Efeitos jurídicos da filiação socioafetiva

23/10/2019 às 09:11

Resumo:


  • A filiação socioafetiva é um instituto jurídico que reconhece o vínculo entre pais e filhos baseado no afeto, independentemente do laço biológico, com efeitos jurídicos semelhantes aos da filiação biológica.

  • O reconhecimento da filiação socioafetiva é importante para a proteção dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, assegurando o direito ao convívio familiar e comunitário, e reflete a evolução do conceito de família na sociedade.

  • O reconhecimento da filiação socioafetiva pode ser feito extrajudicialmente em cartório, simplificando o processo e garantindo o acesso aos direitos decorrentes dessa filiação, como nome, sobrenome, herança e direito a alimentos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A filiação socioafetiva é um instituto que vem ganhando destaque na doutrina e jurisprudência. O presente estudo refere-se aos seus efeitos jurídicos, considerando a dificuldade que muitas famílias possuem em regulamentar tais relações pautadas no afeto.

RESUMO: A filiação socioafetiva é um instituto que vem ganhando destaque na doutrina e jurisprudência. O presente estudo refere-se aos seus efeitos jurídicos, considerando a dificuldade que muitas famílias possuem em regulamentar tais relações que são pautadas no afeto. A justificativa seria a necessidade de se reconhecer juridicamente o vínculo existente. A filiação socioafetiva é cabível em caso de pais que criam seus filhos com dedicação, compromisso e responsabilidades, não sendo seus genitores. A título de exemplo, cita-se um marido/companheiro que cria o filho da sua esposa/companheira como se fosse seu. Impende salientar que o Código Civil de 1916 era considerado conservador, principalmente em relação à família. Havia diferenciação entre filhos naturais, adotivos e fora do casamento. A filiação biológica se destacava em relação à socioafetiva. Já o Código vigente incorporou a socioafetividade, através do artigo 1593, e igualou os filhos. Importante elucidar que alguns princípios basilares do Direito de Família conectam-se com o tema e há, também, decisões dos Tribunais corroborando com o assunto. Derradeiramente, evidencia-se que os vínculos afetivos ultrapassam a biologia, cabendo ao Estado conceder direitos fundamentais às famílias, o que possibilitará uma sociedade abraçada por valores constitucionais e o avigoramento do Estado Democrático de Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Afeto. Criança. Família. Filiação. Princípios

ABSTRACT: Socio-affective affiliation is an institute that has gained prominence in doctrine and jurisprudence. The present study refers to its legal effects, considering the difficulty that many families have in regulating such relationships that are based on affection. The justification would be the need to legally recognize the existing link. The socio-affective affiliation is applicable in case of parents who raise their children with dedication, commitment and responsibilities, not being their parents. As an example, a husband / partner is mentioned who creates the son of his wife / companion as if it were his own. It should be noted that the Civil Code of 1916 was considered conservative, especially in relation to the family. There was differentiation between natural, adoptive and out-of-wedlock children. The biological affiliation stood out in relation to the socio-affective. The current Code incorporated socio-activity, through article 1593, and equalized the children. It is important to clarify that some basic principles of Family Law connect with the subject and there are, also, decisions of the Courts corroborating with the subject. Ultimately, it is evident that affective bonds go beyond biology, and it is up to the State to grant fundamental rights to families, which will enable a society embraced by constitutional values ​​and the invigoration of the Democratic State of Law.

KEYWORDS: Affection. Kid. Family. Membership. Principles

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Breve Histórico. 3 Família, Relações de Parentesco e Filiação. 3.1 Família. 3.2 Relações de Parentesco. 3.3 Parentalidade e Multiparentalidade Socioafetiva. 4 Princípios Norteadores do Direito de Família em Conexão com a Filiação Socioafetiva.4.1Princípio da Proteção da Dignidade da Pessoa Humana. 4.2Princípio da Solidariedade Familiar. 4.3Princípio da Igualdade ou Isonomia entre Filhos. 4.4 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente. 4.5 Princípio da Afetividade. 4.6 Princípio da Função Social da Família 5 Configuração do Vínculo Afetivo de Filiação. 6 Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como escopo verificar a possibilidade jurídica do reconhecimento de uma filiação socioafetiva, tema que vem sofrendo mudanças ao longo dos anos no Brasil, tendo o afeto e outros atributos como: o amor, a dedicação, o compromisso, o carinho, a responsabilidade e o zelo, passado a ser referência para o estabelecimento de vínculos parentais.

A Filiação Socioafetiva será estudada com a finalidade de perquirir se esta é uma maneira de materializar o direito fundamental do estado de filho, analisando seus fundamentos e características. Dessa forma, será apresentado um breve histórico, comparando o Código Civil de 1916 com o de 2002, apontando as evoluções em relação à afetividade, em concomitância com os preceitos da Constituição da República de 1988, considerando o cenário social.

