bem disciplinada a administração da justiça, tornou-se um pouco mais efetivo o império da lei, pois “já se encontrava, então, uma vigilância e uma censura possível, com o quadro de funcionários destinados à aplicação e execução das medidas penais, e ao arbítrio dos governantes se sobrepuseram pelo menos em principio, as Ordenações vigentes, completadas pelas outras normas de valor jurídico procedentes do Reino. Mas de fato, na prática, não se deu grande remédio ao regime de abusos e injustiças, que continuou sempre”. (BRUNO, 2003, p.100)

Registre-se, por oportuno, que, na época do descobrimento do Brasil, Portugal já havia consolidado suas Ordenações, as quais centralizavam o poder na figura do rei.

Tratava-se, portanto, de um direito que atendia aos interesses e objetivos de ambos os Países e ambas as instituições se imbricavam no concreto da vida cotidiana, para atender aos interesses das classes dominantes: o rei e o clero na Metrópole e posteriormente na Colônia, e os poderosos na Colônia.

No dizer de Carvalho, (1980, p. 29):

Os juristas e magistrados exerciam um papel de maior importância na política e na administração portuguesa e posteriormente na brasileira. Tratava-se de uma elite sistematicamente treinada principalmente através do ensino de direito na Universidade de Coimbra, fundada em 1290. E o direito ensinado em Coimbra era profundamente influenciado pela tradição romanística trazida de Bolonha. O direito romano era particularmente adequado para justificar as pretensões de supremacia dos reis. Tratava-se de um direito positivo cuja fonte era a vontade do Príncipe e não o poder da Igreja ou o consentimento dos barões feudais.

E, essa supremacia surge com os Estados Absolutistas, inaugurando a Idade Moderna. Mas, é bom que se diga que tal supremacia não anulou o poder eclesiástico. Assim, considerando-se a existência de um direito colonial no Brasil, segundo Wehling e Wehling, (2007, p. 24), “no caso das normas dirigidas pelo Estado português à colônia, a propósito de questões especificas”, bem como no caso, “da existência de uma sociedade cristã, na qual o direito ainda flui de fundamentos morais e estes de princípios religiosos (...), longe da dicotomia Kantiana entre direito e moral, ou direito e religião”. Encontra-se assim, uma ‘concepção integrada do Universo’, fundamentada na religião:

Fluem da religião o papel justiceiro do Rei, a dependência da lei positiva à lei natural e a associação entre crime e pecado que aparece tão reiteradamente na legislação penal do Antigo Regime, inclusive no Livro V das Ordenações (Wehling e wehling, 2007, p. 81).

Também, nesse sentido, afirma Siqueira (1996, p. 497), que no Brasil, ”vigiriam tríplices leis; leis régias, leis eclesiásticas e leis inquisitoriais, que, muitas vezes, se misturaram para atender às exigências de dois planos: o da defesa da ortodoxia, da Igreja, e o da defesa da unidade das consciências do trono”.

Segundo Wolkmer (2015), em todos os momentos distintos de sua evolução, - Colônia, Império e Republica-, a cultura jurídica nacional foi sempre marcada pela ampla supremacia do oficialismo estatal sobre as diversas formas de pluralidade de fontes normativas que já existiam, até mesmo, antes do longo processo de colonização e da incorporação do Direito da Metrópole.

A condição de superioridade de um Direito Estatal que sempre foi profundamente influenciado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito colonizador alienígena- segregador e discricionário com relação à população nativa-, revela mais do que nunca a imposição, as intenções e o comprometimento da estrutura elitista de poder. Desde o inicio da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, uma ordem normativa gradativamente implementa as condições e as necessidades essenciais do projeto colonizador dominante. A edificação deste imaginário jurídico estatal, formalista e dogmática está calcada doutrinariamente, quer no idealismo jus naturalista, quer no tecnicismo positivista. Cumpre assinalar, no entanto, que os traços reais de uma tradição subjacente de pluralismo jurídico podem ser encontrados nas antigas comunidades socializadas de índios e negros no Brasil colônia. (Wolkmer, 2015, pp. 74-75).

2.5. RELAÇÃO METRÓPOLE COLÔNIA

A história do Brasil, durante o longo período colonial, pode ser estudada sob vários aspectos que vão contribuir para a formação de uma ordem jurídica autoritária e centrada na ideologia do colonizador. Assim, qualquer que seja o viés apresentado haverá sempre uma relação de submissão absoluta, entre a colônia e o colonizador.

Por conseguinte, abordando-se inicialmente o modo de produção do Brasil Colônia, pode-se registrar um trabalho escravo que se contrapunha ao modo de produção Europeu, já que o trabalho servil, próprio do feudalismo, não mais existia. Admitia-se, contudo, na Colônia aquilo que não mais era admitido na Metrópole.

No registro de Wolkmer (2002, p. 37), em sua obra sobre a história do direito no Brasil, “os primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil, colonizado sob a inspiração doutrinária do mercantilismo e integrante do Império Português, refletiu os interesses econômicos da Metrópole e, em função deles, articulou-se”.  Nessa perspectiva, prossegue o citado autor, aduzindo que:

(...) o Brasil-Colonia só poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer concorrência, devendo a Colônia adquirir tudo o que a Metrópole tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir seus interesses; existia para ele e em função dele. (WOLKMER, 2002, p. 38).

Analisando-se agora a formação social do período colonial, podemos dizer que a mesma também foi marcada pela existência de grandes latifúndios e a massa de trabalhadores escravos. O objetivo era a exportação dos produtos. Deste modo:

(...) a organização social define-se, de um lado, pela existência de uma elite constituída por grandes proprietários rurais, e de outro, por pequenos proprietários, índios, mestiços e negros, sendo que entre os últimos pouca diferença havia, pois sua classificação social era quase a mesma. (WOLKMER, 2002, p. 39)

Quanto à estrutura política, registre-se a existência de uma instância de poder, que alem de incorporar o aparato burocrático e profissional da administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos objetivos de sua população de origem e da sociedade como um todo. Nessa situação:

(...) a Metrópole instaurou extensões de seu poder real na Colônia, implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocracia patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terras. (...) A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu construir um modelo de Estado que defenderia sempre, mesmo depois da Independência, os intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção (WOLKMER, 2002, p. 40).

Havia, então, uma acumulação estranha de uma herança colonial burocrática, patrimonialista e autoritária, e de uma estrutura socioeconômica voltada para o interesse exclusivo dos “donos do poder”.

Por conseguinte, dentro dessa concepção de idéias, existia um mundo que se conformava ao modelo econômico mercantilista, por uma administração centralizadora e burocrática, calcada na racionalidade escolástico-tomista e nas teses do absolutismo elitista português.  Havia, então, como herança uma estrutura feudal-mercantil embasada em raízes senhoriais que reproduziam toda uma ideologia de poder imutável e incontestável. Segundo, Wolkmer (2002, p. 43) tratava-se:

(...) de uma cultura senhorial, escolástica, jesuítica, católica, absolutista, autoritária, obscurantista e acrítica. Em tal contexto, o principal pólo irradiador da formação cultural da nova Colônia foi a solidificação da catequese católica e do ensino do humanismo escolástico, transplantada predominantemente pela Companhia de Jesus.

Em suma, o empreendimento do colonizador lusitano caracterizando muito mais uma ocupação do que uma conquista trazia consigo uma cultura considerada mais evoluída, herdeira de uma tradição jurídica milenária proveniente do Direito Romano. Sobre a cultura da colonização, escreve Bosi (1992) que se trata de uma cultura letrada, ou seja:

(...) é rigorosamente estamental, não dando azo à mobilidade vertical, a não ser em raros casos de apadrinhamento que confirmam a regra geral. O domínio do alfabeto, reservado a poucos, serve como divisor de águas entre a cultura oficial e a vida popular. O cotidiano colonial-popular se organizou e se reproduziu sob o limiar da escrita. (BOSI, 1992, p. 25)

2.6. A JUSTIÇA NA COLÔNIA

Portanto, para se entender a justiça no período colonial, impõe-se entender o seu quadro organizacional na estrutura de poder apresentada acima. Assim, cabe enfatizar que a justiça no período das capitanias hereditárias, estava entregue a vontade dos senhores donatários, que exerciam as funções de administradores, chefes militares e juízes. Detendo o poder, diziam o direito de forma incontestável.

