A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade no ordenamento jurídico penal brasileiro

19/10/2019 às 17:07
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O presente artigo visa demonstrar a importância da aplicação da cegueira deliberada no ordenamento jurídico penal brasileiro, a dificuldade em sua compatibilização com as normas de direito penal e as justificativas que possibilitam a sua serventia.

1 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. 

1.1. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO.   

A Teoria da Cegueira deliberada teve origem no século XIX, um desenvolvimento anglo-saxão e que tem a sua “aplicabilidade repetida especialmente em países com diferentes entendimentos acerca de dogmática penal de direito continental”.

Diante da expansão da doutrina da cegueira deliberada, importa, elucidar o desenvolvimento da teoria nos sistemas civil law e common law, como será feito a seguir. 

1.1.1. O desenvolvimento da teoria da cegueira deliberada no sistema common law

A primeira vez em que o sistema common law sentiu a necessidade de equiparar penalmente o conhecimento efetivo e os casos de cegueira deliberada (“willful blindness”), ocorreu em 1861, no caso Regina v. Sleep. O Sr. Sleep foi condenado em primeira instância pelo crime de malversação por apropriar-se de parafusos de cobre marcados como de titularidade pública.

Entretanto, diante da alegação de desconhecimento de tratar-se de bem público, sendo que, a “Embezzlement of Public Stores Act (Lei sobre desfalques em depósitos públicos) de 1697, exigia o conhecimento do agente sobre o fato dos bens serem de titularidade pública, em recurso o Juiz Willes sentenciou: “O júri não encontrou [sobre indícios] nem que o homem sabia que os parafusos estavam marcados [como propriedade] nem que ele propositadamente absteve-se de obter tal conhecimento”. Assim, restou revogada a condenação anterior. 

Em 1899 a doutrina teve sua primeira aplicação na Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte, no famigerado caso Spurr v. United States, o qual tratava-se de um gerente de banco que teria certificado deliberadamente cheques de um cliente pessoa jurídica, sem verificar a existência de fundos em sua conta corrente. Diante disso: 

A corte, no julgado, apontou que a expressão “deliberada” (willful) exigiria tanto intenção quanto conhecimento (semelhante ao binômio vontade e consciência), mas que o propósito malicioso (figura equiparada ao elemento subjetivo do tipo da doutrina brasileira) do agente poderia ser presumido em situações em que este se coloca propositadamente em posição de ignorância.

Assim, o júri foi instruído para que demonstrada a intencional ignorância do réu acerca de um fato criminalmente relevante, a fim de evitar o conhecimento e consequente responsabilização, este poderia ser condenado. 

Em 1962, com o surgimento do “Model Penal Code (Código Penal Modelo), iniciou-se nos estados norte-americanos a aceitação da figura da “willful blindness”. Mais especificamente, o entendimento no sentido de que a insegurança da figura da mens rea deveria ser substituída pela lógica da legalidade material a partir da normatização de figuras.

A base da doutrina norte americana ganhou expansão a partir de 1969, com o julgamento Leary v. United States,  em que o Model Penal Code (Código Penal Modelo) passou a ser adotado na Suprema Corte como guia geral de aplicação do Direito Penal. 

Posteriormente, com a entrada em vigor do “Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act (CDAPCA), de 27 de outubro, seriam crimes as condutas: (i) importação de substâncias que se sabe serem controladas (pelo Governo) e (ii) a posse dolosa de tais substâncias com o intuito de distribuição. Contudo, o conhecimento atual representado pela expressão “sabe serem”, fez com que surgisse defesa processual no sentido de ignorância do controle estatal.

Diante disso, para corrigir a lacuna legislativa, a acusação encontrou na equiparação da cegueira deliberada ao conhecimento, a oportunidade da afetiva aplicação da lei, corrigindo, por consequente o espaço legislativo.

Com efeito, a partir de 1970, a figura da “willful blindness” passou a ser aplicada de maneira generalizada em casos de transporte de drogas.  

Em 1976, o caso paradigmático da teoria United States v. Jewell foi julgado na corte de apelação do nono circuito federal e passou a ser marco referencial do tema.