Será realizada uma explanação apontando como surgiu o reconhecimento da filiação socioafetiva, a motivação, os efeitos jurídicos, a transformação no conceito das famílias brasileiras, os princípios norteadores do direito de família que possuem conexão com o tema em questão e as relações de parentesco.

Contextualizando, será elucidado sobre o entendimento da doutrina e jurisprudência, exemplificando casos que tiveram o pleito de reconhecimento jurídico deferido por alguns  Tribunais.

2 BREVE HISTÓRICO

Durante o século XX, o país foi regulado pelo Código Civil de 1916, que era considerado um modelo único e rígido, se mostrava conservador, principalmente no que se referia à família, não valorizava as relações sociais e apenas a família construída pelo casamento, era protegida pela lei. O referido diploma legal diferenciava a proteção de filhos naturais e adotivos, e a filiação biológica se destacava em relação à socioafetiva.

Com as mudanças na cultura e comportamento da sociedade e a evolução da ciência e tecnologia, o referido Código, passou a clamar por mudanças, para adequar ao novo cenário brasileiro. E como ele já não tutelava certas demandas, começaram a surgir novas leis específicas e também projetos de modificações do Novo Código, que passou por alterações, em 1983, e foi aprovado na Câmara dos deputados. Contudo o projeto foi aprovado apenas em 2001 pelo Senado e na Câmara.

O Novo Código necessitou absorver as grandes modificações e conquistas sociais em matéria de Direito Civil, presentes na Constituição Federal de 1988, uma vez que foi nela que a filiação obteve igualdade de direitos e a discriminação dos filhos foi erradicada.

Pertinente se faz mencionar que em 1979, João Batista Villela publicou um artigo sobre a “Desbiologização da Paternidade”, o qual também embasou entendimento do art. 1.593 do Código Civil de 2002 em vigor.

Villela (2007, s/p) entendia que:

A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade.

Assim, o pensamento do jurista também contribuiu para que houvesse mudança no entendimento da doutrina e jurisprudência, tendo em vista que os juízes encontravam dificuldades em analisar os casos concretos e julgar de acordo com as normas existentes.

Nesse sentido, o Código Civil vigente incorporou a socioafetividade nas relações familiares, por meio do artigo 1593, o qual passou a prever que o parentesco é natural ou civil, independente do vínculo sanguíneo ou outra origem.

            A Constituição Federal de 1988, que ficou conhecida como Constituição Cidadã, promoveu alterações no direito privado, sobretudo em relação às famílias que teve o seu conceito ampliado. Introduziu valores importantes, como a Dignidade da Pessoa Humana e a Isonomia. Implementou um Estado Democrático de Direito, igualou os filhos,  seja advindos do casamento, fora dele, incestuosos e adotivos.

            Ela também reconheceu direitos amplos a casais que convivem em união estável, melhorou a valorização dos direitos da personalidade, que, por sua vez, ganharam destaque maior que os patrimoniais[1].

O afeto passou a ser um atributo importante para construção de um seio familiar. A partir dessa realidade, foi aprofundado o estudo do Princípio Jurídico da Afetividade e sua importância, e o vínculo da afetividade passa a ser uma indicação para definir a guarda em benefício de uma terceira pessoa, como prevê o artigo 1.584, Inciso II, §5°, do Código Civil:

A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:                                                            II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.e o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.

Corroborando com o tema, Maria Berenice Dias (2010, p 68 e 69) aponta que:            “o novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos conjugais, sustentando-se no amor e no afeto. Na esteira de evolução, o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo o valor jurídico ao afeto”.

Então, filhos adotivos e biológicos passaram a ter os mesmos direitos garantidos legislativamente, o que ficou entendido como derivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fortalecendo-se através do Estatuto da Criança e do adolescente, o qual foi influenciado diretamente pela mudança legislativa, no que tange à socioafetividade, especialmente o artigo 27[2].

Não há no Brasil legislação específica sobre socioafetividade, entretanto, em 17 de novembro de 2017 foi publicado o Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina o reconhecimento do filho socioafetivo no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de sentença judicial, conforme determina o artigo 10:[3]

À luz desse dispositivo, passou a ser permitido o reconhecimento da filiação socioafetiva de qualquer idade perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais. Sendo voluntário e irrevogável, permitida a desconstituição apenas por via judicial, em se tratando de casos de vício de vontade, fraude ou simulação.

O referido provimento prevê ainda que apenas pode requerer a filiação socioafetiva, os maiores de dezoito anos, e que é vedado o pedido por irmãos. Os pretensos pais devem ser pelo menos dezesseis anos mais velhos que o filho a ser reconhecido.