Segundo Wolkmer (2002, p. 58), tal situação tende a se modificar, em parte, com o advento dos governadores-gerais, “evoluindo para a criação de uma justiça colonial e para a formação de uma pequena burocracia composta por um grupo de agentes profissionais. (...) Por orientação das Cartas de Doação, a primeira autoridade da Justiça Colonial foi o cargo de ouvidor, designado e subordinado aos donatários das capitanias por um prazo de três anos”.

Mais tarde, em 1549, com a implantação do primeiro governo geral, os ouvidores passaram a ser considerados ouvidores-gerais, alargando-se as suas responsabilidades burocráticas e fiscais, com mais independência e poder. A esse respeito, Schwartz (1979, p. 28) escreveu que o novo ouvidor-geral, “refletiu não só o desejo da Coroa de melhorar a situação da justiça, mas também sua vontade de aumentar o controle real centralizado. O interesse da Coroa pela área cresceu a partir de 1550, e o ouvidor geral, na qualidade de funcionário real de confiança, a cada passo assumiu novas funções e responsabilidades em nome do interesse real”.

Não há duvida de que o ouvidor-geral acabou transformando-se num dos cargos mais importantes durante a segunda fase da colonização, juntamente com o de governador-geral e de provedor-mor da fazenda. Para Martins Junior (1979, p. 221), “por resolver questões de justiça e os conflitos de interesses, o ouvidor-geral detinha um poder quase sem limites, sujeito ao seu próprio arbítrio pessoal; de suas decisões, na maioria das vezes não cabia apelação nem agravo”.

Mas, na medida em que as cidades, a população e os conflitos cresciam também se alargava o quadro de funcionários e autoridades da justiça. Para Wolkmer (2002, p. 59), a organização judiciária, reproduzia na verdade a estrutura portuguesa, “apresentava uma primeira instância, formada por juízes singulares que eram distribuídos nas categorias de ouvidores, juízes ordinários e juízes especiais. Por sua vez, estes se desdobravam em juízes de vintena, juízes de fora, juízes de órfãos, juízes de sesmarias”. Na segunda instancia, tínhamos os órgãos colegiados, onde se agrupavam os “Tribunais da Relação que apreciavam os embargos. Seus membros designavam-se desembargadores e suas decisões acórdãos, Já o Tribunal de Justiça Superior, de terceira e ultima instância, com sede na Metrópole, era representado pela Casa de Suplicação, uma espécie de Tribunal de Apelação”.

É certo que tais tribunais superiores, (Desembargo do Paço e Casa de Suplicação), embora previstos para ter desempenho no Brasil, foram sempre “instituições remotas para a maioria dos brasileiros”. (WOLKMER, 2002, p.60)

Quanto à magistratura, importa apresentar algumas considerações que nos permita conhecer as suas origens históricas, e tentar entender a sua estrutura de poder. Assim, de acordo com Wolkmer, os magistrados tinham que revelar lealdade e obediência a Coroa, o que explica sua posição e seu poder em relação aos interesses reais, resultando em benefícios nas futuras promoções e recompensas. Na verdade, a magistratura lusa, de cujo núcleo nasceu a brasileira, ainda que tenha emergido de uma estrutura burocrática, adquirira condição de organização moderna e profissional, habilitando-se a tarefas de natureza política e administrativa. Portanto, “a carreira do magistrado estava inserida na rigidez de um sistema burocrático que delineava a circulação e a prestação de serviço na Metrópole e nas colônias”. (WOLKMER, 2002, p. 63).

Em geral, ainda de acordo com Wolkmer (2002, p. 64), o exercício da atividade judicial era regido por uma série de normas que objetivavam proibir envolvimento maior dos magistrados com a vida local. Pode-se enumerar algumas dessas regras, tais como a designação temporal para o exercício da judicatura; as proibições de casamento sem licença especial; a proibição de pedir terras na sua jurisdição e de exercer o comercio em proveito pessoal. Não há duvida de que tais regras eram freqüentemente transgredidas, tanto pelos juízes portugueses que tinham a intenção de permanecer no Brasil, como pelos magistrados brasileiros.

Por tratar-se de suporte essencial ao governo real, o acesso à magistratura, “enquanto função privilegiada impunha certos procedimentos de triagem, com critérios de seleção baseados na origem social”, o que não afastava o apadrinhamento e a venda clandestina. Mas, de tal seleção, havia restrições aos descendentes de comerciantes ou negociantes, bem como aos cristãos novos e aos ‘impuros de sangue’, como os mestiços, mulatos, judeus e outros. (WOLKMER, 2002, p. 64)

Portanto, para ingressar na magistratura, era fundamental que além da origem social, o candidato tivesse graduação na Universidade de Coimbra, de preferência em Direito Civil ou Canônico, alem da prática de dois anos.

Schwartz (1979), analisando a administração da justiça no período colonial revela a inter relação e a convivência de duas modalidades complexas e opostas de organização sócio-política: a) Relações burocráticas calcadas em procedimentos racionais, formais e profissionais; b) Relações primárias pessoais baseadas em parentesco, amizade, apadrinhamento e suborno.

Para Schwartz (1979, p. 251), o “entrelaçamento desses dois sistemas de organização, - burocracia e relações pessoais-, projetaria uma distorção que marcaria profundamente o desenvolvimento de nossa cultura jurídica institucional. Essa particularidade reconhecida na sociedade colonial veio a ser o fenômeno identificado como o abrasileiramento dos burocratas, ou seja, a inserção numa estrutura de padrões rigidamente formais de práticas firmadas em laços de parentesco, dinheiro e poder.”.

Tal sistema, - o abrasileiramento-, da magistratura significava a corrupção de metas essencialmente burocráticas, porquanto os critérios de validade passavam a ser imputados a pessoas, à posição social e a interesses econômicos. E conclui Schwart, (1979, p. 252) “que evidentemente, os magistrados, em diversas ocasiões, empregaram o poder e a influencia do seu cargo para obter vantagens pessoais, conveniências ou para proteger suas famílias e dependentes. (...) Freqüentemente o abuso do cargo se dava para a obtenção de vantagens pessoais diretas, o que implicava favorecimento e suborno capazes de subverter a justiça”.  Assim, o comportamento profissional de setores da magistratura era constantemente afetado por uma gama de relações primárias que iam desde o casamento colonial, como forma de incorporação na sociedade local e de aquisição de riqueza e propriedades, como também o fortalecimento dos laços de amizade e de compadrio. Em suma, buscavam o acesso fácil ao dinheiro, prestigio e posse de terras de tradicionais famílias ligadas à criação de gado e ao plantio de cana de açúcar. O domínio de terras demonstrava poder e riqueza, assim nada mais natural do que aspirar a permanência na Colônia, desinteressando-se por promoções funcionais.

Diante do exposto, é indiscutível, portanto, reconhecer como registra Wolkmer, (2002, p. 68) que “no Brasil-Colonia, a administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação colonial”. Por conseguinte, não há dúvida de que o governo português favoreceu a emergência de uma elite de funcionários reais que ocupavam um espaço estratégico no processo de dominação política, exploração econômica e controle institucional. A organização judicial “estava diretamente vinculada aos níveis mais elevados da administração real, de tal forma que se tornava difícil distinguir, em certos lugares da colônia, a representação de poder das instituições uma da outra, pois ambas se confundiam”.

Nesta resenha histórica, procurou-se demonstrar o processo ideológico de formação do Direito e Justiça oficial ao longo do Brasil Colônia, bem como uma coexistência antagônica e conflitante de um regime patrimonialismo com uma forma de atuação burocrática. No dizer de Wolkmer “trata-se da adequação, no interior da sociedade colonial, de atitudes e relações não profissionais de dominação tradicional com práticas administrativas profissionais marcadas pela especialização, hierarquia e carreira burocrática” (WOLKMER, 2002, p. 68).

Mas, além das formas convencionais de administração da justiça, produzidas e mantidas pelo Estado no período da colonização, cabe apresentar nesse trabalho, a presença da justiça eclesiástica acolhida e resguardada pela Inquisição. Sabe-se que o Tribunal do Santo Oficio possuía um Regimento Interno, composto por leis, jurisprudência, ordens e regulamentos, sendo os crimes de maior gravidade aqueles considerados contra a fé e contra a moral e os costumes, prevalecendo métodos de ação como a “denuncia”, a “confissão”, a tortura e a “pena de morte” na fogueira. Em que pese nunca ter havido um Tribunal no Brasil, a Inquisição teve atuação marcante na Colônia com a chamada Visitação do Santo Oficio. Acrescenta Wolkmer que “ainda que se destacassem três tribunais em Portugal (Lisboa, Coimbra e Évora), sempre que necessário e nos casos de maior gravidade, os acusados brasileiros eram julgados pelo Tribunal Inquisitorial de Lisboa”. (WOLKMER, 2002, p. 69).

