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Liberdade e vida:

a recusa à transfusão de sangue à luz dos direitos fundamentais

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11/12/2005 às 00:00
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2 DO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA E DO DIREITO À VIDA

            2.1 Do direito à liberdade

            Antes de adentrarmos o estudo do direito à liberdade religiosa e do direito à vida, pontos chave deste trabalho, necessário se faz tecer algumas considerações sobre o direito à liberdade de maneira genérica, no intuito de situar teoricamente o tema.

            A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, elenca os direitos e deveres individuais e coletivos dos cidadãos, sendo que, no seu caput, apresenta de forma expressa o direito fundamental à liberdade na seguinte redação: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade[...](grifo nosso)"

            O termo liberdade deriva do latim libertas, de leber (livre), indicando genericamente a condição de livre ou estado de liberdade. Significa, no conceito jurídico, a faculdade ou o poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria determinação, respeitadas, no entanto, as regras legais instituídas [31].

            Falar em liberdade sem invadir o campo filosófico é praticamente impossível, devido ao conteúdo imensamente profundo e importante que o termo representa para cada pessoa e para a humanidade como um todo.

            Difícil também, apresentar um conceito uno e abrangente para o termo "liberdade", uma vez que o termo assumiu diferentes nuances no decorrer da história até chegar ao dias de hoje.

            Não podemos ser ingênuos a ponto de achar que o conceito de liberdade é o mesmo desde que as primeiras bandeiras foram levantadas na luta para o reconhecimento deste direito, pois como ensina J. A. da Silva, "[...] a História mostra que o conteúdo da liberdade se amplia com a evolução da humanidade. Fortalece-se, estende-se, à medida que a atividade humana se alarga. Liberdade é conquista constante". [32] Nunca devemos pensar em um conceito pronto e acabado para o termo liberdade, pois, a história se constrói diariamente e com ela surgem novos contextos, novos questionamentos e novos valores sociais.

            Paulo Gustavo Gonet Branco [33] lembra a distinção feita por Benjamim Constant, quanto à existência de duas classes relevantes na evolução dos conceitos de liberdade: o entendimento dos antigos e dos modernos.

            No entendimento antigo, a liberdade estava relacionada com a possibilidade do cidadão exercer seus direitos políticos, ao passo que, no entendimento moderno, a liberdade se vincula à realização da vida pessoal. A associação entre conceito de liberdade e resistência à opressão ou à coação do Estado, que por muito tempo foi difundida, colocava-a em sentido negativo à autoridade. O termo autoridade era entendido como autoritarismo, comportamento dotado de abusos e discricionariedades que cerceavam os direitos e garantias dos cidadãos. Percebe-se que o conceito era adaptado à realidade de um momento histórico.

            Foi preciso uma tomada de consciência por parte dos cidadãos de que a luta pela liberdade implicava bem mais do que serem considerados livres perante o Estado: era necessário que fossem considerados iguais uns aos outros para poderem buscar uma liberdade de forma ampliada.

            Ensina Perez Luño que "a liberdade sem igualdade não conduz a uma sociedade livre e pluralista, mas a uma oligarquia, vale dizer, à liberdade de alguns e à não liberdade de muitos" ainda que não se possa perder de mira que "a igualdade sem liberdade não conduz à democracia, mas ao despotismo, ou seja, à igual submissão da maioria à opressão de quem detêm o poder (situação que evoca a divisão do igualitarismo cínico do Animal Farm de George Orwell, a teor do qual ‘ todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros’)". [34]

            Hodiernamente, considerando a evolução dos direitos fundamentais e o fato de vivermos em um Estado Democrático de Direito, não cabe mais nos apegarmos ao conceito antigo de liberdade, pois o termo autoridade, que até então se resistia, assumiu nova postura, novo significado.

            Como explica J. A. da Silva, a autoridade

            provém do exercício da liberdade, mediante o consentimento popular.

            [...]