Já o artigo 11, §4º diz que se o filho for maior de doze anos, é exigido o seu consentimento para o reconhecimento da filiação não sendo suficiente, portanto, apenas a vontade do pai ou da mãe. E o artigo 14, prevê que o reconhecimento da filiação apenas poderá ser realizado unilateralmente, sendo permitido constar no registro no máximo dois pais e/ou duas mães. Importante mencionar que essas regras também já valem para a adoção de menores.

Este provimento facilitou os procedimentos para reconhecimento da filiação socioafetiva, considerando que antes era necessário passar por processo no Poder Judiciário e dependia de sentença judicial favorável, e agora a tramitação pode ser realizada em cartório extrajudicial, o que economiza tempo, burocracia e recursos financeiros, facilitando o acesso dos autores, já que não necessitarão de serem assistidos por advogado.

Contudo, os requisitos citados acima deverão ser preenchidos.

3 FAMÍLIA, RELAÇÕES DE PARENTESCO E FILIAÇÃO

3.1 Família

Pode-se inferir que o Direito de Família é um conjunto de normas que regulam o casamento, a união estável, a filiação, as relações de parentesco, os bens de família, a adoção, o poder familiar, o direito parental, os alimentos, a tutela e a curatela. (TARTUCE, 2018)

 A família tem a formação em diversos aspectos que sofrem transformações de acordo com tempo, lugar, espaço, cultura, costumes etc. Tais mudanças podem ser relacionadas no que diz respeito ao tipo de família ou quanto à forma de casamento, por exemplo. Existem no Direito Brasileiro alguns tipos de família, como relacionados abaixo:

a) Família Matrimonial: É aquela originada pelo casamento civil, devem ser observados os requisitos do artigo 1514 do CC/02. Já na Constituição Federal está previsto no artigo 226, § 1º e 2º.(TARTUCE, 2018).

             b) Família informal: é aquela decorrente da união estável.(TARTUCE,2018).

c) Família Monoparental: É aquela constituída através do vínculo entre um dos genitores com seus filhos.  A previsão legal é no § 4º do artigo 226 da CR/88. (DIAS, 2015).

d) Família Homoafetiva: Formada por pessoas do mesmo sexo. (TARTUCE, 2018).

            e) Família Sociafetiva: Formada pelo vínculo afetivo que forma e justifica o vínculo entre os membros da família. (LOBO, 2009).    

A família constitui o núcleo da sociedade e nascem direitos inerentes a ela como, por exemplo: o reconhecimento jurídico e a proteção patrimonial, a concessão de alimentos, os efeitos sucessórios, a competência da Vara de Família, a condição de dependentes do parceiro perante o Regime de Previdência Social, etc.

3.2 Relações de Parentesco

Entende-se por relações de parentesco as relações jurídicas mantidas entre pessoas com um vínculo familiar, principalmente pela afetividade. É a relação existente não só entre as pessoas que descendem umas das outras, mas também entre cônjuge ou companheiro e os parentes do outro, entre adotante e adotado e entre pai/mãe institucionais e filho socioafetivo, conforme  estabelece o artigo1593, do Código Civil.

Segundo o artigo 1591 do CC, são parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes, ou seja, o filho, o pai, o avô etc.

            São parentes em linha colateral ou transversal até o quarto grau, as pessoas advindas de um só tronco, sem descendência uma da outra (art. 1592 do CC). Ou seja, os tios, sobrinhos, primos etc.

De acordo com Silvio de Salvo Venosa (2010, p.1448) “o parentesco é o vínculo que une duas ou mais pessoas, em decorrência de umas delas descender ou de ambas procederem de um genitor comum”.

            Em relação às espécies de parentesco, pode ser natural ou civil, resultante de consanguinidade ou outra origem (art. 1593 do CC).

Do entendimento de Maria Helena Diniz (2010, p.1122) é possível a identificação de três modalidades de parentesco, considerando a sua origem:

a) Parentesco consanguíneo ou natural: aquele existente entre pessoas que mantém entre si um  vínculo biológico ou de sangue.

b)Parentesco por afinidade vínculo entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro.  O CC inovou reconhecendo o parentesco de afinidade em união estável (art. 1595 do CC).O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro (art.1595, §1º).

c)Parentesco civil: aquele decorrente de outra origem,  que não seja por consanguinidade ou afinidade, como preceitua o art 1593 do CC.

Tradicionalmente este parentesco sempre foi relacionado com a adoção. Com a evolução da ciência e valorização das relações afetivas de cunho social é inevitável que sejam reconhecidas outras formas de parentesco civil, como as advindas de técnicas de reprodução assistida (inseminação artificial heteróloga – com genética de terceiro) e a parentalidade socioafetiva. (Enunciados n. 103 e256 do CJF/STJ, das Jornadas de Direito Civil.) 