  1. O SANTO OFÍCIO EM AÇÃO

A inquisição na Europa, segundo alguns autores, (Bittar, 2008, p. 112) teve a sua origem provável a partir de 1229, em pleno século XIII, com o tratado de Paris. Visando expurgar a heresia da Europa, cria a Igreja um poderoso sistema de poder, embalado pelo sistema jurídico romano, recém descoberto, contra toda e qualquer espécie de opinião contrária ou diferente da ortodoxia eclesiástica. Sua terrível atuação na Europa foi causa de muita arbitrariedade e violência, que rapidamente se expandiu para todos os lugares onde existia a fé cristã. Não podemos nos esquecer de que a Igreja era a única instituição universal e coesa, com atuação em todos os lugares da terra. Para Bittar (2008, p. 113):

A atuação do Santo Oficio foi-se expandindo para alcançar grande numero de sectos e delatores, de oficiais e juízes, de autoridades eclesiásticas, carrascos, soldados, etc., a ponto de constituir-se num poder temporal irretratável, até mesmo para reis e imperadores, autoridades civis e membros do próprio clero.

Cresceu e expandiu-se o Santo Oficio, organizando-se através de bulas e decretais, bem como manuais de atuação e procedimento, destacando-se entre outros o Manual dos Inquisidores, datado de 1376, de autoria do frei dominicano Nicolau Eymerich.

Especificamente em Portugal, com a Bula Meditatio Cordis, de Paulo III, a Inquisição vem a instalar-se oficialmente em 1547, sem contar com a sua presença e atuação desde 1536. Segundo ainda Bittar (2008, p.114) “o Santo Oficio, em Portugal, atuava através de três grandes centros de organização: Coimbra, Lisboa e Évora”.

Acrescente-se, por outro lado, e de acordo com Wolkmer, que o estabelecimento do Santo Oficio em Portugal teve como ponto de partida a sua posição contrária a Reforma Protestante. Se tal ideologia reformadora foi aceita e absorvida pelos países europeus como a Holanda, Inglaterra e Alemanha, tal não se deu nos países Ibéricos, tanto que pelo Concílio de Trento, (1545-1563), “oficializou-se a divisão de forças, propiciando que a Península Ibérica se convertesse no principal baluarte de reação ao protestantismo”. (Wolkmer, 2015, p. 42).

Dessa situação de disputa ideológica, pode-se afirmar que, se de um lado as idéias de Lutero e Calvino, prosperaram naqueles países capitalistas, na península Ibérica, tal não ocorreu, uma vez que ali perdurava uma escolástica decadente, urdida na reafirmação da fé e dogma, que aniquilaria todo o iluminismo português, pelo alvorecer da inquisição. E assim procedendo, Portugal se afastava do ideário renascentista da modernidade cientifica e filosófica, fechando-se na dogmática eclesiástica da fé e da revelação.

Portanto, é de se concluir que a atuação do Tribunal do Santo Oficio em Lisboa, era primeiramente voltada para o julgamento dos hereges portugueses e, posteriormente, a sua competência se estenderia as heresias cometidas em solo brasileiro, para onde, aliás, grande numero de cristãos novos havia afluído, em fuga pela atuação do Santo Oficio na península ibérica e mais especificamente em Portugal. Nesse sentido, leia-se com Novinsky (1992, p. 14):

Com a ação do Tribunal começa uma nova diáspora dos cristãos novos portugueses, que emigram para o Brasil ou para as colônias portuguesas do Oriente, do mesmo modo que para fora dessa área de influencia, notadamente para a Itália, norte da África, Império Otomano, e posteriormente para Amsterdam, Hamburgo, Salônica etc. O Santo Ofício tratará de estender os seus tentáculos até onde fosse possível alcançá-los. A jurisdição do Tribunal instalado em Lisboa abrange as colônias. E, assim, tivemos no Brasil não somente as chamadas Visitações, isto é, a presença periódica de um Inquisidor, mas também uma estrutura permanente, através dos Comissários, enviados pela Coroa, e os chamados familiares, isto é, funcionários da Inquisição escolhidos entre os membros da população, incumbidos de espionagem continuada. Durante o período filipino, sendo a Inquisição Espanhola mais antiga e melhor estruturada que a Portuguesa, cuidou-se de facultar a esta última mais perfeita organização.

Diga-se, por oportuno, que o “Brasil, não chegou a institucionalização definitiva da Inquisição em seu solo, contando apenas com uma estrutura burocrática permanentemente estruturada a serviço do Santo Oficio português. Assim, o Santo Oficio data, em Portugal, de 1536, tendo atuação no Brasil, que cessa apenas no século XIX, em 1810” (Bittar, 2008, p. 115).

Ainda de acordo com o autor, “a atuação da Inquisição no Brasil se deu por meio de visitas e missões especificas desempenhadas por funcionários do Santo Oficio de Portugal, o que se iniciou em 12 de Fevereiro de 1579, durante o reinado do Cardeal D. Henrique, quando o bispo e governador da Bahia, D. Antonio Barreiros, é nomeado para atuar com amplos poderes como um comissário do Santo Oficio” (BITTAR, 2008, p.115).

O Brasil, terra de degredo, de privilégios, de corrupção, passa a ser o destino preferido dos cristãos novos, hereges, blasfemos e toda sorte de condenados, tudo para escapar das garras da Inquisição e do próprio poder secular dos monarcas. Por via de conseqüência, a presença da Inquisição se faz sentir “por meio dos chamados ‘familiares’ e ‘comissários’ do Santo Oficio, que atuavam por meio de missões, detectando e julgando as heresias, para que fossem definitivamente cumpridas em Portugal” (BITTAR, 2008, p. 116).

E de acordo com Novinsky (1992, p. 111):

As regiões do Brasil mais procuradas e vigiadas pelo Santo Oficio da Inquisição são sempre as de maior prosperidade. Assim, em fins do século XVI, o foco principal é o Nordeste, porem à medida que vai se desenvolvendo o Sul, sua ação estende-se também para essa área e em fins do século VVII e princípios do seguinte, já a maioria dos denunciados são da região das Minas.

3.1. O SANTO OFÍCIO E SUA ATUAÇÃO NO BRASIL COLÔNIA

Primeiramente, registre-se um período de normas jurídicas elaboradas para reger a implantação e permanência das capitanias hereditárias. Posteriormente, leis para reger as relações dos colonizadores com os povos indígenas, como, por exemplo, o Regimento de 1548, com instruções gerais da parte de D. João III (1502-1557) à administração de Tomé de Souza. Também as Ordenações Filipinas como vimos de particular importância para a construção histórica do Direito no Brasil, sendo o Livro V, o que trata de matéria criminal.

Também como visto, neste texto legal não havia qualquer distinção entre ‘crime’ e ‘pecado’, o que fez com que o próprio Estado assumisse a dianteira quando se tratasse da execução das punições previstas para os infratores do Direito Eclesiástico. Por toda a Península Ibérica não se admitia, igualmente, a realização de qualquer forma de culto ou fé que não fosse aquele autorizado pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Ressalte-se que o julgamento dos envolvidos pelos processos inquisitoriais representava o exercício da competência eclesiástica, que se definia por interferir sobre os comportamentos desviantes dos cânones e imposições de fé reinantes à época. Assim, era o direito canônico, o direito da comunidade religiosa dos cristãos, ou o conjunto de regras aplicáveis para o julgamento dos casos que envolvessem delitos religiosos. Porém, se fosse o caso, após o julgamento do processo inquisitorial, de aplicação da pena de execução, cumpria ao poder temporal, e não espiritual, o cumprimento da sentença condenatória de execução. Desse modo o poder temporal abria mão da competência de julgamento desses crimes em favor do Santo Oficio. De acordo com o disposto no capitulo I, livro V, dos hereges e dos apóstatas, das Ordenações Filipinas:

O conhecimento do crime da heresia pertence principalmente aos juízes eclesiásticos. E porque eles não podem fazer as execuções nos condenados no dito crime por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges, os devem remeter a nós com as sentenças que contra eles derem, para os nossos desembargadores as verem, aos quais mandamos que as cumpram, punindo os hereges condenados, com por direito devem.

Ainda mais clara é esta passagem que delimita a competência eclesiástica, prevista no capitulo III, 64, sobre a concorrência dos direitos seculares e canônico.

E quando o caso, de que se trata, não for determinado por Lei, Stilo, ou costume de nossos Reinos, mandamos que fosse julgado, sendo matéria que traga peccado, por os Sagrados Cânones. E sendo matéria, que não traga peccado, seja julgado pelas Leis Imperiais, posto que os Sagrados Cânones determinem o contrário.

