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A boleia do caminhão e a busca policial

27/02/2023 às 15:10
Leia nesta página:

Caso o policial adentre na cabine, sem mandado, haverá crime de violação de domicílio?

  • O policial pode dar buscas, sem mandado, na boleia do caminhão?

  • Caso o policial adentre na cabine, sem mandado, haverá crime de violação de domicílio?

  • E caso haja arma de fogo irregular dentro da boleia, haverá porte ou posse de arma de fogo?

A boleia do caminhão é a cabine do caminhão, em que o motorista dirige e também descansa. Na parte traseira do interior da boleia há um espaço para que os motoristas descansem, durmam e façam do caminhão seu local de repouso, em razão das longas viagens, ocasião em que levam consigo objetos de uso pessoal.

As respostas às perguntas perpassam pelo conceito de casa.


A boleia do caminhão é considerada casa?

O conceito de casa não é fechado e para fins de proteção constitucional (art. 5º, XI) deve ser interpretado de forma ampla.[1]

Com efeito, o art. 5º, XI, da Constituição Federal assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

O art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) define que a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade e que não se compreendem na expressão "casa": a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva e b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

Para fins penais e processuais penais, o conceito de “casa” é mais amplo do que aquele definido no Código Civil, ao conceitar domicílio (art. 70).

O objetivo, neste momento, não é analisar o conceito de “casa” nas mais diversas situações, mas somente quando se tratar da boleia do caminhão.

A doutrina majoritária e a jurisprudência entendem que a boleia do caminhão deve ser considerada como “casa”, uma vez que o motorista do caminhão a utiliza como moradia, ainda que de forma transitória, razão pela qual merece a proteção constitucional de inviolabilidade domiciliar, com o fim de resguardar a privacidade e a intimidade.

Fato é que motoristas de caminhão passam semanas e até meses viajando e, praticamente, fazem da boleia do caminhão suas próprias casas, sendo necessário que haja uma maior segurança jurídica que proteja a tranquilidade e a privacidade dos caminhoneiros.

Corrente minoritária defende que a boleia do caminhão não deve ser considerada “casa”, por se tratar de um instrumento de trabalho do caminhoneiro, assim como táxi e veículos particulares utilizados para o trabalho (aplicativos de corrida).

Não se pode desconsiderar que o caminhão, além de ser um mecanismo de trabalho, também é utilizado para o descanso, sossego e moradia do caminhoneiro que passa tempo significativo longe de casa, razão pela qual deve haver um tratamento especial e, consequentemente, receber proteção jurídica que permita ao caminhoneiro descansar em paz e fazer da boleia do caminhão seu local de moradia temporária.

O Supremo Tribunal Federal[2], ao analisar a licitude da busca realizada em automóvel, sem mandado, acolheu manifestação da Procuradoria-Geral da República para reconhecer a legalidade da busca, sob o fundamento de que “o espaço compreendido dentro de veículo automotor, salvo a hipótese em que consistir a habitação de seu titular (v.g. Trailers), não está abarcada no conceito jurídico de domicílio, ao qual a lei dispensa proteção especial (art. 5º, XI, CF/1988) em homenagem ao direito fundamental à intimidade e à vida privada”, razão pela qual “não se pode conceber o veículo automotor como um espaço reservado onde o indivíduo desenvolve livremente a sua personalidade – salvo, como alhures asseverado, quando se tratar de veículo com fim de habitação, seja ela de caráter permanente ou provisória –, senão como extensão de seu próprio corpo, porque, meio de transporte que é, destinado ao mero deslocamento de seu condutor e muitas vezes empregado para ocultar vestígios de prática criminosa. Conceber-se o contrário, seria inviabilizar agentes policiais ou fiscais a realizar revista nos veículos por ocasião de ações de fiscalização (v.g., blitz).

A regra é que em veículos automotores seja possível realizar buscas livremente, quando houver fundada suspeita (art. 240, § 2º, do CPP), o que dispensa a exigência de mandado de busca e apreensão, salvo quando se tratar de veículo destinado à habitação do indivíduo, como trailers, cabines de caminhão, barcos, dentre outros.

No mesmo sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça[3].