            O parentesco socioafetivo ganhou destaque no Direito de Família, o que contribui para que os conceitos trazidos se destaquem e as relações socioafetivas se enquadrem no conceito de posse no estado de filho, sendo incluídas no conceito de família.

            Como exemplo pode-se citar uma relação em que uma pessoa se casa com outra que já possui um filho, e no dia a dia, o marido/companheiro ou esposa/companheira, acaba assumindo e exercendo papel de pai ou de mãe. Esta relação é chamada de posse no estado de filho, fazendo com que exista  relação de parentesco entre os dois.

Esse entendimento encontra fundamento legal no artigo 1593, do Código Civil que reconhece outras espécies de parentesco civil, e vem sendo aplicado pela jurisprudência, pois quando a Lei entende que o parentesco civil  pode resultar de outra origem, faz com que abra brecha para que essa origem possa se fundar na afinidade com os parentes do cônjuge, na adoção, na reprodução assistida, heteróloga (inseminações em que o sêmen será de um doador) e também na afetividade com a pessoa com a qual se estabelecer relação de pai e filho.

 Nessa esteira, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu:

Reconhecimento de filiação. Ação declaratória de nulidade. Inexistência de relação sanguínea entre as partes. Irrelevância diante do vínculo socioafetivo. – o reconhecimento da paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento pelo Direito inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. – O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência da filiação jurídica. – Recurso Reconhecido e provido. ( Resp 878.941/DF, Rel Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21.08.2007, DJ 17.09.2007, p. 267)

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            No caso em tela, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a paternidade socioafetiva, apontando que é mais importante a construção da relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, e que, faz-se necessário, nesse contexto, desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo.

Em relação à filiação, pode ser conceituada como uma relação jurídica decorrente do parentesco por consanguinidade ou outra origem. (TARTUCE, 2018).

Ela pode ser provada pela Certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil. Contudo, na falta do termo de nascimento, poderá provar-se por qualquer modo admissível em direito (art. 1605 do CC).

E como disposto no artigo 1596 do CC, os filhos são iguais, independente se provenientes da relação de casamento, por adoção ou outras formas. Este dispositivo resguarda o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, § 6º, da CF, o qual será estudado em momento oportuno.

As relações de parentesco resultam direitos e obrigações. Como por exemplo, no direito de família impõe o dever de alimentar e determina a regulamentação de guarda e visita. Ademais, a obrigação de alimentar é intransmissível, pois o ato de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do artigo 1694 do CC, respeitados os limites das forças da herança.

3.3 Parentalidade e Multiparentalidade Socioafetiva

             A Parentalidade socioafetiva pode ser considerada como um tipo de filiação que é pautada no afeto, caracteriza-se quando não há vínculo biológico nas pessoas e passam a ter relação de afeto, sendo possível a concomitância da filiação biológica e a construída pela afetividade. Reconhecendo assim, de acordo com a realidade de cada caso, a multiparentalidade. (DIAS, 2015)

            A Multiparentalidade é a possibilidade de uma pessoa poder ter dois pais ou duas mães, seja definido biologicamente ou pelo afeto. É uma filiação socioafetiva que deve ser considerada juridicamente, visto que gera efeitos jurídicos e é necessário que seja resguardada a proteção integral do filho. Ela é o reconhecimento do afeto e do amor construído entre as partes, como um viés de efetivar os princípios do melhor interesse da criança e da dignidade da pessoa humana. (DIAS, 2015)

            Entretanto, para haver a multiparentalidade é necessário o reconhecimento do vínculo de filiação com mais de um pai ou mais de uma mãe. Comprovado este fenômeno, juridicamente todos passarão a ser responsáveis com os encargos da família.

Nessa esteira, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, decidiu:

Apelação cível - Anulatória de testamento - Direitos Civil e Constitucional - Casal homoafetivo - Reconhecimento como entidade familiar - ADI 4.277 e ADPF 132 STF - Reprodução assistida - Morte do companheiro antes do nascimento - Reconhecimento de filiação em testamento - Legalidade e validade - Repercussão Geral reconhecida - Concomitância entre paternidades socioafetiva e biológica - STF: RE 898.060 - Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos - Novas formas de família - Multiparentalidade - Paternidade responsável - Artigo 226, § 7º, da Constituição da República - Incapacidade da testadora não comprovada - Perícia oficial conclusiva - Recurso não provido. 1. A legislação civil contempla, em diversos diplomas normativos, o reconhecimento de filiação em testamento, não cabendo impor limitação à hipótese única de filho havido fora do casamento e à existência de vínculo biológico, por manifesta ausência de vedação na ordem jurídica em vigor. 2. A compreensão jurídica contemporânea das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar. 3. A partir dos julgamentos paradigmas do STF em repercussão geral, todas as formas de união que resultem em entidade familiar merecem proteção constitucional, inclusive quanto à constituição de prole, ainda que resulte em múltiplos vínculos, sejam biológicos e, não só, mas também afetivos. 4. A incapacidade do testador deve ser demonstrada mediante provas robustas e idôneas, quanto a falta de discernimento para a prática do ato por livre vontade.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0625.13.003018-6/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo Rodrigues , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/12/2018, publicação da súmula em 19/12/2018)