De acordo com Bittar (2008), para o exercício de sua competência, portanto, à época em que se pronuncia em terras brasileiras, consideradas extensão das terras da metrópole, inclusive para efeitos legais, o Santo Ofício:

(...) possuía não somente uma larga tradição européia, com também diversas fontes legislativas civis e religiosas, manuais de inquisidores, julgadores, funcionários, uma larga e ampla burocracia, bem com fontes de direito canônico bem organizadas e sistematizadas, tais como: ius divinum, legislação canônica, os decretos, as decretais, as constituições pontificais, os costumes, os princípios recebidos do direito romano (BITTAR, 2008, p. 120).

Por outro lado, nunca é demais repetir que o procedimento empregado para a perseguição à heresia, à blasfêmia, à bruxaria e a outros males que afetavam a Igreja Católica e o Santo Oficio era o inquisitivo, surgido em meados do século XII, na Europa, e amplamente empregado como forma de atribuição de liberdade de investigação, acusação e prova pelo próprio juiz da causa, o que levou também ao uso da tortura como forma de obter a confissão como a prova por excelência. Assim, a tortura foi admitida contra os heréticos por uma bula de Inocêncio IV, em 1252.

De todo o exposto é importante registrar as anotações de Lana Lage sobre a atuação do Santo Ofício no Brasil, que nos dão uma idéia da realidade da época.

3.2. APONTAMENTOS SOBRE O SISTEMA PROCESSUAL INQUISITÓRIO ADOTADO PELO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO NA VISÃO DE LANA LAGE DA GAMA LIMA

A autora em seu trabalho sobre o Santo Ofício Português, intitulado “O Tribunal do Santo Oficio a Inquisição: o suspeito é o culpado”, começa ressaltando a figura do Juiz, que concentrava as funções de investigador e juiz, por isso encerrava em sua mãos um enorme poder. Vimos que essa era uma das características marcante do sistema inquisitorial romano e não poderia ser diferente na Inquisição Medieval. Assim, a não distinção entre a fase de instrução e a fase probatória, onde a figura do Inquisidor se confundia com a função do julgador, já trazia desde o começo um desfecho trágico para o investigado. Na realidade o mesmo não possuía qualquer direito, tais como: o de defesa, o de contraditar a acusação, o de ser processado em liberdade, o de igualdade com o acusador e outros, que só tiveram existência com o movimento Iluminista.

Em seu estudo, Lima (1999, p.02), citando Tomás Y Valiente (1980), apresenta vários aspectos da legislação e das práticas processuais do Tribunal do Santo Oficio, que o tornavam um dos mais temidos do seu tempo.

Primeiramente, é importante registrar que o processo iniciava-se desde que se faziam as primeiras diligências para averiguação da culpa, podendo o acusado ser submetido à prisão preventiva, com ou sem seqüestro de bens, assim que se acumulavam indícios contra ele, portanto antes de qualquer acusação formal. Sobre a culpabilização do réu nos tribunais inquisitoriais, o processo é orientado para comprovar a veracidade de umas suspeitas iniciais, prevalecendo a presunção de culpabilidade. À margem de qualquer declaração de direitos, podemos dizer que o processo buscava a condenação a qualquer preço, pois alimentado permanentemente com novas acusações e através de um sigilo absoluto. (LIMA, 1999, p. 02)

Outra característica marcante do processo inquisitorial era a reiterada busca da auto-acusação do réu, expressada na pregação constante para que confessasse suas culpas e no uso da tortura como forma de extrair confissões. Não se pode esquecer de que esse estilo de processo de origem romana, conhecido por inquisitio, elevou a confissão à categoria de "rainha das provas".  A tortura era prática normal utilizada pelos inquisidores e, quando conseguida a confissão, tanto esta como os métodos utilizados para obtê-la faziam parte do processo, estando prevista nas regras sobre as práticas judiciais da Inquisição, bem como em regras para a sua perfeita aplicação. Sobre a legitimação pelo Santo Ofício, quer Espanhol, quer Português, da confissão ainda que conseguida mediante tortura, era pelo fato de ser a confissão uma forma de arrependimento, e de acordo com a sua conotação sagrada era também uma forma de salvação da alma. (LIMA, 1999, p. 02)

Prossegue a autora, trazendo ainda os ensinamentos de Tomás Y Valiente, que registra uma característica tão fundamental que podemos dizer ser inerente ao sistema inquisitorial, qual seja a amplitude do arbítrio do juiz. Por conseguinte, além de ser muito maior nos tribunais da Inquisição do que nas outras justiças suas contemporâneas, por que devido à existência de um grande número de questões não resolvidas normativamente ou tratadas com ambigüidade pela legislação que orientava as suas ações. (LIMA, 1999, p. 02)

Segundo ainda Valiente, o arbítrio do inquisidor poderia influir na marcha processual tornando-o mais célere ou mais lento. Não há duvida de que a figura do inquisidor era emblemática porque emblemática era a própria instituição, que acreditava ser a justiça praticada uma forma sagrada de misericórdia e arrependimento, daí o gravado em seus estandartes “misericórdia e justiça”. (LIMA, 1999, p. 02)

Por conseguinte, como o processo girava em torno da autoridade do inquisidor, a sua escolha devia atender a determinados critérios e era rigorosa.  Era exigência para a escolha dos inquisidores, serem os mesmos, pessoas letradas e de boa consciência, prudentes, constantes, honestos, puros e bons. Nessa linha de raciocínio, o modelo concebido para o inquisidor era o do pai e do sacerdote, cabendo-lhe, alem de punir, consolar e animar os réus, obter a confissão e o pedido de perdão para a salvação de suas almas. Paradoxalmente, deviam percorrer os cárceres de quinze em quinze dias, para saber das necessidades dos presos e da existência de maus tratos. Qualificava-se assim a justiça, como uma justiça misericordiosa, que se condoia com a sorte do réu e, lamentava ter que puni-lo. Mas, a punição era obrigatória, pois existia para a sua própria salvação. (LIMA, 1999, p. 03)

Nunca é demais repetir que o regimento inquisitorial dava amplos poderes ao inquisidor a ponto de refutar qualquer apelação ou argüição de suspeição e podendo decretar a prisão sempre que achasse conveniente. (LIMA, 1999, p. 03)

O regimento admitia advogados e procuradores, mas não tinham acesso aos autos completos, apenas parcialmente, não lhes sendo licito conhecer o libelo acusatório e a prova da justiça, em que o nome dos denunciantes ou das vitimas, e as circunstancias que permitissem qualquer identificação da acusação e do delito. Quer dizer uma justiça parcial e desequilibrada porque voltada para a condenação. Cabia, então, ao inquisidor, decidir o que melhor lhe aprouvesse para julgar a causa, nomeando ou dispensando defensores, à revelia dos acusados, não importando se para beneficiá-lo ou prejudicá-lo. (LIMA, 1999, p. 03)

Ao julgar as petições para comutação das penas os inquisidores, levavam em consideração quanto tempo o acusado cumpriu a sua penitência e com que humildade e sinais de contrição.  Assim, ter a pena atenuada dependia de fatores subjetivos interpretados pelo inquisidor, principalmente na analise feita no acusado, levando-se em consideração o seu grau de arrependimento. (LIMA, 1999, p. 04)

Os inquisidores vinculados a julgamentos pessoais, sem nenhuma regra que garantisse a igualdade no tratamento dispensado aos presos, podiam, por exemplo, permitir àqueles que necessitassem deixar o cárcere para negociar algum bem de modo a garantir seu sustento.  É bom lembrar que as despesas do processo eram debitadas na conta do réu.  A justificativa dessa dispensa era por demais interessante, pois era concedida pelo inquisidor, "como e quando lhe parecer ser serviço de Nosso Senhor”. Aliás, é tema recorrente no regimento, que os inquisidores devem cumprir seu ofício "sem consideração de outro respeito humano senão servirem a Nosso Senhor", fórmula que submete todos os direitos dos homens aos interesses da Igreja. (LIMA, 1999, p. 04)

Vale lembrar que, ao se instalar em um território, o tribunal do Santo Ofício obtinha jurisdição universal sobre todos os cristãos que ali estivessem, independentemente de quaisquer privilégios de foro que sua condição social implicasse, incluindo a nacionalidade.  