No caso, o acusado foi condenado em primeira instância por atravessar a fronteira mexicana com os Estados Unidos transportando, supostamente a pedido, 110 libras de maconha no compartimento secreto do porta-malas do carro. Sua alegação era de que ele não sabia exatamente o que estava transportando, apesar de ter a suspeita de fazer algo ilegal.

O acusado apelou da decisão, sendo está confirmada pelo Tribunal. Segundo a Câmara, “quem tem conhecimento da alta probabilidade da existência de um fato e não faz o necessário para confirmar sua suspeita merece o mesmo tratamento que quem tem plena certeza sobre esse extremo”.

Em 2010, no julgamento do caso Globaltech Appliances Inc vs. SEB, deu-se a consolidação da teoria criminal em sede civil, expandindo seu entendimento e tornando-a mais abrangente.

1.1.2. O desenvolvimento da teoria da cegueira deliberada no sistema civil law

Quanto a doutrina da cegueira deliberada no sistema da civil law, temos como primeira resolução do Supremo Tribunal Espanhol datada de 10-12-2000, Relator Giménez García, a qual dispõe acerca da ignorância deliberada. 

O pronunciamento refere-se a uma resposta dada a alegação do autor do crime de receptação, por transportar quantias significativas de dinheiro para um paraíso fiscal, que afirmou em sua defesa que não tinha conhecimento que essas quantidades se originaram do tráfico de drogas. A Câmara rebateu essa alegação por meio dos seguintes argumentos, “in verbis”: 

Na entrega do dinheiro para José J., Miguel foi acompanhado de Hebe e, José J. cobrará uma comissão de 4%. A Câmara extrai a conclusão de que José J. estava ciente de que o dinheiro veio do negócio de drogas - o que ele nega - de fatos tão óbvios quanto a quantidade era muito importante e da natureza claramente clandestina das operações, de modo que quem se coloca em uma situação de ignorância deliberada, isto é, não querendo saber o que pode e deve ser conhecido, e no entanto, beneficia desta situação - pagou 4% de comissão, está assumindo e aceitando todas as possibilidades da origem do negócio em que participa e, portanto, deve responder por suas consequências (negrito no original).

Posteriormente, a doutrina da cegueira deliberada foi reiterada em resoluções, tais como SSTS de 16-10-2000 ou 22-5-2002 do Relator Giménez García, ATS de 4-7-2002 do Relator Martínez Arrieta. 

Ressalta-se que, conforme aponta RAGUÉS I VALLÈS as decisões da Suprema Corte Espanhola no que tange a doutrina são contraditórias entre si, de modo que, não há uniformidade acerca do tema. 

No Brasil, a primeira menção acerca da teoria da cegueira deliberada apresentou-se na Apelação Criminal no. 5520-CE 2005.81.00.014586-0 ou da sentença criminal do Processo Crime no. 2005.81.00.014586-0, o qual trata-se do caso do Banco Central de Fortaleza.  

No caso, os agentes utilizando-se de um túnel, furtaram cerca de R$ 167.755.150,00 (cento e sessenta e sete milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta reais e zero centavos) em notas de R$ 50 (cinquenta reais), entre as 22h de sexta-feira e as 6h da manhã de sábado. Após o furto, uma parte dos agentes, a fim de esconder o produto do crime, posicionou-o em estofados de caminhonetes, as quais encontravam-se dentro de um caminhão cegonha.

Nessa circunstância, a aplicação da teoria da cegueira deliberada, deu-se na conduta dos proprietários da concessionária Brilhe Car que ao vender os carros aos agentes, recebeu o dinheiro em espécie R$ 980.000,00 (novecentos e oitenta mil) dentro de sacos de nylon, com aproximadamente R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil) extras.

 Assim, equiparando o dolo eventual a cegueira deliberada (willful blindness), a r. sentença condenou José Elizomarte e Francisco Dermival (proprietários da concessionária Brilhe Car) pelo crime de lavagem de dinheiro aplicando as penas do artigo 1º, V e VII, §1º, I, §2º, I e II da Lei 9.613/98, assim como, as penas dos artigos 9, 10 e seguintes da mesma lei, com o fundamento de que ambos sabiam ser de origem ilícita os valores recebidos. Nesse sentido, constou dos fundamentos da respeitável sentença: 

Eu previno vocês que uma acusação de cegueira deliberada não os autoriza a concluir que o acusado agiu com conhecimento porque ele deveria saber o que estava ocorrendo quando da venda da propriedade ou que, em exercício de adivinhação, ele deveria saber o que estava ocorrendo ou porque ele foi negligente em reconhecer o que estava ocorrendo ou porque ele foi incauto ou tolo em reconhecer o que estava ocorrendo. Ao contrário, o Governo deve provar acima de qualquer dúvida razoável que o acusado motivadamente e deliberadamente evitou descobrir todos os fatos.