            Nesse sentido, autoridade e liberdade são situações que se completam. É que a autoridade é tão indispensável à ordem social – condição mesma da liberdade – como esta é necessária à expansão individual. Um mínimo de coação há sempre que existir. ‘O problema está em estabelecer, entre a liberdade e a autoridade, um equilíbrio tal que o cidadão médio possa sentir que dispõe de campo necessário à perfeita expressão de sua personalidade’. Portanto não é correta a definição de liberdade como ausência de coação. O que é válido afirmar é que a liberdade consiste na ausência de coação anormal, ilegal e imoral. Daí se conclui que toda lei que limita a liberdade precisa ser lei normal, moral e legítima, no sentido de que seja consentida por aqueles cuja liberdade restringe. [35]

            Quanto a questão da limitação da liberdade, Aldir Guedes Soriano, ao citar Immanuel Kant, acrescenta que, para este, "o conceito de liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade". [36]

            Atenta, porém, Soriano:

            O princípio de Autonomia da Vontade e o conceito de liberdade, para Kant, não ilidem a heteronomia. Esta vincula uma vontade impessoal, emanada do poder legiferante, e imposta, coercitivamente, aos indivíduos (verticalidade). Assim, a liberdade individual está subordinada à vontade estatal. Portanto, a liberdade não é um direito absoluto. Alguém já disse que ‘a liberdade termina, quando começa a liberdade de outrem’. Cabe à lei determinar esse limite à liberdade. [37]

            Dentro da visão moderna de liberdade, em que a realização pessoal é o objetivo maior, conceitua Silva: "Liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal". [38]

            No entanto, a democracia é fator imprescindível para que se possa coordenar os meios necessários à realização da felicidade pessoal, pois a liberdade encontra neste regime, campo para se expandir e, assim, quanto maior o grau de democratização, maior é a conquista de liberdade. [39]

            Essa expansão de direitos é um fenômeno atribuído à superação da fase em que os "direitos fundamentais buscavam proteger reivindicações comuns a todos os homens e passaram a, igualmente, proteger seres humanos que se singularizam pela influência de certas situações específicas em que apanhados". [40] Esta singularização do homem, ao nosso ver, nada mais é do que o reconhecimento das diversas formas de ser e viver em sociedade.

            A expansão ou multiplicação de direitos, devido a singularização do homem, ocorre dentro dos próprios direitos tradicionais. É o que observamos em relação ao direito à liberdade, quando dividido em varias espécies, recebendo da doutrina a seguinte separação:

            - Liberdade da pessoa física, compreendendo a liberdade de locomoção e circulação.

            - Liberdade de pensamento, compreendendo a liberdade de opinião, religião, informação, artística e comunicação do conhecimento;

            - Liberdade de expressão coletiva, manifestada pela liberdade de reunião e associação;

            - Liberdade de ação profissional através da livre escolha e de exercício de trabalho, ofício e profissão;

            - Liberdade de conteúdo econômico e social, compreendendo a liberdade econômica, a livre iniciativa, a liberdade de comércio, a liberdade ou autonomia contratual, a liberdade de ensino e a liberdade de trabalho.

            Ainda dentro da questão conceitual, existe a divisão do direito à liberdade em interna e externa. Tal separação apresenta um conteúdo um tanto filosófico, porém de grande relevância para identificar qual tipo de liberdade se está analisando e de que forma deverá ser interpretada.

            José Afonso da Silva trata a questão da seguinte maneira:

            Liberdade interna

(chamada também de liberdade subjetiva, liberdade psicológica ou moral e especialmente liberdade de indiferença) é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no interior do homem. Por isso chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo; vale dizer, é poder de escolha, de opção, entre fins contrários. È daí o nome que se lha dá: liberdade dos contrários (...) A questão fundamental, contudo, é saber se, feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e aí se põe a questão da liberdade externa. [41]

            Sobre a liberdade externa, continua o autor:

            Esta que é também denominada liberdade objetiva, consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coação, de modo que o homem possa agir livremente. Por isso é que também se fala em liberdade de fazer, "poder de fazer tudo o que se quer. Mas um tal poder [como observa R-M. Mossé-Bastide] se não tiver freio, importará no esmagamento dos fracos pelos fortes e na ausência de toda liberdade dos primeiros". É nesse sentido que se fala em liberdades no plural, liberdades públicas (sentido estrito) e liberdades políticas. [42]

            No que concerne ainda à classificação das liberdades, destacamos que existem outras modalidades, com conceitos e tratamentos distintos. A liberdade interna, tratada como de foro íntimo e também chamada de liberdade de pensamento, abriga, dentre outras, a liberdade de consciência e de crença, objetos do nosso estudo. Já a liberdade externa, também conhecida como liberdade de exteriorização de pensamento, abriga a liberdade de culto (também objeto deste estudo), liberdade de informação jornalística, liberdade de cátedra, liberdade científica e liberdade artística [43].