Sobre o poder e o arbítrio do inquisidor é interessante registrar que o mesmo era um funcionário de um tribunal, com regras rígidas e pré-estabelecidas, como o cumprimento de horário, mas, com liberdade de ação para os atos processuais. Trabalhavam todos os dias exceto os dias considerados feriados religiosos. O calendário de trabalho pré-definido, trabalhando de quinze de março a quinze de setembro, de sete às dez da manhã. Havia um intervalo para a refeição e voltavam às quinze horas, permanecendo até às dezoito horas. De quinze de setembro a quinze de março (meses de inverno) o horário era corrigido em função da claridade, começavam o trabalho as oito e iam até às onze; retornavam as quatorze, permanecendo até as dezessete. (LIMA, 1999, p. 04)

A autora nos dá conta de que o Santo Oficio, teve, ao longo de sua história quatro regimentos gerais (1552, 1613, 1640, 1774), que refletiram conjunturas políticas diversas, aduzindo que o de 1640 era o mais completo. O de 1774 foi fruto da intervenção do Marques de Pombal, que instituindo mudanças profundas, descaracterizou a Inquisição, e submetendo-a aos interesses da Coroa.

Não podemos deixar de registrar algumas passagens do Regimento de 1640, Livro I, Titulo I, parágrafo II, ao traçar o perfil dos inquisidores que exigia serem os mesmos:

(...) naturais do Reino, cristãos velhos de limpo sangue, sem raça de mouro, judeu, ou gente novamente convertida a nossa Santa Fé, e sem fama em contrario; que não tenham incorrido em alguma infâmia publica de feito, ou de direito, nem fossem presos, ou penitenciados pela inquisição, nem sejam descendentes de pessoas que tivessem algum dos defeitos sobreditos: serão de boa vida e costumes, capazes para se lhes encarregar qualquer negocio de importância e de segredo (...).

De um modo geral os regimentos procuravam blindar a figura do Inquisidor, dando-lhe poderes ilimitados e exigindo dos mesmos uma conduta ilibada e irrepreensível, marcada pela modéstia, decência e humildade, sendo-lhes proibida a humilhação das pessoas submetidas ao seu poder, nem consentindo que outras pessoas as façam. Vejamos o que preceituava uma das regras regimentais: “Falarão com advertência na gente de nação, judeus e cristãos novos, que nunca deles se possa cuidar que o ódio de que todos devem ter ao delito se estende também às pessoas, que antes se compadecerão quanto é justo das fraquezas daqueles que cometerem culpas contra a santa fé” (Santo Oficio, 1640, Livro I, Titulo I, parágrafo VIII). Mas, na prática, não foi bem isso que aconteceu, pois por traz dessas recomendações, tivemos uma longa historia de abusos de poder, não só por parte dos inquisidores como também de seus familiares.

Como não podia deixar de acontecer, para um campo político-religioso fértil no arbítrio, também se tornou fértil na corrupção. E, tanto é verdade, que varias regras foram criadas para impedir tais práticas. Assim, dizia um dos preceitos ali inseridos:

Não terão trato ou comunicação particular com pessoas de suspeita, que tenham ou possam ter negócios no Santo Oficio, nem delas se servirão, nem aceitarão dádivas ou presentes, ainda que sejam de pouca valia, nem a titulo de compra tomarão mercadorias ou mantimentos a pessoa alguma por menos do preço ordinário, nem pedirão emprestado a gente de nação, pelos inconvenientes que podem resultar do contrario, e procurarão quanto for possível não contrair dividas que possam causar queixas ou diminuir a autoridade que a pessoas e ofícios é devida. (Santo Oficio, 1640, Livro I, Titulo II, parágrafo I).

A autora nos convida a reflexão sobre a vida naquela época, onde o poder incomensurável dos inquisidores os conduziam aos abusos, corrupções e extorsões levadas a efeito contra os povos perseguidos, que muitas vezes pagavam caro para se manterem vivos.  E, tais práticas envolviam toda a cadeia de poder da inquisição, indo do mais baixo funcionário até o próprio Papa. Segundo consta a própria implantação do Tribunal do Santo Oficio Português foi marcado por negociações à custa de muito ouro recolhido aos cofres do Vaticano.

Mas, na medida em que o mundo evoluía também as regras relativas ao Santo Oficio evoluíam para a respectiva adaptação. Assim a inquisição começa a por em prática mecanismos referentes à modernidade que se fazia presente na Europa.  Era, então, dado um poder maior ao inquisidor que deixava de ser aquela figura do pai ou sacerdote, passando a ocupar o modelo de um funcionário:

(...) com conhecimentos específicos adequados a sua função, que deveria se comportar de maneira impessoal no exercício de seu dever. Para tanto, seria necessário agora que fossem licenciados por exame privado em alguma Faculdade de Teologia, Cânones, ou Leis, e que tivessem ao menos trinta anos de idade, pessoas nobres, clérigos de ordens sacras, e que primeiro e que primeiro tenham servido ao cargo de deputado, e nele tenham dado mostras de prudência, letras e virtude, assim para saberem resolver e decidir as causas que hão de julgar, como também para nelas se haverem com grande inteireza e igualmente livres de toda paixão e respeitos que costumam perturbar o animo dos juízes, de maneira que nem o favor e piedade cheguem a ofender a justiça, nem o rigor exceda os termos da temperança, e, sobretudo serão pessoas de tal procedimento e de tanta autoridade, que com ela possam bem corresponder ao muito que deles confiamos. (Santo Oficio, 1640, Livro I, Titulo II, parágrafo I).

De todo o exposto, fica o registro que não se podia limitar um poder que era ilimitado por sua própria natureza, apesar das recomendações contidas nos regimentos. Nem a profissionalização diminuiu as amplas prerrogativas do inquisidor que continuava com poderes ilimitados, podendo ele mesmo abrir a Câmara dos Segredos, sem maiores formalidades, local onde se encontravam os documentos da inquisição. Nem, muito menos, as outras regras mencionadas, pois é da essência da inquisição o poder ilimitado, porque oriundo da graça divina. Na verdade, como diz a autora magistralmente, a dimensão simbólica de que se revestia o combate à heresia no imaginário popular, alimentado pelos espetáculos públicos dos autos de fé, fazia do Inquisidor mais do que um funcionário graduado do tribunal, transformava-o em um representante da justiça divina. (Santo Oficio, 1640, Livro I, Titulo II, parágrafo I).

Sobre as principais características e os principais atos realizados pelo Santo Oficio torna-se interessante o registro de Joseph Perez (2003), sobre o sistema processual inquisitorial então vigente.

3.3. APONTAMENTOS SOBRE O SISTEMA PROCESSUAL INQUISITÓRIO ADOTADO PELO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO NA VISÃO DE JOSEPH PEREZ

Vimos que surgido no direito romano e ali largamente praticado com o objetivo de estabelecer uma verdade que impusesse uma relação de poder, o sistema processual inquisitorial é retomado na Idade Média pela Igreja, com os mesmos objetivos, qual seja, a imposição de um poder que pudesse afastar as doutrinas hereges. Nesse sentido, passa a receber os influxos do Direito Canônico, sendo que o órgão julgador, além de decidir o litígio, era incumbido de elaborar a acusação penal, ex officio, e carrear as provas necessárias para a condenação, incluídas aí a investigação sobre o acusado que, despido de garantias processuais, era considerado um mero objeto de investigação.

Sobre o tema, vamos nos socorrer da excelente obra do grande hispanista Frances Joseph Pérez, sobre a inquisição espanhola. Trata-se de um estudo sobre o Santo Ofício na Espanha, em que o autor demonstrou claramente como uma iniciativa de poder civil dirigiu eficientemente a repressão, não só nomeando os agentes que estavam encarregados de levar a cabo os procedimentos investigativos, como também dotando os tribunais de um status privilegiado. Por outro lado, veremos também como o poder temporal se confundiu com o poder espiritual e colocou a ideologia a serviço da política. 

Perez (2003) inicia o seu estudo, registrando as fases de um processo inquisitorial realizado pelo Santo Oficio na Idade Média, sendo elas: o Edito de Fé; A detenção; a instrução do processo; a tortura; o veredicto; o Auto de Fé.

Registre-se que são fases importantíssimas, sendo que cada uma delas apresenta características próprias relacionadas com o exercício de poder e busca da verdade. Por isso, o seu estudo de forma pormenorizada. Vejamos cada uma delas.

De acordo com Perez (2003), o sistema inquisitorial permitia que o juiz atuasse de oficio, sem necessidade que um acusador iniciasse a ação judicial, bastando para tanto um simples rumor. É importante registrar que o inquisidor não é somente um juiz, mas, também aquele que toma as declarações, interroga as testemunhas e o acusado e finalmente dá o seu veredicto, de modo que ali estão reunidas as funções policiais, do acusador e do juiz. (Perez, 2003, p. 121).