Em apelação, o Tribunal Regional Federal afastou a condenação com o fundamento de que, no caso, a aplicação da teoria beira a responsabilidade penal objetiva, vez que, a Lei 9.613/98 (Lei de “lavagem” de dinheiro) em seu artigo 1°, §2°, II, exige a ciência expressa quanto a origem ilícita e não dolo eventual. Também constou do venerável acórdão: 

Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à conduta do art. 1.º, § 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave), mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes.   

É relevante a circunstância de que o furto foi realizado na madrugada da sexta para o sábado; a venda dos veículos ocorreu na manhã do sábado. Ocorre que o crime somente foi descoberto por ocasião do início do expediente bancário, na segunda-feira subseqüente. Não há, portanto, como fazer a ilação de que os empresários deveriam supor que a vultosa quantia em cédulas de R$ 50,00 poderia ser parte do produto do delito cometido contra a autarquia.  

Outrossim, a doutrina em tela teve sua incidência na Ação Penal no. 470/STF no famigerado caso do mensalão, constando do voto da Ministra Rosa Weber a equiparação do dolo eventual a cegueira deliberada. Nesse sentido: 

O voto de Rosa Weber na Ação Penal 470 trata da cegueira deliberada ao analisar as imputações feitas a título de lavagem de dinheiro, afirmando ser possível identificar na conduta dos acusados-beneficiários dos pagamentos considerados ‘extravagantes’ - feitos por agência de propaganda de propriedade do acusado Marcos Valério Fernandes de Souza, contratada pela Administração Pública Federal, por solicitação do Partido dos Trabalhadores, recebidos ‘sem qualquer ressalva ou tentativa de esclarecer a origem deles’ - ‘a postura típica daqueles que escolhem deliberadamente fechar os olhos para o que, de outra maneira, lhes seria óbvio, ou seja, o agir com indiferença, ignorância ou cegueira deliberada’.

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Igualmente, incidiu a teoria na “Operação Lava Jato”, equiparando-se, também, o dolo eventual a cegueira deliberada. O caso discorre acerca de desvios de numerário público, ocorridos no período de 2009 a 2014, na construção da refinaria Abreu e Lima – RNEST, através de pagamento de contratos superfaturados a empresas que prestaram serviços direta ou indiretamente a Petróleo Brasileiro S/A - Petrobras.

 Com efeito, verifica-se nos casos citados que comumente a teoria da cegueira deliberada é utilizada como equiparação ao dolo eventual, o que se difere da proposta desenvolvida no sistema common law. Assim, conforme se verificará adiante está equiparação não é a melhor justificativa para a incidência da teoria no direito penal brasileiro. 

1.2. CONCEITO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. 

Preliminarmente, observa-se do desenvolvimento histórico acima abordado que a doutrina da cegueira deliberada evoluiu consideravelmente desde o seu surgimento, portanto, imperioso delinear seu conceito. 

É cediço que ao transplantar a teoria do sistema da common law para o sistema da civil law imprescindível a observação da sua evolução histórica para que se chegue a uma correta conceituação e, consequente aplicação. Contudo, verifica-se que os julgados brasileiros que abordam a teoria aqui desenvolvida utilizam-se apenas de casos específicos, sem, no entanto, observar toda a discussão que circunda o tema.  

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro ao buscar no direito Espanhol a solução para a aplicação da teoria, não logra êxito, de modo que, acaba por interpretar a teoria de forma errônea e muita das vezes vaga. 

A priori, a teoria da cegueira deliberada subdivide-se em cegueira deliberada em sentido estrito e ignorância deliberada, portanto ao referir-se à teoria com suas subdivisões diz-se cegueira deliberada em sentido amplo. 

