A função social da propriedade:direito ou dever?

17/10/2019 às 21:20
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Uma breve reflexão sobre a evolução do conceito da função social da propriedade.

O instituto da Propriedade talvez seja um dos mais importantes da civilização, sendo este aglutinador de direitos e deveres modulados no decorrer do tempo.

O contratualista Jean Jaques Rousseau já classificava a propriedade como “a origem da desigualdade entre os homens” quando diz em sua obra “O Contrato Social” que O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não ter ia poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘ Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém’”

Apesar de seu ponto de vista um tanto quanto pessimista, Rousseau considerou ser a propriedade como marco fundador da sociedade civil.

O conceito de propriedade, no entanto, sofreu várias alterações ao longo do tempo. No direito romano a propriedade se baseava e três características que consistiam no direito de usar (jus utendi), gozar (jus fruendi) e abusar (jus abutendi) das coisas, possibilitando ao proprietário destruir a coisa caso queira. Possuía caráter personalista, oponível a todos, podendo ser assegurada por ação própria no “jus civile” que era a “rei vindicatio”. (Joao Luiz Nogueira Matias)

Ao que se pode observar no direito romano antigo, a propriedade era absoluta, podendo o proprietário, inclusive, abusá-la deliberadamente, o que hoje, como veremos não se permite.

O legislador brasileiro adotou a percepção de que a propriedade não deveria ser absoluta, mas que deveria servir a um fim, ter uma finalidade a ser atingida. Ademais o direito de ser proprietário de algum bem ou coisa atrai para si não só o direito, mas também responsabilidades sobre o bem ou coisa e também do bem ou coisa perante a sociedade.

Leon Duguit definiu que, exatamente porque somos seres sociais e nos integramos para formar sociedades, a propriedade existe para beneficiar não somente o próprio proprietário, mas também a todos na mesma comunidade. Ademais, a função social se compõe de limites internos. De acordo com essa perspectiva, a propriedade é reconhecida como uma construção artificial. Esses limites internos consistem em obrigações de utilizar a propriedade, ou seja, ela deveria ser produtiva economicamente. (Colin Crawford)

Assim nascia o que é hoje denominado o Princípio da Função Social da Propriedade.

Com a edição do Código Civil de 1916, Clóvis Bevilaqua já dá um novo conceito para a propriedade, ainda não explicitando a sua função social, mas já introduzindo algumas limitações como cita Tartuce: “na era da codificação de 1916, Clóvis Beviláqua conceituava a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral (Direito das coisas..., 2003, v. I, p. 127). Apesar de ser categorização que remonta ao século passado, a construção é interessante, uma vez que leva em conta tanto os bens corpóreos ou materiais quanto aqueles incorpóreos ou imateriais. Sendo assim, a título de ilustração, os direitos de autor e outros direitos de personalidade também poderiam ser objeto de uma propriedade especial, com fortes limitações. ” (TARTUCE, Direito Civil Vol. 4, pág. 77)

Ainda nas lições de Tartuce: “Assim, como observa o Professor Titular da USP, “Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns” (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações..., 2011, p. 73-74). Historicamente, pontual também foi a contribuição da Constituição Alemã de Weimar, de 1919, que elevou a ideia de vinculação social da propriedade à categoria de princípio jurídico, estabelecendo no seu art. 14 que a propriedade obriga, devendo o seu uso servir tanto ao proprietário como ao bem de toda a coletividade (LARENZ, Karl. Derecho Civil…, 1978, p. 79) ” (TARTUCE, Direito Civil Vol. 4, pág. 86)

Dessa forma a antiga concepção Romana sobre Propriedade fica para trás, no sentido de que dela não se pode mais abusar deliberadamente, pois ela tem um fim a cumprir, uma finalidade no plano civil, uma “Função Social”

Vejamos que a propriedade, em nosso ordenamento jurídico, tem a definição intimamente ligada à função social, e um dos direitos basilares do ser humano. No Código Civil atual, de 2002, o artigo 1.228 trata dessa definição, dando à propriedade as faculdades ali descritas:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Ainda no Art. 1.228, o parágrafo primeiro deixa explícito que ela deve atender à sua Função Social, senão vejamos: 

“§ 1 o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. ”

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Já no parágrafo segundo o proprietário fica delimitado no sentido do “jus abuntendi”, ou seja, a propriedade não pode sofrer abusos nem ser usada para que prejudique a sociedade como um todo:

“§ 2 o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. ”

Neste sentido temos a lição de Flavio Tartuce: “a propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade. A propriedade é preenchida a partir dos atributos que constam do Código Civil de 2002 (art. 1.228), sem perder de vista outros direitos, sobretudo aqueles com substrato constitucional. (TARTUCE, Direito Civil Vol. 4, pág. 79)

Então, à guisa de conclusão, a Propriedade não é só um direito, mas também um dever. É um direito do proprietário de ter para si a coisa e também um dever dele para com a coletividade de que essa propriedade produza frutos e atinja sua função social. Nessa linha de entendimento, a ideia de uma função social nada mais é que o reconhecimento de que os interesses do titular daquele direito precisam se compatibilizar com os de outros cidadãos não proprietários, mas que, em um regime democrático, precisam do mesmo respeito e consideração por parte do sistema de direitos construído para a regulação da sociedade como um todo, e em igual medida. (MARCUS EDUARDO DE CARVALHO DANTAS, P. 29)

 

REFERÊNCIAS:

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Editora Ridendo Castigat Mores em https://www.passeidireto.com/arquivo/44103357/justica-e-propriedade-hobbes-rousseau-e-locke

https://jornalggn.com.br/literatura/lista-de-livros-discurso-sobre-a-origem-da-desigualdade-entre-os-homens-parte-ii-jean-jacques-rousseau/

Joao Luiz Nogueira Matias – A função social da empresa e a composição de interesses na sociedade limitada – Doutorado em Direito Comercial – Universidade de São Paulo. http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/manaus/reconst_da_dogmatica_joao_luis_matias_e_afonso_rocha.pdf".

Colin Crawford - A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E O DIREITO À CIDADE: TEORIA E PRÁTICA ATUAL - Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada.- Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 1990

Tartuce, Flavio – Direito Civil, v. 4: Direito das Coisas / Flavio Tartuce – 9 ed. rev., atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017

MACUS EDUARDO DE CARVALHO DANTAS – Da Função social da propriedade à função social da posse exercida pelo proprietário, Revista Senado, ano 52, n. 205 – Jan/mar 2015.

Código Civil Brasileiro de 2002: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

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Sobre o autor
Luciano Lopes Martins

Técnico em contabilidade; Técnico em Segurança do Trabalho; Bacharel em Direito pelo CESG; Advogado; Pós-Graduando em Advocacia Familiarista e Sucessões.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho elaborado para o VI Período do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior de São Gotardo - CESG

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