  1. Edito de Fé

De acordo com o mencionado autor, todas as campanhas inquisitoriais começavam com um convite solene para que toda e qualquer pessoa denunciasse um herege, ou mesmo que um herege se auto denunciasse, caso o mesmo acreditasse ser um herege, ou, que denunciasse os outros, se houvesse fundadas razões que o fizesse acreditar ser o outro um herege. (Perez, 2003.)

Era o denominado Edito de Fé, ou, uma convocação ou convite, para que o suposto herege confessasse as suas práticas, podendo livrar-se da pena de morte, mas não do confisco de seus bens ou mesmo de outras penas infamantes. E tudo em um prazo de trinta ou quarenta dias. É importante destacar que sendo a heresia não só um pecado, mas também um delito, os sacerdotes não podiam dar a absolvição, sendo necessário o processo. Por outro lado, não bastava que se denunciasse, era preciso que houvesse denuncia a outras pessoas, tais como parentes, vizinhos, conhecidos, tudo em um efeito dominó tão eficiente, que ao longo do prazo de visitação, tinha-se conseguido um bom numero de pessoas suspeitas. (PEREZ, 2003)

A obrigação de denunciar os suspeitos de heresia se estendia a todos os fieis sob pena de excomunhão. A heresia era tão odiosa, aos olhos da Inquisição, que a morte do herege não extinguia a punição. Assim, se algum defunto houvesse praticado qualquer espécie de heresia, os seus restos seriam exumados e queimados. O autor nos dá conta de que, tal era o rigor do combate à heresia, que o Inquisidor era obrigado a abandonar periodicamente a sua sede para fazer visitas no sentido de buscar noticias sobre práticas heréticas que pudessem colocar em perigo a fé cristã. Uma visita não durava menos que quatro meses, colocando-se o Edito de Fé, em todas as localidades que se supunha afetada. Era costume ler-se o Edito de Fé, uma vez ao ano, no domingo da Quaresma, e no momento do ofertório, lentamente e em voz alta. Depois da leitura, o celebrante fazia ver aos fies, a obrigação cristã de denunciar os suspeitos que colocavam em perigo a religião.

O Edito de Fé, na verdade, era a sacralização da denuncia anônima, efetuada em um ritual de palavras e gestos, que pudesse maximizar a eficiência da denuncia e minimizar o remorso da delação. Era também, um roteiro para que se pudesse reconhecer os perigosos ao sistema, tais como os judeus e suas as práticas judaizantes. Assim, era importantíssima a denuncia sobre a morte de um animal de uma determinada forma; a abstenção de alimentos e do trabalho aos sábados; o jejum em determinados dias, ou mesmo práticas funerárias comprometedoras, tais como o dar banho no defunto, ou fazer-lhe a barba. Seguiam-se outros parágrafos referentes à religião de Maomé, e posteriormente a religião de Lutero; ou, outras seitas ou crenças nocivas, tais como os materialistas e a Maçonaria, e, por ultimo, alguns livros proibidos. Em suma, um controle social total e absoluto, já que a Igreja era a grande detentora de poder.

Durante muito tempo o Edito de Fé, promoveu numerosas delações, tal como pretendeu a Igreja. No entanto, tal prática acabou apresentando um grande inconveniente, qual seja o de difundir a heresia que se combatia no seio da população, dando-a conhecer junto ao fies que até então nada sabiam sobre os procedimentos proibidos, fazendo com que muitos aderissem a eles. Por exemplo, os judeus convertidos, de segunda e terceira gerações, que nada sabiam sobre a Lei de Moisés, passaram a aprender os seus ritos, orações, jejuns, dias festivos, etc. Por outro lado, evitava também que os fies já alertados, incorressem em suas práticas, livrando-se facilmente do processo. Por via de conseqüência, aquilo que seria um roteiro fundamentador de uma delação e condenação, passou a ser um roteiro preventivo que evitasse a condenação, pois, os suspeitos passaram a conhecer o que se combatia, e, portanto, evitavam a sua prática.  Assim foi sendo paulatinamente abandonado, tanto que no século XVIII, não era mais que uma simples formalidade. (Perez, 2003)

  1. A Detenção

Evidentemente que durante o período assinalado no Edito de Fé, numerosas delações eram realizadas: umas, por ignorância; outras, movidas por boa fé, tendo em vista a crença difundida pela Igreja de que o diabo e as bruxas existiam; ainda, delações, por má fé, inveja ou vileza, tanto dos pobres como das elites.

Assim, a melhor maneira de se livrar de um inimigo, desafeto, parente, era denunciá-lo a Inquisição. Ainda que os Inquisidores, não se deixassem enganar tão facilmente, a verdade é que muitos foram para a fogueira, sem qualquer culpa.

O que quer que seja, após o reconhecimento de indícios de práticas nocivas aos dogmas da Igreja, o fiscal pede oficialmente a detenção do suspeito, sendo tal ato denominado de clamorosa. Em havendo dúvida, deve-se esperar o melhor momento para a detenção, colhendo-se novas provas e afastando-se assim, qualquer possibilidade de defesa do investigado, pois o que se busca é a sua confissão.

No entanto, efetuada a detenção e efetuado o confisco de seus bens, que garantam a sua permanência e manutenção, passam os detidos a condição de excomungados com presunção de culpa. Em sendo o detido um nobre, terá direito ao serviço de um criado que deverá servi-lo. O detido, durante a detenção não poderá ter dinheiro, nem qualquer outro bem, nem mesmo uma folha de papel, nem comunicar-se com o mundo exterior. Por ultimo, registre-se, que os cárceres inquisitoriais eram tão sórdidos quanto os cárceres do Estado.

  1. A Instrução

Uma vez detido, o suspeito está à disposição do Tribunal do Santo Oficio até que se proceda ao interrogatório, podendo, tal situação durar meses, sendo o detido alijado de qualquer contato com o mundo exterior. O seu desconhecimento é total, não sabendo quem o acusa e de que o acusam. O segredo é a chave do sucesso, pois evita tanto a preparação da defesa, como também um ato de vingança ao delator. Por conseguinte, não se permite qualquer acareação. Mas, chega-se ao momento em que o detido, tem que tomar ciência das acusações, com a leitura das declarações postas pelos delatores, evidentemente, com o resguardo da fonte informadora, isto é, sem qualquer identificação das testemunhas.

Isolado do mundo exterior, sem poder receber visitas; detido em lugar onde apenas o carcereiro tem acesso a cela, o suspeito está completamente vulnerável ao interrogatório. Por conseguinte, tal mistério era uma forma de se inspirar respeito e temor ao Santo Oficio, reforçando o seu ar de sacralidade. O sigilo era absoluto, atingindo mesmo aos Tribunais, que não tinham acesso a documentos e não podiam fazer qualquer comunicação sobre condenações, detenções ou investigações. Na verdade, apenas os inquisidores podiam ter acesso às informações acima.

Após o severo isolamento, os suspeitos são levados à presença dos juízes inquisidores para um primeiro interrogatório sobre a sua identidade e dados biográficos, tais como: seus pais, avos, trabalho, cidades onde viveu, filhos, cônjuge, local onde se educou e quem o educou, viagens empreendidas, se conhece as principais orações e o catecismo, se já se confessou e qual a ultima vez, etc.

Na segunda fase dessa instrução, os inquisidores entram na questão de fundo da investigação. Sem dar detalhes, convidam o acusado a dar detalhes do por que da detenção, e que realize uma confissão. Essa intimação se repete três vezes com dias intercalados, começando aí o processo. Aqui, prevalece a presunção de culpa e o que se busca é a confissão, a prova por excelência.

Se após a terceira admoestação, o acusado não confessar, o inquisidor comunica tudo o que pesa contra ele. A princípio, apenas os delitos contra a fé, e, posteriormente os outros delitos que serão avaliados em outro momento. É importante registrar que os advogados designados com a missão de defender o suspeito, não poderão ter entrevista reservada com o seu cliente, salvo na presença do inquisidor e, o objetivo é incitar-lhe a confissão. Acrescente-se que poucos acusados puderam escolher o seu advogado.

Ainda nessa fase, os inquisidores convidam as partes: acusador e acusado, a expor os seus argumentos. O acusador se reporta as declarações obtidas e pede que as testemunhas confirmem o conteúdo das respectivas acusações. O acusado pode, inicialmente, recusar as testemunhas, apresentando uma lista de pessoas que querem prejudicá-lo, recusando as que constem na lista. Depois, o acusado pode apresentar testemunhas do seu caráter e, por ultimo, combater as declarações apresentadas, por absoluta falta de fundamento.