Como considerações iniciais, importante salientar que a cegueira deliberada é uma forma subjetiva de imputação para os casos de desconhecimento voluntário. 

A teoria da cegueira deliberada serve para a imputação subjetiva do agente que escolhe pelo desconhecimento do fato do qual tinha a possibilidade de conhece-lo ou se coloca em situação de desconhecimento de um ou alguns dos elementos do tipo, evitando assim o conhecimento, a responsabilidade e agir, adquirindo uma vantagem que não necessariamente será econômica. 

Observa-se a relevância da teoria visto que a alegação de desconhecimento pode desconstituir o elemento do tipo. Nesse sentido: 

Tendo-se em vista que o princípio da legalidade (em si e em seu subprincípio da taxatividade) exige a presença e representação de todos os elementos integradores da conduta prevista, o não conhecimento esvaziaria o conteúdo típico em certas situações. Isso porque a existência de elemento subjetivo (dolo, no caso) seria mandatória para a configuração do tipo, especialmente quando este não previu punição para a conduta culposa.

Ademais, em ambas as situações o agente além de se colocar em desconhecimento em um momento anterior, não deseja as consequências ilícitas posteriores ao obscurecimento.

Ante o exposto, passa-se a distinção da cegueira delibera em sentido estrito e a ignorância deliberada. 

1.2.1. Da Cegueira Deliberada em sentido estrito. 

A cegueira deliberada em sentido estrito é a situação em que o agente se coloca em cegueira acerca de um ou alguns dos elementos do tipo, em momento anterior a prática da conduta que por sua vez ocorrerá em momento futuro e incerto, ou seja, coloca-se em desconhecimento voluntário antes de concretizada a conduta.  

Destarte, o agente que se coloca em cegueira deliberada em sentido estrito evita o conhecimento, assim, caso a conduta se concretize poderá alegar seu desconhecimento acerca da ilicitude desta, evitando responsabilidade e adquirindo vantagem indevida que não será necessariamente econômica. 

Nesse sentido, exemplificando, a cegueira delibera em sentido estrito ocorre quando “o indivíduo prevê que algum dia pode vir a virar réu em um processo pelas atividades que pratica e, antes que surja qualquer problema orienta o porteiro do prédio a nunca receber correspondências judiciais”.

Deste modo, a fim de evitar o conhecimento, o agente antes de efetivada a prática da conduta delituosa - a qual ressalta-se será futura e incerta - se coloca em desconhecimento voluntário acerca do caráter ilícito de sua conduta, assim, o agente voluntariamente se esquiva de adquirir conhecimento. 

1.2.2.  Da Ignorância Deliberada. 

A ignorância deliberada, por seu turno, descreve situações em que um sujeito possui a possibilidade de obter informações acerca dos fatos, porém decide-se por não obtê-las, permanecendo assim em um estado de incerteza. 

De início, observa-se que as informações devem estar disponíveis, sendo necessário apenas um esforço mínimo para atingir o conhecimento sobre os fatos, com base na possibilidade que concerne o conhecimento do homem médio. 

Assim, ao optar pelo estado de ignorância deliberada, o agente evita o conhecimento, a responsabilidade e o dever de agir, adquirindo uma vantagem não necessariamente econômica. 

Por oportuno, a ignorância deliberada se subdivide-se em: (i) ignorância voluntária e (ii) ignorância provocada. 

Na ignorância voluntária o sujeito se coloca em estado de ignorância, evitando assim as consequências que podem advir com o conhecimento. 

Já a ignorância provocada não possui consequências jurídicas, tendo em vista que o indivíduo é colocado em situação de ignorância, portanto, trata-se de ignorância pura.  

Nota-se que, o agente que se encontra em ignorância provocada não tem dúvidas acerca dos fatos, pois ele nem ao menos desconfia da existência de um ilícito. Esta falta de desconfiança pode advir de duas situações: a primeira em que existe um vínculo de confiança entre o colocado em ignorância e o que colocou; na segunda, a obtenção do conhecimento levaria a um esforço elevado que, por conseguinte acabaria por violar um direito. Em exemplos subsequentes temos: “[...] um amigo que pede para outro segurar um pacote momentaneamente enquanto ele vai ao banheiro; nesse pacote há drogas e a polícia as apreende durante a ausência do amigo”e o caso de transporte de cofre o qual encontra-se fechado, não sendo possível sua abertura sem que haja violação a direito. 