No caso em tela, trata-se de recurso de apelação interposto em face da sentença, pela qual foi julgado improcedente o pedido inicial na ação de anulação de testamento. Foi negado recurso reconhecendo a concomitância da filiação biológica e socioafetiva.

4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA EM CONEXÃO COM A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

4.1 Princípio da Proteção da Dignidade da Pessoa Humana

Este princípio é fundamentado já no artigo primeiro da Constituição Federal, com características sentimentais e emocionais, “é consagrado como valor nuclear da ordem Constitucional. Não é possível um entendimento totalmente intelectual em face de outros princípios. Ele é o mais universal de todos, é um macroprincípio do qual se irradiam os demais”. (DIAS, 2011, p.62).

É uma cláusula geral cuja essência incide sobre uma amplitude de situações,               “é o princípio solar em nosso ordenamento, a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade”. (GAGLIANO, 2017, p.80.).

Assim, esse princípio assegura o direito do indivíduo viver plenamente, exercendo o seu papel de cidadão, abrangendo afeto, bem estar, respeito, saúde, desenvolvimento e patrimônio. Ele está preceituado no artigo 1º, Inciso III, da CR/88. [4]

Importante explicar que a dignidade como autonomia abrange, primeiramente, a capacidade de autodeterminação, o direito da pessoa de tomar decisões acerca de sua vida e desenvolver sua personalidade. Ou seja, ela faz escolhas morais e existenciais sem imposições alheias. Estas decisões podem ser sobre religião, vida afetiva, trabalho, ideologia etc.      

No momento em que a Constituição elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, ocorreu uma escolha pela pessoa, conectando todos os institutos à realização de sua personalidade. Isso ocasionou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, colocando a pessoa humana em destaque na proteção do direito.

A dignidade da pessoa humana tem total conexão com o Direito de Família. Ela recebe especial proteção da ordem constitucional, independente da sua origem. Assim todas as entidades familiares possuem igual dignidade, sendo indigno o tratamento diferenciado às tantas maneiras de filiação ou aos diversos tipos de família. (GAMA, 2008). E, inclusive, o CPC/2015, valoriza este princípio, sobretudo no seu artigo 8º. [5]

De acordo com Guilherme Calmon Nogueira da Gama ( 2008, p.69):

A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares- o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideias pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.

Como exemplo da aplicação desse princípio às famílias, cita-se o direito à busca pela felicidade, considerado um paradigma contemporâneo na decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou favorável a igualdade da paternidade socioafetiva e biológica, e a multiparentalidade com vínculo concomitante (STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno Rel. Min Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840).

Em suma, adotou-se o entendimento de que a paternidade socioafetiva, registrada ou não, não impossibilita o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante. Este avanço traz uma nova forma de pensar o Direito de Família.

4.2 Princípio da Solidariedade Familiar

Este princípio estabelece um dever da família, sociedade e do Estado, aplicando uma solidariedade entre os membros da relação família, a atitude de preocupar-se com o outro. Ele se origina dos vínculos afetivos, e dispõe de conteúdo ético, tendo o significado de fraternidade e reciprocidade.  (DIAS, 2015)

A Constituição Federal, através do art. 3º, I, reconhece a solidariedade social como objetivo fundamental, com o intuito de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Como a solidariedade deve fazer parte dos relacionamentos, esse princípio corrobora com as relações familiares.

A família é uma das bases oriundas da proteção social que se mantém atualmente. E no âmbito dos envolvimentos familiares a lei da solidariedade é aplicada, uma vez que quando se gera deveres recíprocos no seio familiar, suaviza o Estado do encargo de prover os direitos a que o cidadão tem direito.