  1. A Tortura

Registremos que a tortura era uma prática recorrente naqueles tempos, sendo que a Inquisição também torturava os seus prisioneiros para fazê-los confessar o crime. Mas, a bem da verdade, em menor escala que os outros tribunais, pois a tortura além de pouco eficaz, era ainda considerada uma prática repugnante. Teoricamente, alguns autores daquela época eram contra a tortura, citando-se, entre outros, Valdés, em suas Instrucciones, publicadas em 1561 e Eymerich em seu Manual dos Inquisidores, que consideravam uma prática pouco confiável. Mas, no plano real, havia a tortura, a toda classe de individuo, tanto para o pobre, como para o rico, pois, em matéria de heresia não há privilégios, podendo qualquer pessoa ser submetida ao direito comum inquisitorial.

Havia todo um ritual para a tortura. Assim, primeiramente os inquisidores decidiam se o acusado seria ou não submetido aos tormentos. Em caso afirmativo, um médico decidia se o acusado estava apto a suportar. Somente, podem permanecer na sala de tortura, o inquisidor, o escrivão e o verdugo. A regra proibia que nas sessões de tortura se derramasse sangue ou se mutilasse o acusado. Por conseguinte, a Inquisição praticava três tipos de tortura: o suplicio da água; o suplicio da polia e o suplicio do cavalete.

  1. O Veredicto

A fase do veredicto é a fase da decisão. Aqui, a instrução prossegue até que o acusado, e não o fiscal pede que se conclua. Por que o acusado e não o inquisidor ou o fiscal? A explicação encontra-se nas Instrucciones de Valdés. Assim, se o fiscal declara que a instrução encontra-se concluída, então, não tem mais nada a argumentar ou acrescentar, podendo o acusado ser absolvido por insuficiência de provas. Ao passo que se for o acusado quem o declara, pode o fiscal ou o inquisidor apresentar novos argumentos até o ultimo instante da instrução. Uma comissão mista composta de inquisidores e consultores decidirá sobre a culpabilidade ou não do acusado. Como a presunção é de culpa e não de inocência, o objetivo maior é buscar a condenação, ao menos que não exista qualquer meio para condená-lo, o que é difícil.

Ora, de acordo com Eymerich (1578) somente haveria uma razão para a absolvição, que seria a hipótese de falsa acusação ou falso testemunho. Tudo o mais, conduzia a condenação. Mas, se houver impedimento à condenação, o veredicto não declarará o acusado inocente, mas que pela falta de meios eficazes, o processo deverá ficar suspenso até que surjam novos elementos. É importante deixar claro, que o Santo Ofício, não se engana jamais. Apesar da presente regra, tivemos várias absolvições, por falta de elementos para a condenação. (Eymerich, 1578 apud Perez, 2003)

É de ver, portanto, que um dos pontos principais buscado pelos inquisidores é o de que o acusado se declare culpado e se arrependa e, nessa hipótese, teremos três espécies de acusado. A primeira, são os culpados sem provas; a segunda, são os culpados que confessam e se arrependem; e a terceira, são os culpados pertinazes reincidentes que confessam e os que se negam a confessar. Também se deve ressaltar que para essas pessoas poder-se-ia admitir uma reconciliação e a sua respectiva reintegração à Igreja, ou uma abjuração leve, veemente ou inflamada, dependendo do grau de gravidade da falta cometida. Aos acusados culpados que confessassem, era imposta uma penitencia espiritual, como o retiro a um convento, a peregrinação a um santuário, ou mesmo jejuar, ou algumas orações, e, também, era imposta uma multa, que não se confundia com o confisco de bens. Mas, é bom que se diga que o Santo Oficio, só impunha a multa, quando não se podia provar o delito de heresia. Ou, por outra, não saía de mãos vazias.

As outras penas previstas para os acusados eram mais severas, assim podíamos ter um simples desterro, uma flagelação publica, a condenação nas galés, a pena de prisão temporal ou perpétua, e, por ultimo, a pena de morte. Na mencionada obra, Perez (2003), com clareza de detalhes, desenvolve o tema, apresentando, não só a classificação dos acusados, como também a espécie de sanção que lhe poderia ser imposta.

  1. O Auto de Fé

De acordo com Francisco Pena, ao comentar e complementar o Manual do Inquisidor de Eymerich, em 1578, o Auto de Fé, servia para inspirar o terror ao povo e não salvar a alma do herege. Tanto a leitura da sentença como as abjurações, tinha por fim a inspiração do medo, podendo-se dizer mesmo do caráter de retribuição e de prevenção geral da medida aplicada, uma vez que alem do castigo ao herege, também o povo aprendia que não podia incorrer em tais práticas. Nessa cerimônia, não havia qualquer execução, que, na verdade ocorria, depois de terminada, quando o acusado era entregue a justiça real, para o suplicio. Assim o auto de fé era uma manifestação publica de adesão ao Catolicismo e repulsa a heresia. Havia a leitura publica e solene de algumas passagens do processo e da sentença, feita na presença do acusado e de outras autoridades e pessoas da cidade, em especial o juiz real ordinário, que tinha a incumbência de sentenciar a pena de morte na fogueira ou na forca. Podia o auto de fé ser geral com vários acusados, singular com apenas um acusado ou especial assim entendido como sem publico ou pompas, apenas realizado na presença de algumas autoridades. Era em regra realizado em um domingo ou em um dia festivo, com a presença obrigatória das autoridades e demais funcionários, e, evidentemente da população daquele lugarejo.  Mas, acima de tudo, deveria ser um registro de terror e do juízo final: a procissão, a missa, o sermão e a execução.

Evidentemente, que se tratava de uma cerimônia com custos elevados, pois todos deviam participar. Fazia-se um grande aparato. Era um espetáculo grandioso, com estandartes, soldados, cavaleiros, tribunas, autoridades, familiares, palanques, o povo. Enfim era um dia de festa e de terror.

Nessa cerimônia macabra deve-se destacar o sambenito, ou a famosa túnica da infâmia, que os acusados vestiam, ornamentados com cruzes, sendo que a cor da vestimenta variava de acordo com a natureza do delito e da sentença. Os condenados à morte, ou, que iam ser relaxados, isto é, entregues ao braço secular do Estado, traziam uma vestimenta preta, adornada com demônios, dragões, serpentes, e outros signos do inferno.

O Manual do Inquisidor de Eymerich recomendava amordaçar os condenados para evitar que os mesmos escandalizassem o publico com frases impiedosas. Depois do sermão vinha a sentença, devendo o acusado se adiantar para ouvi-la. Consoante o explicitado acima os condenados não eram executados no auto de fé propriamente dito, pois a inquisição os entregava ao poder real para que fosse aplicada a pena capital na fogueira, sendo os condenados levados para o local do suplicio, fazendo-se um grande cortejo fúnebre.

Aos arrependidos aplicava-se a morte pelo garrote e depois o fogo. Os contumazes eram sacrificados vivos na fogueira. Mas, o ponto principal dessas cerimônias fúnebres era a pressão para o arrependimento do acusado, que justificaria a condenação e purificaria a sua alma. Por outro lado, a explicação que se dava para aquele que se opusesse a graça do arrependimento, era a de que o mesmo era um perturbado mental, ou faltava-lhe inteligência, ou, o mesmo era pervertido. Nas três hipóteses o condenado merecia a condenação.

Perez (2003) cita, que em 1680, José de Olmo, procurava uma explicação para o embate do Santo Oficio com os hereges, que se recusavam ao arrependimento, dizendo que:

Quando vemos os meios que utiliza o Santo Oficio para retirar de seus erros os hereges, e as provas que lhes são apresentadas para convencê-los de seus erros, provenientes de homens plenos de bondade, de virtude e de conhecimento, somente uma obstinação voluntaria explica que alguém se negue a abraçar a religião cristã. Os homens dessa nação, - os judeus-. Prevalece a heresia; por orgulho, antepõem a cegueira de seus antepassados à sabedoria dos doutores cristãos, e esses sentimentos exarcebados por uma sensualidade ou pela cobiça, - fontes de todos os males-, os cerram os olhos da razão. (Olmo, 1680 apud Perez, 2003, p. 152).