De modo geral observa-se a necessidade de alguns requisitos para se observar o instituto da ignorância deliberada:  

(1) deve se estar numa situação em que o agente não tem conhecimento suficiente da informação que compõe o elemento de um tipo penal em que está inserido; (2) tal informação, apesar de insuficiente, deve estar disponível ao agente para acessar imediatamente e com facilidade; (3) [...] ‘o agente deve se comportar com indiferença por não buscar conhecer a informação suspeita relacionada à situação em que está inserido’; (4) [...] ‘deve haver um dever de cuidado legal ou contratual do agente sobre tais informações’; (5) [...] ‘é necessário se identificar uma motivação egoística e ilícita que manteve o sujeito em situação de desconhecimento’; (6) [...] ‘ausência de garantia constitucional afastadora de deveres de cuidado’; (7) [...] ‘ausência de circunstância de isenção de responsabilidade advinda da natureza da relação instalada’; (8) [...] ‘ausência de circunstância de ação neutra’. 

Tem-se ainda, a possibilidade de um nono requisito para os casos em que não à identificação de um dever de cuidado, que consequentemente excluiria a responsabilidade penal. Assim, o nono requisito se aproximaria do princípio da probabilidade: “na ausência de previsão de dever de cuidado legal ou contratual, a existência de situação fática de comprovada suspeita de licitude do elemento do tipo determina o dever de cuidado ao agente”.

Concluída a conceituação da teoria, passa-se a análise de sua aplicação no ordenamento jurídico-penal brasileiro. 

2. DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO. 

Recentemente, o direito brasileiro vem se utilizando do conceito de dolo eventual para equiparar a cegueira deliberada. Entretanto, conforme se passará a expor a diante, restará demonstrado a insuficiência do instituto do dolo eventual para justificar a aplicação e explicação da cegueira deliberada no ordenamento jurídico-penal brasileiro, assim como, sua incompatibilidade com o instituto do erro do tipo e, sequencialmente apresentar os institutos que a melhor justifica. 

2.1. DO DOLO EVENTUAL. 

O código penal brasileiro em seu artigo 18, inciso I, dispõe acerca do conceito de crime doloso: “Art. 18. Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;”.

Assim, o crime doloso será aquele em que o agente busca o resultado (dolo direto) ou assumi o risco de produzi-lo (dolo indireto). 

Por seu turno, o dolo indireto se subdivide-se em: (i) dolo alternativo, como aquele em que o agente se satisfaz com qualquer resultado; e (ii) dolo eventual, sendo aquele em que o agente não deseja diretamente o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. 

Para o desenvolver da proposta deste trabalho analisaremos melhor o conceito de dolo eventual.  

Nesse sentido, dolo eventual “É a vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não desejado, mas admitido, unido ao primeiro”.

Nota-se que, primeiramente o agente busca um resultado determinado de forma direta, já no tocante a possibilidade de concretização do segundo resultado o agente não o quer diretamente, sendo-lhe, portanto, indiferente quanto a este.

Destarte, o dolo eventual em uma primeira vertente possui um resultado determinado e direcionado do agente, sendo que, ao analisar as possíveis consequências da sua conduta decide por mantê-la (por intermédio de uma conduta indiferente), de modo que, este segundo possível resultado não se deseja diretamente.  

No mesmo sentido, Mirabete ao dispor acerca do artigo 18, inciso I, do Código Penal: 

Na segunda parte do inciso em estudo, a lei trata do dolo eventual. Nessa hipótese, a vontade do agente não está dirigida para a obtenção do resultado; o que ele quer é algo diverso, mas, prevendo que o evento possa ocorrer, assume assim mesmo o risco de causá-lo. Essa possibilidade de ocorrência do resultado não o detém e ele pratica a conduta, consentindo no resultado. Há dolo eventual, portanto, quando o autor tem seriamente como possível a realização do tipo legal se praticar a conduta e se conforma com isso.

Da análise do trecho supracitado temos que, o agente prevendo o evento ilícito não cessa a sua conduta e decide por mantê-la, assim sendo, o agente consente com o resultado ao assumir o risco de produzi-lo. 