Não é necessário mandado judicial para que seja realizada a busca por objetos em interior de veículo de propriedade do investigado quando houver fundadas suspeitas de que a pessoa esteja na posse de material que possa constituir corpo de delito.

Será, no entanto, indispensável o mandado quando o veículo for utilizado para moradia do investigado, como é o caso de cabines de caminhão, barcos, trailers.

STJ. 6ª Turma. HC 216437-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/9/2012.

Portanto, a cabine de caminhão deve ser tratada como “casa” para fins de inviolabilidade domiciliar.

Em razão disso (cabine de caminhão ser tratada como casa) surgem diversas consequências jurídicas, como a necessidade de mandado de busca e apreensão para realizar busca na boleia do caminhão; a prática do crime de violação de domicílio para quem ingressa na cabine sem autorização e a prática do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo.


Necessidade de mandado de busca e apreensão para realizar busca na boleia do caminhão

No tocante à necessidade de mandado de busca e apreensão, por ser a casa inviolável, salvo nas situações definidas constitucionalmente, como a autorização judicial, faz-se necessário que haja mandado de busca e apreensão, não sendo possível que a polícia realize buscas na cabine do caminhão sem prévia autorização judicial, salvo se houver situação caracterizadora de flagrante delito.

E nas hipóteses em que houver fundada suspeita que autoriza a realização de busca pessoal, como ocorre com uma pessoa que dirige um carro ou que está em via pública?

Em breves palavras, não será possível a realização de busca na cabine do caminhão, pois a fundada suspeita que autoriza a realização de busca pessoal em via pública ou em carros possui menor rigor que as exigências para que seja realizada busca domiciliar, já que a casa goza de proteção constitucional (art. 5º, XI), é considerada asilo inviolável, em razão do direito à paz, intimidade e vida privada, salvo as exceções definidas na própria Constituição, enquanto que a busca pessoal consiste em um contato do policial no corpo do abordado, para a busca de objetos ilícitos e não há uma invasão da vida privada de forma tão intensa como ocorre ao se realizar uma busca domiciliar, em que a casa é toda averiguada, pois o policial se limita a averiguar somente os bens que estão com o abordado. A busca pessoal também não viola o direito de ir, vir e permanecer, pois este não foi impedido, mas momentaneamente, restringido, de forma justificada, por um curto período, caso nada de ilegal seja encontrado com o abordado.

Nota-se que a busca domiciliar atinge direitos fundamentais em um grau muito mais elevado e intenso do que a busca pessoal, além da regra ser a necessidade de autorização judicial para que haja ingresso em domicílio, salvo se houver uma situação caracterizadora de flagrante delito, cujo conhecimento por parte dos policiais seja prévio e fundamentado, enquanto que a busca pessoal, como regra, dispensa autorização judicial[4], desde que haja elementos que demonstrem que o abordado esteja em atitude suspeita, o que pode estar caracterizado pelo simples fato do abordado permanecer em frente a uma casa a observando, por um período relevante ou por passar várias vezes, no mesmo dia, em frente a um comércio e ficar observando. A busca pessoal pode ocorrer ainda que não haja nenhuma situação de flagrante delito, mas mera suspeita de que o agente está propenso a praticar qualquer fato ilícito, enquanto que a busca domiciliar, sem autorização judicial, sempre exigirá elementos que caracterizem situação de flagrante delito.

Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça afirmou que

“A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador - que deve ser mínima e seguramente comprovado - e sem determinação judicial.”[5]

Toda busca realizada pelo policial, seja a domiciliar ou a pessoal, deve ser fundamentada em elementos concretos que justifiquem a realização da busca, sendo que a busca domiciliar, sem mandado, exige um maior esforço argumentativo.

Exigir o mesmo rigor entre busca pessoal e domiciliar, além de não ter fundamentos razoáveis, inviabilizaria bastante o trabalho da polícia que teria imensa dificuldade para atuar na prevenção do crime, que constitui a finalidade precípua dos órgãos de segurança pública (art. 144 da Constituição Federal), uma vez que grande parte das drogas e armas apreendidas decorrem de buscas pessoais realizadas pelos policiais em serviço e de ofício, além da abordagem policial prévia possuir um efeito inibidor para aquele agente que está em via pública propenso a praticar crimes.