            Neste trabalho trazemos à baila o tema referente à liberdade e seu alcance, ou seja, até que ponto a liberdade interna do ser humano, ou o seu poder de escolha, pode determinar os acontecimentos sem entrar em conflito com a liberdade externa, conhecida como o poder de fazer.

            A questão levantada sobre o óbice à transfusão de sangue em adeptos da religião Testemunha de Jeová, merece uma analise sob o prisma das liberdades, especialmente no tocante à liberdade religiosa, o que será objeto de considerações aprofundadas mais adiante.

            2.1.1 Do direito à liberdade religiosa

            A necessidade de seguir referenciais sempre fez parte do comportamento humano e, dentro deste contexto, a religião sempre foi uma forma de unir pessoas em torno de valores e crenças que por fim acabam por influenciar os comportamentos sociais.

            A busca para explicações sobre a vida e seus fenômenos, inclusive a morte, é uma constante na sociedade. As religiões apresentam-se oferecendo respostas a estas indagações, de acordo uma doutrina pautada na crença e culto a uma divindade e nos seus dogmas.

            Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "a religião constitui um dos mais fortes componentes das diferentes civilizações. Não é por outra razão que os estudiosos das civilizações o mais das vezes as caracterizam em função desse elemento religioso: civilização cristã; civilização muçulmana etc". [44]

            Ao tratarmos sobre religião, corremos o risco de adentrarmos um campo nebuloso e controvertido. Em todo o mundo existem conflitos embalados por questões religiosas, cuja moral muitas vezes questionamos. A verdade é que cada cultura possui uma forma de manifestar seus valore. A religião é uma maneira de expressão espiritual, ideológica e cultural de um povo e, como tal, deve ser respeitada.

            De acordo com Derek H. Davis,

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levou séculos, até milênios, de guerras e perseguições religiosas para que a maior parte das nações-Estados modernas chegasse a uma posição de consenso sobre a necessidade da liberdade de religião. O princípio é agora amplamente aceito, especialmente no Ocidente.

            Segundo o autor,

            o princípio moderno de liberdade religiosa, através do qual os governos declaram sua neutralidade sobre questões religiosas, permitindo a cada cidadão individual, com base na sua própria dignidade humana, adotar suas crenças religiosas sem medo de represália, é conseqüência natural do esclarecimento. Ele recebeu reconhecimento universal na Declaração de 1948, sem dúvida o maior marco da evolução da liberdade religiosa internacional. [45]

            O autor destaca que, além da Declaração Universal de 1948, três outros documentos internacionais significativos foram desenvolvidos no século XX com o propósito de promover princípios de liberdade religiosa: a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base na Religião ou Crença (1981); e o Documento Final de Viena (1989).

            No entanto, esses documentos internacionais estão comprometendo apenas as nações que tomem medidas para dar-lhes situação legal, ou seja, eles não são auto-executáveis. As proteções à liberdade religiosa contidas nos documentos internacionais não possuem efeito de lei: elas estão somente moldando a legislação de direitos humanos nas nações participantes e são característica fundamental de uma ordem mundial em desenvolvimento. [46]

            No âmbito nacional, podemos destacar a liberdade religiosa como um dos mais importantes direitos individuais previstos na Constituição da República. Para Alexandre de Moraes esta liberdade significa a demonstração da "verdadeira consagração de maturidade de um povo". [47]

            Este direito está gravado no art. 5º, inciso VI, de nossa atual Constituição, que textualmente diz: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". [48]

            Concebido como direito fundamental de primeira geração, impõe-se precipuamente ao Estado, como "um dever de não-fazer, de não-atuar, de abster-se, enfim, naquelas áreas reservadas ao indivíduo". [49] Para Moraes, "a abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto". [50]

            Para Pontes de Miranda, a liberdade religiosa é uma especialidade da liberdade de pensamento, por ser vista somente no que concerne à religião. [51] Soriano, contudo, destaca a dificuldade de se reconhecer sua importância e alcance, sem que haja uma provocação direta e material. O autor utiliza as sábias palavras de Rui Barbosa para ilustrar tal consideração:

            A liberdade religiosa, como a liberdade de consciência, é um diâmetro de natureza tão elevada, tão difíceis de palpar são, em teoria, as suas relações com os interesses individuais e sociais do homem, que o povo não se pode apaixonar por ela, compreender-lhe o alcance, tentar-lhe a reivindicação enquanto o não despertam com uma provocação direta e material. [52]