Observa-se que o agente conhece os riscos e resultados possíveis da sua conduta, porém não a interrompe por não se importar com as consequências de seu ato.41 Destarte, age o agente de forma imprudente, mas acreditando que não haverá quaisquer inferências a partir de sua conduta. 

A jurisprudência brasileira em determinados casos entende pela aplicação da cegueira deliberada equiparando-a ao dolo eventual, como se observa do seguinte acórdão da 15ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo: 

[...] 

Diante de todos os elementos colhidos nos autos, não restam dúvidas de que a insurgente realmente cometeu o crime contra a ordem tributária, consistente em fraudar a fiscalização tributária, omitindo operação em livro exigido pela lei fiscal, nos termos do artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90, não havendo que se falar em insuficiência probatória, tampouco em atipicidade da conduta. Ora, não parece minimamente crível que a apelante, que é técnica contábil, possuindo amplos poderes de gestão na empresa, desconhecesse uma fraude fiscal da ordem de mais de dois milhões de reais, montante este que a beneficiava diretamente. Em verdade, verifica-se que, no caso concreto, afigura-se perfeitamente aplicável a teoria da cegueira deliberada (willfull blindness doctrine), também conhecida como doutrina das instruções do avestruz (ostrich instructions), ou, ainda, doutrina da evitação da consciência (conscious avoidance doctrine), segundo a qual o agente, voluntariamente,  se coloca em uma situação de desconhecimento para, com isto, tentar furtar-se de sua responsabilidade penal, optando, deliberadamente, por não enxergar determinada conduta, assentindo, porém, com o resultado desta, a evidenciar, assim, verdadeira modalidade de dolo eventual. Importante salientar que, para a aplicação da referida teoria, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: a) o conhecimento, por parte do agente, da elevada probabilidade de que praticava ou participava de atividade ilícita; b) que tenha ele condições de aprofundar o seu conhecimento acerca da natureza de sua atividade; e c) que tenha agido deliberadamente de modo a permanecer indiferente a esse conhecimento. 

[...] 

Todavia, a equiparação da cegueira deliberada com o dolo eventual não é justificativa suficiente para a sua correta aplicação no nosso ordenamento jurídico. 

Evidencia-se que o conceito de dolo eventual difere daquele dado a cegueira deliberada, vez que, no primeiro caso há conhecimento e a assunção do risco de produzir um resultado e no segundo caso tem-se  conhecimento potencial ou um dever de cuidado que gera dever de conhecimento ao agente, sendo certo que em ambos os casos não há conhecimento efetivo. 

No dolo eventual a um prognóstico feito pelo agente que o prosseguimento da conduta atual poderá afetar um bem jurídico. 

Já na cegueira deliberada há uma possibilidade de ocorrer uma ofensa a um bem jurídico, porém esta possibilidade é incerta, tendo em vista que o agente não possui conhecimento efetivo, portanto, a conduta do agente é circundada de variáveis, assim, quem se coloca em desconhecimento não necessariamente atingira o resultado. 

Igualmente, nota-se que a equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual, amplia indevidamente o instituto previsto no direito penal, trazendo possibilidade além daquela prevista pelo legislador. 

Portanto, nítido que a aplicação do dolo eventual como justificativa para a transplantação da cegueira deliberada no ordenamento jurídico penal brasileiro é insuficiente, pois não abrange todas as peculiaridades da teoria. 

2.2. DO ERRO DO TIPO. 

Inicialmente, merece destaque a seguinte conceituação de Guilherme de Souza Nucci sobre erro e ignorância: 

O erro é a falsa representação da realidade ou o falso conhecimento de um objetivo (trata-se de um estado positivo); a ignorância é a falta de representação total do objeto (trata-se de um estado negativo). Erra o agente que pensa estar vendo, parado na esquina, seu amigo, quando na realidade é um estranho que ali se encontra; ignorância, por seu turno, é o estado do agente que não tem a menor ideia de quem está parado na esquina.

 Adiante o autor observa que, no ordenamento jurídico penal brasileiro prevalece a teoria unitária, ou seja, a unidade dos dois conceitos, o que leva a consequência jurídica idêntica para ambos. 

Todavia, a ignorância acima retratada refere-se a ignorância pura, que por sua vez, não se confunde com a ignorância provocada. 