A título de ilustração, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais julgou favorável a demanda abaixo:

DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DE ALIMENTOS - PENSÃO FIXADA EM PERCENTUAIS ESPECÍFICOS EM FAVOR DA COMPANHEIRA, DO FILHO MENOR IMPÚBERE E DOS FILHOS MAIORES - VERBA QUE NÃO ATENDE ÀS NECESSIDADES DA CRIANÇA E DOS DEMAIS FILHOS QUE, EMBORA MAIORES, AINDA ESTUDAM - RECURSO PROVIDO EM PARTE. 1) Como sabido, a obrigação alimentar decorrente do casamento e da união estável fundamenta-se no dever de mútua assistência, que existe durante a convivência e persiste mesmo depois de rompido o relacionamento. Já o dever dos pais de prestar alimentos aos filhos é contemporâneo ao exercício do poder familiar, de sorte que a obrigação de sustento só persiste enquanto presente a menoridade do alimentando. Todavia, mesmo após o fim do poder familiar pelo adimplemento da capacidade civil é possível a imposição do encargo alimentar ao genitor, o qual passa a ser devido por força da relação de parentesco, tendo em vista o princípio da solidariedade familiar. 2) Nos três casos aplica-se o art. 1694 do Código Civil de 2002, que estabelece que os parentes e companheiros podem pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição de vida, devendo o encargo alimentar ser fixado na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0382.09.106245-7/001, Relator(a): Des.(a) Mauro Soares de Freitas , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 02/12/2010, publicação da súmula em 12/01/2011)

No caso em tela o Tribunal de Justiça de Minas Ferais julgou favorável um pedido de prestar alimentos aos filhos em respeito ao princípio da solidariedade familiar.

Destarte, no entendimento de Maria Berenice Dias (2015, p.48):

Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois a sociedade e finalmente o Estado ( CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação.

O Código Civil consagra este princípio quando dispõe da obrigação de alimentar, nos termos do art. 1694, e a imposição dessa obrigação entre parentes, configura o princípio da solidariedade familiar, que se fundamenta no pagamento dos alimentos quando necessário.

4.3 Princípio da Igualdade ou Isonomia entre Filhos

              Este princípio está estabelecido no art.227, § 6º, da CR/88[6], e no art.1596[7]  do CC/02.  Esses dispositivos regulamentam a isonomia ou a igualdade em sentido amplo nas famílias. Ele foi motivo de transformação no direito de família, ao erradicar as discriminações que existiam nas relações familiares, eliminando preconceito e diferenciações entre os filhos havidos ou não fora do casamento. (TARTUCE, 2018)

 E a Constituição Federal, ao proteger a família, independente do casamento, criou um novo conceito de entidade familiar, albergando vínculos afetivos e outros elementos.

Evidencia-se, então, que está superada a antiga discriminação de filhos que antes constava no art. 332 do CC/1916. Assim, juridicamente, não há diferença entre filhos perante a lei. A consagração desse princípio no nível constitucional caracteriza um avanço no Direito Brasileiro.

Dessa forma, não há mais espaço, para a distinção entre filiação legítima e ilegítima, que havia no sistema anterior, a qual valorizava a estabilidade do casamento em detrimento do ser humano integrante da família.

Essa igualdade abrange também os filhos adotivos, os socioafetivos e os advindos de inseminação artificial heteróloga, utilizado com material genético. Isso repercute no campo patrimonial e pessoal, não podendo haver nenhuma distinção jurídica, sob as penas da lei. Refere-se, portanto, no contexto familiar, de uma importante especialidade da isonomia constitucional.

Corroborando com o tema, Flávio Tartuce (2018, p.17) entende que                          “não se pode mais utilizar as odiosas expressões filho adulterino ou filho incestuoso que são discriminatórias. Igualmente, não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões filho espúrio ou filho bastardo, comuns em passado não tão remoto(...)”.

Pode-se reconhecer a incidência do princípio da igualdade também na guarda compartilhada, quando pai e mãe, exercem simultaneamente os direitos e deveres inerentes ao filho. Nessa linha de pensamento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, decidiu:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICENÇA-MATERNIDADE DE SERVIDORA PÚBLICA ADOTANTE. REQUISITO PARA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. LEIS MUNICIPAIS Nº 3.396/08 E 3.549/10. PRINCIPIO DA INTEGRAÇÃO. DIREITO À IGUALDADE ENTRE FILHOS BIOLÓGICOS E ADOTIVOS. VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. É dever da família, da sociedade e do Estado a promoção do desenvolvimento da criança, em conformidade com o princípio da proteção integral, sendo vedada a discriminação entre filhos biológicos e adotivos. 2. O direito à licença-maternidade é garantia constitucional, que visa estimular o vínculo afetivo entre mãe e criança. 3. Tese da repercussão geral: "Os prazos da licença adotante não podem ser inferiores aos prazos da licença gestante, o mesmo valendo para as respectivas prorrogações. Em relação à licença adotante, não é possível fixar prazos diversos em função da idade da criança adotada". (RE 778.889/PE) 4. Desarrazoadas as normas municipais que estabelecem critério de diferenciação para concessão de licença-maternidade à servidora publica adotante.  (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv  1.0000.18.098805-7/001, Relator(a): Des.(a) Bitencourt Marcondes , 19ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/11/2018, publicação da súmula em 13/11/2018)

No caso em questão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu não poder haver discriminação em relação à licença-maternidade de mães de filhos biológicos e adotivos, em respeito ao princípio da igualdade ou isonomia entre os filhos.