Não se pode desconsiderar a experiência policial, que decorre dos treinos, vivência, experiência, lida diária com a criminalidade, o enfrentamento do crime, o conhecimento prático e teórico que os policiais possuem, o que forma o tirocínio policial, que muitas vezes é suficiente para caracterizar a fundada suspeita e legitimar a busca pessoal, na linha do que decidiu o Superior Tribunal de Justiça[6] ao afirmar que a mera intuição pode autorizar a busca pessoal, o que é inadmissível em se tratando de busca domiciliar, que exige fundadas razões (justa causa), ou seja, exige elementos concretos da possível prática de crime.[7]


Prática do crime de violação de domicílio para quem ingressa na cabine sem autorização

Em relação ao crime de violação de domicílio para quem ingressa na cabine de caminhão sem autorização do caminhoneiro ou sem mandado, em situação que não haja elementos que caracterizam flagrante delito, estará caracterizado o crime em tela.

O art. 150 do Código Penal (art. 226 do CPM) define como crime de violação de domicílio a conduta de “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências.”

Como exposto, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e a doutrina majoritária consideram a cabine de caminhão como casa (casa ou residência sobre rodas), razão pela qual o ingresso ilegal na boleia do caminhão configura o crime de violação de domicílio.

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Caso o ingresso irregular seja praticado por um policial em serviço, tal conduta, configurará o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19)[8]?

A resposta é não, pois o crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio ocorre somente em imóveis, pois o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”[9].

O crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio

Crime de violação de domicílio

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

§ 4º - A expressão "casa" compreende: I - qualquer compartimento habitado; II - aposento ocupado de habitação coletiva; III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.

Portanto, ainda que o ingresso irregular em cabine de caminhão decorra de uma ação policial, não haverá crime de abuso de autoridade, mas tão somente crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal ou art. 226 do CPM), uma vez que a cabine de caminhão é considerada “casa” para fins de violação de domicílio, nos termos do art. 150, § 4º, I (qualquer compartimento habitado), do Código Penal. Trata-se de “casa sobre rodas”.

Norberto Avena[10], ao escrever sobre buscas em veículos, ensina que:

Não podem ser equiparados a domicílio, pois se trata de coisas que pertencem à pessoa. No mesmo caso encontram-se os ônibus de transporte de passageiros, que podem ser livremente examinados. Diferente é a situação da rotulada boleia do caminhão, que se equipara a domicílio na hipótese de encontrar-se o motorista em viagem prolongada, valendo-se da cabine do veículo como dormitório, lá possuindo seus objetos pessoais, roupas e material de higiene. Nesse caso, deve ser respeitada a previsão constitucional exigente de ordem judicial para revista específica, quer dizer, a abordagem diretamente relacionada àquele veículo. Evidentemente, essa regra não tem aplicabilidade na hipótese de blitz, que se caracteriza como operação de revista geral em todos os veículos que passam por determinado local, caso em que a revista aos veículos deve ser livremente facultada.

O entendimento de Avena merece reflexão, todavia entendo que o policial poderá ter acesso à cabine do caminhão para fiscalizar normas de trânsito, como checar a validade do extintor do incêndio, o funcionamento das setas e dos faróis, dentre outros itens, na medida em que esta fiscalização não tem por finalidade realizar buscas, razão pela qual não viola o direito à intimidade e privacidade e, consequentemente, não há violação à inviolabilidade domiciliar.

Noutro giro, caso a polícia adentre ao caminhão, sob a justificativa de proceder à fiscalização de trânsito, mas realize buscas na boleia, eventuais objetos ilícitos encontrados poderão ser considerados provas ilícitas, uma vez que a busca, sem mandado, nessas circunstâncias, será ilegal.


Prática do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo

Caso o policial, durante a checagem dos itens obrigatórios de segurança na cabine do caminhão, visualize uma arma na parte traseira da boleia, poderá apreendê-la e efetuar a prisão do caminhoneiro, pois o policial terá atuado em situação de flagrante delito, que autoriza o ingresso em casa, cujo conhecimento da situação de flagrante foi obtido de forma lícita, era prévio e fundamentado.