Em suma, o erro do tipo está descrito no artigo 20, caput, do Código Penal: “O erro sobre o elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. 

Nota-se que, o erro do tipo é uma falsa percepção da realidade, assim sendo, quando o agente desenvolve uma conduta sem saber que está praticando um crime, um exemplo clássico é o do caçador que ao observar uma movimentação atira e acerta o seu companheiro de caça, neste caso, o agente erra sobre um elemento constitutivo do tipo, qual seja matar alguém. 

Nesse sentido, o erro sobre o elemento constitutivo do tipo poderá ser vencível ou invencível, será vencível quando uma pessoa mais cuidadosa teria melhor averiguado, assim, não erraria, o erro do tipo vencível exclui o dolo, mas o agente responde a título de culpa se a modalidade culposa estiver previsão legal.  

Já o erro do tipo invencível é aquele em que qualquer pessoa erraria, em conseguinte exclui-se o dolo e a culpa, sendo o fato atípico. 

 O erro do tipo difere-se da doutrina aqui estudada em duas vertentes mais visíveis, na primeira vê-se que, a identificação do erro do tipo exclui o dolo e na doutrina aqui estudada a identificação implica na representação requerida para o dolo.

Outrossim, a cegueira deliberada possui um grau maior de reprovabilidade, pois o agente cria o risco ou o eleva com sua postura desidiosa. 

Difere-se, outrossim, na questão da vencibilidade, visto que, na cegueira deliberada em sentido estrito existe a criação de situação de desconhecimento, o que demonstra estar diante de uma situação evitável, à vista disso, somente coloca-se em situação de desconhecimento sobre algo que se sabe existir, portanto, não se pode alegar desconhecimento verdadeira sobre fato identificado. 

Portanto, embora os institutos guardem alguma semelhança, estes não se confundem. 

2.3. DO DEVER DE CUIDADO. 

Tem-se, outrossim, como justificativa para aplicação da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico penal brasileiro o dever de cuidado. 

Observa-se que, no dever de cuidado a reprovabilidade se dá por ocorrer a expectativa de ação, a fim de evitar a violação ao dever de cuidado. 

Em suma, o ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê duas possibilidades de aplicação da teoria pelo dever de cuidado. A primeira está contida no artigo 13, parágrafo 2°, do Código Penal Brasileiro, o qual prevê que “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.

 Assim, nota-se que, a relevância se dá na verificação e não investigação de uma suspeita, ademais, vê-se que, a omissão é peça chave para a obtenção do resultado na teoria da cegueira deliberada em sentido amplo. 

 A segunda vertente se dá a partir da culpa por negligência. Nesse sentido, o agente que pode e deve agir de outro modo, não o fazendo pode violar um dever objetivo de cuidado. Ou seja, havendo uma suspeita acerca dos fatos a sua não investigação viola um dever de cuidado.  

Verifica-se, portanto que, a conduta será analisada a partir da observação de que no momento da omissão era possível - a partir de um conhecimento do homem médio - identificar o risco a ser produzido e ajustar a conduta a um cuidado devido, sendo que, a indagação acerca dessa previsibilidade deve ser analisada no campo da culpabilidade. 

Assim, nota-se que o dever de cuidado se aplica quando a lei prevê expressamente essa possibilidade, como se vê no caso do garantidor na omissão imprópria e pela negligência a partir de uma não investigação de uma suspeita. Nesse sentido: 

[...] quando alguém está ciente de que a conduta que se está prestes a praticar poderia impor risco substancial e injustificável a outros, adquirir-se-ia o dever de investigar utilizando-se de meios razoáveis se tais riscos poderiam realmente se materializar. 

Ademais, a figura no dever de cuidado tem sua melhor aplicação na ignorância deliberada.  

Conduto, surgem dificuldades em aplicar o dever de cuidado pela luz da ignorância deliberada – sendo que, pela conceituação do instituto não incide sua aplicação na cegueira deliberada em sentido estrito –, visto a necessidade de demonstrar os seguintes pressupostos: (i) encontrar o dever de cuidado; (ii) identificar a quem se esta estava atribuído e (iii) demonstrar a quebra de tal dever.