            Soriano acrescenta também "que alguém já assinalou que a liberdade pode ser comparada ao ar que respiramos, de forma a só se reconhecer o valor, quando nos é subtraído". [53]

            2.1.1.1 Subdivisão da liberdade religiosa

             De acordo com José Afonso da Silva, a liberdade religiosa, se subdivide em três partes: a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa [54].

            a) A liberdade de crença assegura a liberdade de escolha da religião que se deseja seguir, a liberdade para aderir a seita ou denominação qualquer, a liberdade para se alterar de religião e ainda a liberdade de não seguir religião alguma, optando pelo ateísmo. Tal liberdade é considerada de cunho interno, pois diz respeito ao poder de escolha do ser humano em conformidade às suas convicções pessoais.

            Na Constituição de 1967/1969, art. 153, §5º, o direito à liberdade de crença e de culto era enquadrado no direito à liberdade de consciência, sendo que aos crentes era assegurado o exercício dos cultos religiosos. A inserção da liberdade de crença e culto na liberdade de consciência não se repetiu na Constituição de 1988, que se expressa da seguinte forma no inciso VI do art. 5º: "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos..."(grifo nosso) [55]

            Segundo Celso Ribeiro Bastos, a separação de liberdade de consciência e de crença, é uma forma de melhor proteger ambas:

            É esta sem dúvida a melhor técnica, pois a liberdade de consciência não se confunde com a de crença. Em primeiro lugar, porque uma consciência livre pode determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Deflui, pois, da liberdade de consciência uma projeção jurídica que inclui os próprios ateus e o agnósticos. [56]

            b) A liberdade de culto compreende a de expressar-se em casa ou em público quanto às tradições religiosas, os ritos, os cerimoniais e todas as manifestações que integrem a doutrina da religião escolhida. É a exteriorização da escolha feita através da prática dos atos próprios de determinada religião.

            A liberdade de culto nem sempre foi tutelada constitucionalmente. A Constituição de 1824 adotava a religião católica como oficial do Império, sendo que outras religiões eram toleradas apenas em culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, que não podiam ter forma exterior de templo. Com isso, podia-se falar em liberdade de crença, porém, não de culto.

            Nas Constituições posteriores o tratamento à liberdade religiosa se deu de forma diferente, passando a ser assegurado o direito de liberdade de crença e de culto. Entretanto, o exercício dos cultos era condicionado à observância da ordem pública e dos bons costumes.

            A atual Constituição assegura o direito à liberdade de culto, mas não o condiciona mais à observância da ordem pública e dos bons costumes, como acontecia nas anteriores. No entender de José Afonso Silva, "esses conceitos que importavam em regra de contenção, de limitação dos cultos já não mais o são. É que, de fato, parece impensável uma religião cujo culto, por si, seja contrário aos bons costumes e à ordem pública." [57]

            Segundo Bastos, "embora a atual Constituição não faça referência expressa à observância da ordem pública e dos bons costumes como fazia a anterior, estes são valores estruturantes de toda ordem normativa". [58]

            Da lição de Cretella Junior absorvemos o seguinte:

            A liberdade religiosa, pela própria natureza que se reveste, apresenta modalidades diversas; intimamente qualquer um pode adotar o culto ou a fé que mais lhe convier, sem que o Estado possa penetrar ou violar os sentimentos individuais.O mesmo não ocorrerá, porém, quanto às exteriorizações desses sentimentos religiosos, manifestações que se acham vinculadas aos interesses da ordem pública, dos bons costumes, dos direitos da coletividade. Determinadas práticas religiosas, ofensivas à moral e a ordem pública, são necessariamente proibidas porque podem provocar tumultuo que tragam danos ao particular ou à coletividade. [59]

            De fato, não podemos conceber que as religiões ou seitas, ao estipularem seu culto, ignorem os valores norteadores da sociedade, pois, se assim for, estaremos legitimando práticas que colocam em risco a própria estrutura social.

            c) A liberdade de organização religiosa é entendida como sendo a que diz respeito à faculdade que se dá aos que confessam uma determinada religião, de organizarem-se sob a forma de pessoa jurídica para a realização de atos de natureza civil em nome da fé professada. De acordo com J. A. da Silva, "essa liberdade diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado" [60], relação esta que, como destaca o autor, observa três formas de manifestação: a confusão, a união e a separação.