4.4       Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente

Com fulcro no art. 227, caput, da CF/1988, e redação dada pela Emenda Constitucional 65, de 13/07/2010.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

De acordo com o que está regulamentado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990), considera-se criança a pessoa com idade até 12 anos incompletos e adolescente aquele que possui idade entre 12 e 18 anos. Em relação aos jovens, a Lei é a 12.825/2013. O ECA, por meio do artigo 3º, estabelece que a criança e adolescente gozem de todos os direitos fundamentais, sendo-lhes asseguradas oportunidades para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Complementando o que consta da Constituição, o ECA em seu art. 4º  prevê que :

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Civilmente há uma proteção integral que pode ser reconhecido pela Convenção Internacional de Haia, a qual cuida dos interesses das crianças. O CC/2002, por meio dos artigos 1583 e 1584, abraça tal princípio, quando estabelece a guarda durante o poder familiar. Tais dispositivos foram alterados pela Lei 13058.

Nessa esteira, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou:

Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA. Adoção. Intimação do Ministério Público para audiência. Art. 166 da Lei 8.069/1990. Fim social da lei. Interesse do menor preservado. Direito ao convívio familiar. Ausência do Prejuízo. Nulidade inexistente. Não se declara nulidade por falta de audiência do Ministério Público se – a teor do acórdão recorrido- o interesse do menor foi preservado e o fim social do ECA foi atingido. O art. 166 da Lei 8069/1990  deve ser interpretado à luz do art. 6º da mesma lei (STJ, REsp 847.597/SC, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, j. 06.03.2008, DJ 01.04.2008, p.1).

No caso em tela, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não cabe nulidade processual, nos casos em que o processo de adoção for realizado em conformidade com os ditames que protegem o menor.

4.5 Princípio da Afetividade

A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico. (LOBO, 2008)

Ela pode ser utilizada no Direito das Famílias como maneira de apresentar a ideia da afeição entre duas pessoas de modo a desenvolver uma nova sociedade, a família. Sendo assim, o afeto é um laço que envolve os integrantes de uma família, mas também possui um viés externo, humanizando cada relação familiar.

Nesse sentido, o Estado impõe a si obrigações para com os seus cidadãos. Por essa razão a Constituição possui um rol de direitos individuais e sociais, visando a garantia da dignidade de todos. Sendo assim, o compromisso de assegurar afeto. (BIRCHAL, 2004)

Pode-se considerar que o afeto está ligado diretamente ao direito fundamental à felicidade. Contudo o Estado deve atuar de forma a ajudar as pessoas a realizarem seus projetos, criando políticas públicas que contribuam para os desejos de felicidade das pessoas, reunindo elementos a respeito do que é importante para a comunidade e para o cidadão. (LEAL, 2017).

Nos dias atuais, o afeto é considerado pela doutrina e pela jurisprudência como principal fundamento das relações familiares. Embora não esteja expresso no texto constitucional, ele foi abraçado pela Constituição no âmbito de sua proteção. Como exemplo, quando se reconhece a união estável como família, significa que a afetividade ganhou reconhecimento no sistema jurídico (CARBONERA, 2000)

Nessa linha de pensamento, a Ministra Nancy Andrigh afirma que o afeto tem valor jurídico:

A quebra de Paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas do mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes. Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito. A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso (STJ, Resp 1026.981/ RJ, 3ª Turma, Rel Min. Nancy Andrighi, j.04.02.2010, Dje 23.02.2010).

            Outrossim, a afetividade é um princípio do direto de família brasileiro, que é implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e o afeto refere-se à interação entre as pessoas, e não necessariamente ao amor, que é considerado apenas uma de suas especificidades. (CALDERON, 2017)

Como exemplo, um marido que reconhece como seu o filho de sua mulher, ou vice e versa, estabelecendo uma ligação de afeto, não poderá, após a configuração da afetividade, romper este vínculo.

Dessa forma, é certo que a afetividade é um dos principais regramentos do Direito de Família, e que a filiação socioafetiva é uma tese que ganha força na doutrina e jurisprudência.

4.6       Princípio da Função Social da Família

Como a Constituição Federal estabelece que a família é a base da sociedade, com especial proteção do Estado, é importante ressaltar que as relações familiares devem ser entendidas dentro do seu contexto social, regional e cultural. Em uma perspectiva constitucional, a função social da família, quer dizer o respeito à sua característica eudemonista, e para Maria Berenice Dias “a família eudemonista busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros” (DIAS, 2015, p 48.)