O fato do caminhão transitar em viagens longas ou curtas ou dentro ou fora das cidades pouco importa para que haja a proteção da boleia do caminhão como casa, pois em qualquer situação estará caracterizada a moradia do motorista, ainda que esteja de passagem pela cidade ou em trânsito por curto espaço de tempo.

Lado outro, caso o motorista utilize o caminhão para as atividades do dia a dia, sem realizar viagens e sem haver necessidade de dormir, descansar e permanecer no caminhão, não haverá a proteção constitucional de inviolabilidade domiciliar, o que autoriza a busca policial sem mandado, ainda que não haja situação caracterizadora de flagrante delito.

Em relação à conduta por parte do caminhoneiro que mantém arma na boleia do caminhão, a jurisprudência é no sentido de que estará caracterizado o crime de porte ilegal de arma de fogo.

O porte ilegal de arma de fogo estará caracterizado quando a arma estiver, de forma irregular, sob a responsabilidade do agente fora de sua residência.

A posse de arma de fogo ocorre quando aquele que a possui encontra-se com a arma no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa. Foras dessas situações, haverá porte de arma de fogo, como transportar a arma em locais públicos ou privados, em casa de terceiros ou no local de trabalho, quando não for o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.

Em que pese a boleia do caminhão ser considerada casa, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, fixou entendimento de que a arma irregular encontrada dentro da boleia configura o crime de porte ilegal de arma de fogo, sob os seguintes argumentos: a) O caminhão, ainda que seja instrumento de trabalho do motorista, não pode ser considerado extensão de sua residência, nem local de seu trabalho, mas apenas instrumento de trabalho; b) O caminhão é instrumento de trabalho do motorista, assim como, mutatis mutandis, a espátula serve ao artesão. Portanto, não pode ser considerado extensão de sua residência, nem local de seu trabalho, mas apenas um meio físico para se chegar ao fim laboral; c) A boleia de um caminhão não pode ser considerada casa, nem local de trabalho, para fins de configuração do delito de posse irregular de arma de fogo, por não caracterizar residência ou local de trabalho, mas sim o transporte de arma de fogo pelas vias públicas, sem autorização legal ou regulamentar.[11]

Portanto, o Superior Tribunal de Justiça não considera a boleia do caminhão como sendo “casa” para fins penais, o que resulta em contradição com a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ao considerar a indispensabilidade do mandado para realizar buscas em cabines de caminhão, exatamente por ser considerado casa[12].

Criou-se portanto um duplo conceito de casa, um que não considera a boleia do caminhão como “casa” para fins de tipificar o crime de porte ilegal de arma de fogo e outro que considera a boleia do caminhão como “casa” para fins de assegurar a proteção constitucional da inviolabilidade. Não considerar a boleia do caminhão como “casa” para fins penais, mas entender que é casa para fins de proteção constitucional esvazia a própria proteção constitucional, pois não haverá a tutela penal (crime de violação de domicílio) caso a “casa” seja invadida. Não haverá nenhuma consequência penal para aquele que a invadiu e violou um direito constitucional.

Referida interpretação não deve prosperar, pois o conceito de “casa”, termo contido no art. 5º, XI, da Constituição Federal, encontra definição no art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) e deve ser interpretado de forma ampla, a abranger diversos tipos de “casa”, como quartos de hotel e motel, desde que ocupados, barcos, trailers, abrigos debaixo da ponte etc. Diante das decisões do Superior Tribunal de Justiça chega-se a resultados diversos partindo dos mesmos pressupostos. É como se a soma de dois números dessem resultados diversos. Vale aqui a máxima de que onde houver o mesmo fundamento deve haver o mesmo direito.

Diante desse cenário é até possível que a arma encontrada na boleia do caminhão configure o crime de porte ilegal de arma de fogo, mas por fundamentos diversos e não por não ser considerado casa para fins penais.

Deve-se distinguir quando o motorista do caminhão é o empregado de uma empresa[13], o proprietário do caminhão ou quando o utiliza mediante instrumento jurídico que o possibilite permanecer com o caminhão e considerá-lo como “sua casa” ou “local de trabalho em que seja o responsável”.