            Na confusão, o Estado se confunde com determinada religião; é o Estado teocrático, como o Vaticano e os Estados Islâmicos. Na hipótese da união, verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada Igreja no concernente à sua organização e funcionamento, como, por exemplo, a participação daquele na designação dos ministros religiosos e sua remuneração. Foi o sistema do Brasil Império. [61]

            A separação, segundo Celso Ribeiro Bastos, é o sistema no qual o Brasil está enquadrado desde que se tornou República. Formou-se, assim, um Estado laico ou não-confessional, indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se, adquirindo personalidade jurídica. [62]

            A norma constitucional hoje esculpida no art. 19 da Carta Maior demonstra esta separação:

            É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

            I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.[...] [63]

            Destacamos também, no que se refere à liberdade religiosa, suas decorrências:

            - Direito de assistência religiosa, assegurado em entidades civis e militares de internação coletiva, como quartéis, internatos, estabelecimentos penais e manicômios, garantido constitucionalmente pelo art. 5º, VII da CF.

            - Objeção ou escusa de consciência, que vem a ser o direito de não prestar serviço militar ou qualquer outra obrigação legal a todos imposta por motivo de crença religiosa, filosófica ou política. Tal faculdade remete o objetor a cumprir prestação de serviço social alternativo, como forma de não perder seus direitos políticos (arts. 5º, VIII e 15, IV da CF). É a situação que se enquadram principalmente os adeptos da religião Testemunha de Jeová.

            - Ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental, o que significa que o aluno não é obrigado a matricular-se na disciplina se assim não quiser.(art. 210, § 1º da CF)

            - Reconhecimento do casamento religioso para efeitos civis. (art. 226, §§ 1º e 2º da CF).

            Apesar de reconhecermos a pertinência da divisão doutrinária sobre a liberdade de religião, neste trabalho trataremos as liberdades de crença e de culto como, simplesmente, liberdade religiosa. Estamos cientes de que a liberdade de crença refere-se a um direito de foro intimo, enquanto a liberdade de culto está relacionada a um direito de exteriorização das crenças. Contudo, consideramos que estes direitos complementam-se e assumem um conteúdo semântico amplo, melhor representado pela terminologia liberdade religiosa.

            2.1.2 A religião Testemunha de Jeová

            Com a possibilidade de uma pluralidade de religiões, graças à expansão dos conceitos da sociedade e da garantia jurídica à liberdade religiosa, novas religiões surgem. Assim surge também a necessidade de uma assimilação jurídica das situações a elas intrínsecas, no sentido de haver uma inclusão social.

            É sob este contexto que apresentamos a Religião Testemunhas de Jeová, elemento do nosso estudo. Esta religião é classificada como "cristã de fronteira", por ser um grupo religioso independente do catolicismo e do protestantismo, que atribui sua doutrina a uma revelação divina especial. [64]

            Fruto do pluralismo religioso já mencionado, a religião Testemunha de Jeová surgiu no começo da década de 1870, através de um pequeno grupo de estudo bíblico coordenado por Charles Taze Russell em Allegheny, Pensilvânia, EUA.

            Russell tinha grande dificuldade de aceitar a doutrina da condenação eterna ao inferno e, em seus estudos, veio a anular não apenas a punição eterna, mas também a Trindade, a deidade de Cristo e o Espírito Santo [65].

            Em 1879, Russell publicou o primeiro volume da revista conhecida atualmente como "A Sentinela" e, por volta de 1880, já se haviam formado inúmeras congregações nos estados vizinhos, a partir daquele pequeno grupo de estudo bíblico.

            Em 1881, formou-se nos Estados Unidos a Sociedade de Tratados da Torre de Vigia de Sião, estatuída em 1884, tendo Russell como presidente. Mais tarde a sociedade passou a se chamar Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, nome pelo qual, é conhecida até hoje.

            Essa sociedade é responsável por difundir mundialmente a doutrina religiosa, fundamentada nos textos bíblicos, dos quais retira as diretrizes a serem seguidas pelas Testemunhas de Jeová.

            No Brasil, esta religião foi introduzida no Rio de Janeiro em 1923 por um grupo de marinheiros norte-americanos. Sua sede nacional se localiza em Cesário Lange, em São Paulo. [66]

            Atualmente o grupo é composto por cerca de seis milhões de adeptos em mais de 230 países e é considerada uma das religiões que mais cresce no Brasil. Em número de adeptos, nosso país só perde para os Estados Unidos, de acordo com a página eletrônica oficial da Sociedade Torre de Vigia. [67]

            Assim como em todas as religiões, vários dogmas fazem parte da doutrina das Testemunhas de Jeová, sendo que o fato de não aceitarem tratamento médico com transfusão de sangue é de conhecimento público e causador de grande polêmica no meio médico e jurídico.