É de se ver, portanto, que essa era a consciência cultural reinante naquela época, de um lado a verdade cristã, absoluta e insofismável, e de outro, as verdades culturais de outros povos, que deveriam ser reformadas ou combatidas por quem detinha o poder. Não é demais repetir que todos participavam dessa manifestação de fé e de poder, da maneira como podiam e, tanto é verdade, que até aqueles que levavam lenha para a fogueira eram agraciados por indulgencias especiais.

A fogueira como símbolo da Inquisição foi tão idolatrada naqueles tempos, que nos autos de fé, quando começava a cerimônia, era praxe, o comandante dos soldados apresentar ao rei um punhado de lenha, que seria devolvido para ser levado à fogueira em seu nome, e, em memória do Rei Fernando. (Olmo, 1680 apud Perez, 2003, pp. 152-153.) Talvez, até por uma interpretação literal da Bíblia, quando em várias passagens invocava o fogo eterno do inferno aos pecadores destinado aos demônios. (Mateus, cap.25, versículos 41/46)

Quando todos os condenados haviam sido mortos, os verdugos ainda mantinham acesa a fogueira para reduzir a cinzas os cadáveres. Durante esse tempo os soldados empunhavam a Cruz Branca que presidia a execução e a levavam em procissão. Posteriormente a colocavam de novo junto a Cruz Verde, símbolo do Santo Oficio.

Naquela época, muitos foram vitimas diretas da Inquisição, sendo que, teoricamente, todos mereciam um castigo, sem distinção. Na prática, havia distinção, pois os nobres se livravam dos castigos infamantes e, não raro, pagavam a falta com o seu patrimônio ou mesmo com a pena de prisão. As penas infamantes como os castigos corporais, as galés, etc. eram aplicadas aos pobres. Também havia certo abrandamento de sanções quando se tratava de heresia praticada por membros do clero. Os bispos, por exemplo, estavam a salvo da Inquisição, pois dependiam da intervenção Papal e não da Inquisição.

Mas, uma coisa era certa. O Santo Ofício era implacável quando a heresia era praticada por determinados seguimentos da sociedade, como os judeus, os protestantes, os mouros, iluministas, etc., sendo ou não pobres ou ricos. Eram práticas que punham em perigo o poder reinante, daí o combate severo.

Considerações Finais

Uma ultima palavra sobre o capitulo, que narrou, ainda que resumidamente, a história de um direito criado em uma determinada época da antiguidade para atender as situações de manutenção e afirmação do poder do Estado Romano ameaçado. Também, tal direito foi reencontrado na Idade Média pela Igreja, com o mesmo objetivo, qual seja a afirmação do poder espiritual e religioso ameaçado pelas heresias.

Importa registrar que não só o poder régio português, como também a própria Igreja, se tornaram possuidores de um sistema jurídico poderoso, sendo o primeiro para firmar os postulados de um Estado Absolutista moderno centrado na figura do Rei, substituto do sistema feudal; e o segundo para firmar os princípios de um sistema jurídico que garantisse os princípios do poder eclesiástico de Roma. Não há duvida de que os dois direitos tiveram prós e contra. Assim, indiscutível o legado do direito canônico, como também indiscutível o legado do Direito Português.

Vimos, com Caetano (1985), citado por Pierangelli (1983, p. 50), a luta dos reis em afastar um direito costumeiro, aperfeiçoando uma justiça régia, quer na corte, quer através de magistrados de jurisdição local; também, uma limitação das jurisdições senhoriais medievais e o prosseguimento da luta contra a vingança privada e, uma diferenciação entre o processo civil e processo penal, implicando a redução a escrito das peças processuais e a organização do sistema de recursos.

Quanto ao Direito Canônico, importantíssimo o seu legado, pois considerado como um dos elementos de formação da denominada família romano germânica, ou do direito continental, e com nítidos reflexos na legislação de Portugal e do Brasil.

Sabemos que em razão da posição universal da Igreja Católica, no período em que esta e seu direito gozaram de preponderância no contexto jurídico do ocidente europeu, dogmática e jurisprudência deste último serviram para construir o direito comum que se desenvolvia lado a lado com o trabalho de interpretação e elaboração executado pelos glosadores com relação ao direito romano. Sobre o assunto registre-se a excelente lição de Azevedo e Tucci (2001) ao afirmarem que “assim ocorreu, porque tanto interessava a substituição das velhas práticas costumeiras, de uso regional por um direito mais erudito e abrangente, sustentado na escrita e na unidade da língua latina, como interessava a adoção de um direito capaz de melhor garantir a justiça, já depreciada pela subserviente postura dos juízes locais, nos feudos ou senhorios em que tinham jurisdição”. (AZEVEDO E TUCCI, 2001, p. 159) Foi um direito tão superior que apesar de vigência incontestável nos séculos XII a XV, ainda tiveram existência quando da Contra-Reforma, ao seguirem os governos de inspiração católica as determinações do Concilio de Trento (1547-1563). Assim, como visto o direito positivo continuou a buscar amparo nos cânones sagrados, principalmente nos casos que envolvia pecados e heresias.

Se, quanto ao direito penal, várias criminalizações de condutas, que feriam a fé cristã foram demasiadamente admitidas; no processo penal, como ensina Azevedo e Tucci (2001), podem-se realçar alguns institutos interessantes de humanização, tais como a arbitragem e a conciliação, sendo que esta ultima não se atém ao seu momento histórico, porque mais amplo, desde a antiguidade com o sigilo das catacumbas, posteriormente reconhecido pelo Império, quando da conversão de Constantino.

Também a necessidade de um processo escrito e baseado em uma sucessão de atos procedimentais, e como é por demais sabido, “quod non est in actis, non est in mundo”.  Acrescente-se ainda, como não poderia deixar de ser, já que esta é a marca registrada de tal direito, a direção do processo pelo juiz, tanto que pode ouvir as partes em qualquer momento, conclamando-as à composição. (AZEVEDO E TUCCI, 2001, p. 161)

Quanto às provas, deve-se ao direito canônico a eliminação das ordálias e Juízos de Deus, tão em voga nas práticas costumeiras da alta Idade Média, “quando a ausência, falibilidade ou apatia da autoridade judicial levava a lançar à sorte a condição do acusado”. (op.cit.)

E, não ficou só nisso a contribuição de tal direito. Temos mais. Como o caráter emprestado ao testemunho, “onde pesava a idoneidade e o caráter do depoente, e não os fatos que ele relatasse; a maior precisão quanto ao valor dos documentos, quando públicos ou privados; (...) a pericia em casos onde esta se oferecia imprescindível e necessária”. (AZEVEDO E TUCCI, 2001, p. 162).

Por derradeiro, o que não esgota o assunto, a confissão como regine probationum et probatio probatissima. Ato personalíssimo, podendo ser espontânea ou provocada pelo juiz instrutor. Na verdade, a confissão dentro da dogmática canônica tinha a finalidade de salvação das almas, daí o seu caráter absoluto. (AZEVEDO E TUCCI, 2001, p. 89).

Quanto ao Brasil colonial, de acordo com Wolkmer, não chegou a se constituir em uma Nação coesa, tampouco numa sociedade organizada politicamente, pois as elites agrárias proprietárias das terras e das grandes fazendas, senhores da economia de monocultura, (cana de açúcar) e detentoras da mão de obra escrava (índios e negros), “construíram um Estado completamente desvinculado das necessidades da maioria de sua população, montado para servir aos seus próprios interesses quanto ao governo da Metrópole”. (Wolkmer, 2015, p. 90).

Ainda de acordo com o mencionado autor, em análise ao Brasil, “diferentemente do processo de formação do moderno Estado Europeu, resultante do amadurecimento da Nação independente, no Brasil, o Estado surgiu antes da idéia de sociedade civil e/ou de Nação soberana, instaurado por uma estrutura herdada de Portugal, fundamentalmente semi-feudal, patrimonialista e burocrática”. (WOLKMER, 2015, p. 90)

Nesse contexto, os colonizadores e a aristocracia rural desconsiderando qualquer prática jurídica de um direito mais antigo, nativo e consuetudinário, impondo uma cultura legal proveniente da Europa e da Coroa Portuguesa, aniquilou, como vimos, qualquer tentativa de reconhecimento de outra cultura.

Assim, quando se acenou, tempos depois da descoberta, com uma estrutura jurídica formal fundada nas Ordenações Filipinas, tal desiderato era apenas e tão somente para “garantir que os impostos e os direitos aduaneiros fossem pagos, e na formação de um cruel (...) código penal para prevenir de ameaças diretas ao poder do Estado. É sempre bom lembrar que a “maior parte da população não tinha voz no governo nem direitos pessoais. Eram escravos, objetos de comercio” (WOLKMER, 2015, p. 91).

Referências

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