Quando se tratar de empregado de uma empresa haverá o crime de porte ilegal de arma de fogo, pois a “casa” em que permanece provisoriamente não é sua e o local em que trabalha (dentro do caminhão) também não é seu, sendo o caminhão utilizado como um instrumento de trabalho, o que afasta o crime de posse ilegal de arma de fogo.

Quando o motorista do caminhão for o próprio dono do caminhão ou o possuí-lo a qualquer título, de forma que permita definir o caminhão como sendo “sua casa” ou que o local de trabalho também seja seu (proprietário ou responsável legal), ainda que se trate de um instrumento de trabalho, haverá o crime de posse ilegal de arma de fogo.

Portanto, essa distinção que não é feita, é de suma importância para tipificar quando haverá crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo em se tratando do transporte de armas nas cabines de caminhão.

Acredito que o entendimento pelo crime de porte ilegal de arma de fogo por parte do motorista que transporte arma dentro da cabine de caminhão, como os tribunais vêm decidindo, decorra de uma política criminal que tem, por fim, coibir e reprimir de forma mais severa a circulação de armas em vias públicas, pois o fato de levar arma no caminhão equivale, em termos práticos, a levar uma arma dentro de um carro, o que compromete a incolumidade pública.

Por fim, deve-se observar que a jurisprudência não distingue a parte da frente da parte de trás da boleia do caminhão para fins de configuração do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo.

A parte traseira do interior da boleia do caminhão é que possui cama e estrutura para o repouso e descanso do motorista, sendo certo, no entanto, que acaba por utilizar a parte da frente também para guardar bens, trocar de roupa etc. Fato é que a parte traseira da cabine do caminhão é que deveria merecer proteção constitucional, por ser o local destinado à moradia[14], o que permitiria a realização de buscas pela polícia somente na parte da frente da cabine do caminhão, sem necessidade de mandado, assim como são realizadas buscas em carros.


Notas

[1] STF - MS 23.595/DF.

[2] RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 117.767 DISTRITO FEDERAL.

[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Desnecessidade de mandado para busca pessoal. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/0f46c64b74a6c964c674853a89796c8e>. Acesso em: 16/10/2019

[4] CPP. Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

[5] STJ - REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.

[6] STJ - REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.

[7] O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 2002, que “a ‘fundada suspeita’ prevista no artigo 244 do CPP não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa”. (STF, HC 81.305, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 22/02/2002).

[8] A Nova Lei de Abuso de Autoridade entra em vigor no dia 03 de janeiro de 2020.

[9] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13869.htm

[10] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

[11] STJ - AREsp: 1264069 RS 2018/0061818-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 27/04/2018; STJ - REsp: 1643361 RS 2016/0327179-8, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 21/02/2017)(RHC 31.492⁄SP, Rel. Ministro Campos Marques (Desembargador Convocado do TJ⁄PR), Quinta Turma, DJe 19⁄08⁄2013); AgRg no REsp 1362124/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/03/2013, DJe 10/04/2013; (TJ-RJ - APL: 00025767220138190044 RIO DE JANEIRO PORCIUNCULA VARA UNICA, Relator: MÁRCIA PERRINI BODART, Data de Julgamento: 26/01/2016, SÉTIMA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 29/01/2016.

[12] STJ. 6ª Turma. HC 216437-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/9/2012.

[13] O termo “empresa” está empregado sem o rigor técnico, pois empresa é atividade e não sociedade empresarial ou pessoa jurídica.

[14] O Professor Renato Brasileiro de Lima cita em seu livro como exemplo de casa a parte traseira do interior boleia do caminhão (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. p. 751).

Sobre o autor
Rodrigo Foureaux

Juiz de Direito - TJGO. Mestre em Direito. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz do TJAL. É Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Bacharel em Direito e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social. Especialista em Direito Público. Autor do livro "Justiça Militar: Aspectos Gerais e Controversos".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FOUREAUX, Rodrigo. A boleia do caminhão e a busca policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7180, 27 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77248. Acesso em: 26 abr. 2024.

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