            As Testemunhas de Jeová crêem tão intensamente em seus dogmas, que o recebimento de transfusão de sangue é negado sob qualquer circunstância, inclusive em emergências que conferem ao paciente iminente risco de vida, criando, então, uma celeuma jurídica.

            2.2 Do direito à vida

            Antes de abordarmos o aspecto jurídico que envolve o direito à vida, cumpre-nos ao menos tentar conceituar este presente-mistério chamado vida, classificado por José Afonso da Silva, como "ser que é objeto de direito fundamental" [68].

            Ao abordar a questão do direito à vida, o autor reconhece a dificuldade de apresentar uma definição para o vocábulo vida, tecendo a seguinte consideração: "Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada". [69]

            No entanto, apesar do receio de iniciar uma divagação filosófica sobre o assunto, o autor acaba por apresentar a seguinte definição:

            Vida

, no texto constitucional (art. 5o, caput) não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando então de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida. [70]

            Ao discorrermos sobre a vida humana, devemos sempre ter em mente que tudo o que o direito tutela está diretamente ligado à sua organização e manutenção. Uma vez, existindo vida, automaticamente existirá a necessidade de regulá-la e protegê-la. É sob este enfoque que J. A. da Silva afirma que a vida é a "fonte primária de todos os outros bens jurídicos". [71]

            O direito à vida é contemplado na Constituição Federal, no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5º caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]" [72] (grifo nosso)

            Dentro da teoria dos direitos naturais, o direito à vida é passível apenas de reconhecimento pelo Estado, vez que, é inerente á própria vida. Ives Gandra da Silva Martins assim defende: "Em verdade o direito fundamental do ser humano à vida, é lei não criada pelo Estado, mas pelo Estado apenas reconhecida, é que pertence ao ser humano pelo simples fato de ter sido concebido. É-lhe inerente, e não concedida." [73]

            Se o direito à vida for considerado como o mais fundamental dos direitos, por dele derivarem todos os demais direitos, este, então, é regido pelas premissas constitucionais da inviolabilidade e irrenunciabilidade. Isso significa que o direito à vida não pode ser desrespeitado por terceiros, tampouco pelo Estado, não podendo dispor dele o indivíduo almejando sua morte.

            É função do Estado assegurar o direito à vida – não apenas no sentido de estar vivo – mas também no sentido de garantir ao cidadão uma vida digna quanto à sua subsistência. Neste sentido, afirma Moraes: "o Estado deverá garantir esse direito a um nível adequado com a condição humana, respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa". [74]

            Grande parcela da doutrina defende que o direito à vida é o primeiro e mais importante de todos os direitos, pois, se assim não fosse, de nada adiantaria assegurar os outros direito fundamentais. É esse o entendimento de Pinho: "O direito à vida é o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, pois o exercício dos demais direitos depende de sua existência". [75]

            A tarefa de consubstanciar juridicamente o direito à vida cumpre ao Direito Constitucional, viga mestra de todas as ramificações do ordenamento pátrio. No entanto, há de ser situado o direito à vida, sob o enfoque do direito civil, nos chamados direitos de personalidade como, também, no direito penal, quanto às sanções previstas aos atentados contra a vida.

            Pontes de Miranda, em obra sobre direitos de personalidade, afirma:

            O direito á vida é inato, quem nasce com vida tem direito a ela. (...) Com o nascimento da personalidade (= entrada do nascimento do ser humano no mundo jurídico), nasce o direito à vida como irradiação de eficácia do fato jurídico stricto sensu do nascimento do ser humano com vida (art. 4º, 1º parte). Nas leis penais e policiais, muitas são as regras jurídicas que protegem a vida. Antes do nascimento, resguarda-se. [76]

            Ao considerarmos o direito à vida um direito inato, acreditamos que cabe ao Estado oferecer condições para seu pleno exercício, agindo através de medidas legais, por meio do seu poder de polícia, ou através da não intervenção na seara dos direitos individuais.

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Sobre a autora
Mariane Cristine Tokarski

advogada em Canoinhas(SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOKARSKI, Mariane Cristine. Liberdade e vida:: a recusa à transfusão de sangue à luz dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 891, 11 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7711. Acesso em: 25 abr. 2024.

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