Com efeito, não prevê o ordenamento jurídico o conceito do que seria esse dever de cuidado, o que dificulta sua elucidação, assim acabaria a cargo do julgador definir tal conceituação. Sendo certo que, não deverá haver um esforço do julgador para tal conceituação, assim como, do agente para tomar conhecimento acerca dos elementos dos fatos.

2.4. DA ALTA PROBABILIDADE. 

De acordo com o ensinamento do Doutor Spencer Toth Sydow, a alta probabilidade seria na verdade, uma previsibilidade que o agente possui de sua conduta gerar um ilícito e mesmo assim, não se omite de praticá-la. 

A alta probabilidade tem um conceito mais amplo que o dever de cuidado, visto que, na alta probabilidade independe de um dever de cuidado, o que se leva em conta é a alta probabilidade que o agente possui de entender o caráter ilícito dos seus atos - tendo em vista o conhecimento do homem médio - , no momento da conduta. 

Assim sendo, “iguala-se a alta probabilidade de conhecimento com o conhecimento em si, numa espécie de princípio”.

Ademais, observa-se que, a alta probabilidade tem sua reprovabilidade a partir de uma ação da qual o agente devia se omitir diante da previsibilidade de sua conduta possuir um caráter ilícito. 

Portanto, possuindo o agente essa previsibilidade e mesmo assim opta por prosseguir com sua conduta, por obvio que esta possuirá maior reprovabilidade, sendo punida então a título de dolo. 

Destarte, se estará diante da alta probabilidade, quando o agente ao analisar sua conduta, nota que esta poderá atingir um bem jurídico penalmente relevante e escolhe por não cessá-la, evitando ainda adquirir a confirmação do fato.58 

Outrossim, o instituto da alta probabilidade, tem sua aplicação - devido ao seu amplo conceito – tanto em uma vertente de ignorância deliberada, quanto na cegueira deliberada em sentido estrito. 

Em exemplos respectivos da aplicação da alta probabilidade na cegueira deliberada em sentido estrito e na ignorância deliberada, temos:  

[...] um serviço de hospedagem de sites que ao receber denúncias de pornografia infantil por email redireciona a mensagem automaticamente para um email de uma delegacia de polícia de investigação cibernéticas e as apaga, sem tomar qualquer outra providência. Há grande probabilidade de que as mensagens redirecionadas à polícia automaticamente não gerem qualquer espécie de investigação criminal e a pornografia infantil continue sendo disseminada através do site. Apesar da elevada probabilidade, o provedor mantém essa como sua estratégia para evitar ter que tomar atitudes contra seus usuários. 

Seria o caso do cidadão que é procurado por um desconhecido que oferece uma boa quantidade de dinheiro para que ele efetue uma tarefa simples como o transporte de um volume. Apesar de identificar uma grande probabilidade de que o volume contenha algo ilícito, o sujeito não questiona sua natureza, aceita o valor e faz o transporte.

Diante disso, vê-se que, em ambos os casos o agente ao possuir prognóstico de que sua conduta possa gerar uma lesão a um bem jurídico, se coloca em situação de evitar o conhecimento para que afaste responsabilidade futura. 

Entretanto, não há um conceito definido acerca da alta probabilidade, o que pode gerar subjetividade do julgador e insegurança jurídica, sendo necessário sua previsão normativa. 

3. REFERÊNCIAS 

BRASIL. Vade mecum. legislação: método / [organização equipe método]. - 9. ed. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. 

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no brasil. -1. ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2018.  

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de direito, volume 1: parte geral – arts. 1° A 120 do CP. 33. Ed. Rev. e atual. - São Paulo: Atlas, 2018. 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 14. ed. rev., atual. e ampl. - [2.Reimpr.] - Rio de Janeiro: Forense, 2018.  

RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Mejor no saber: Sobre la doctrina de la ignorancia deliberada en Derecho Penal. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2015. Disponível em:http://www.cervantesvirtual.com/obra/mejor-no-saber-sobre-la-doctrina-de-la-ignorancia-deliberada-en-derecho-penal/. Acesso em: 17/10/2018. 

SYDOW, Spencer Toth. Teoria da Cegueira Deliberada –3ª tiragem – Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.  

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Sobre a autora
Daniela S. P. Oliveira

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio de São Paulo.

Informações sobre o texto

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