Contextualizando o tema, a título de exemplo podem ser observadas situações, como: a importância da inserção de crianças e adolescentes nas famílias naturais ou substitutas, buscando a efetivação da função social da família.

Em razão dessa função social da família, considerada pela Constituição como a ‘base da sociedade’, fica a cargo do magistrado o poder de averiguar se os filhos  ficam na guarda do pai ou da mãe, atribuindo a guarda à pessoa compatível com a natureza da medida, preferencialmente considerando o grau de parentesco e  relação de afinidade, de acordo com o  disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990). (REALE, 2005)

No pensamento de Pablo Stolze Gagliano (2011, p.98). “a principal função da família e a sua característica de meio para a realização dos nossos anseios e pretensões. Não é mais a família um fim em sim mesmo, mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na relação com o outro”.

Assim, a principal função social da família é realizar os anseios e pretensões dos seus entes, pois a família é o meio social para a concretização da nossa felicidade na convivência com o outro ente.

 Nesse pensamento, a função social da família fundamenta o parentesco civil advindo da filiação socioafetiva. Inclusive para o entendimento de que há outras entidades familiares, considerando que, a sociedade e a família sofrem alterações e o Direito necessita acompanhar essas evoluções.

5  CONFIGURAÇÃO  DO  VÍNCULO  AFETIVO DE  FILIAÇÃO 

Como já mencionado neste trabalho, as famílias vêm apresentando modificações. Assim, para definir uma relação de filiação, não necessariamente precisa haver vínculo biológico. A filiação socioafetiva é alicerçada a partir de respeito mútuo rotineiramente, com demonstração de carinho, afeto, amor, dedicação, compromisso, zelo, atendimento às necessidades, e inclusive oferecimento de um lar harmonioso, assegurando como direito previsto na constituição o convívio familiar. Estes atributos certificam que são mães e filhos ou pais e filhos envolvidos na relação, embora não sejam do mesmo sangue.

Nessa perspectiva o Tribunal de Justiça dos Estados de São Paulo julgou procedente o pedido de maternidade socioafetiva, conforme ementa descrita abaixo:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e Considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna nãoconsanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.Recurso provido. (TJSP, AC64222620118260286, 1ª Câm. Dir. Privado, Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, j.14/08/2012).

No caso em comento, a criança perdeu a mãe biológica no parto e foi criada por outra mulher desde os dois anos de idade, como filho. Foi feito, então, o pedido de reconhecimento da maternidade socioafetiva, com fundamento no artigo 1593 do CC e no princípio da solidariedade, o qual foi julgado procedente.

E o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, também acolheu o tema:

PATERNIDADE E PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA.AUTORA QUE, COM O ÓBITO DA MÃE BIOLÓGICA, CONTANDO COM APENAS QUATRO ANOS DE IDADE, FICOU SOB A GUARDA DE CASAL QUE POR MAIS DE DUAS DÉCADAS DISPENSOU A ELA O MESMOTRATAMENTO CONCEDIDO AOS FILHOS GENÉTICOS, SEM QUAISQUER DISTINÇÕES. PROVA ELOQUENTE DEMONSTRANDO QUE A DEMANDANTE ERA  TRATADA COMO FILHA, TANTO QUE O NOME DOSPAIS AFETIVOS, CONTRA OS QUAIS É DIRECIONADA A AÇÃO, ENCONTRAM-SE TIMBRADOS NOS CONVITES DE DEBUTANTE, FORMATURA E CASAMENTO DA ACIONANTE. A GUARDA JUDICIALREGULARMENTE OUTORGADA NÃO É ÓBICE QUE IMPEÇA A DECLARAÇÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA,SOBRETUDO QUANDO, MUITO ALÉM DAS OBRIGAÇÕES DERIVADAS DA GUARDA, A RELAÇÃOHAVIDA ENTRE OS LITIGANTES EVIDENCIA INEGÁVEL POSSE DE ESTADO DE FILHO. AÇÃO QUE ADEQUADAMENTE CONTOU COM A CITAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO, JUSTO QUE A SUA CONDIÇÃO DE GENITOR GENÉTICO NÃO PODERIA SER AFRONTADA SEM A PARTICIPAÇÃO NA DEMANDA QUE REFLEXAMENTE IMPORTARÁ NA PERDA DAQUELA CONDIÇÃO OU NO ACRÉSCIMO DA PATERNIDADESOCIOAFETIVA NO ASSENTO DE NASCIMENTO.RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. O estabelecimento da igualdade entre os filhos adotivos e os biológicos, calcada justamente na afeição que orienta as noções mais comezinhas de dignidade humana, soterrou definitivamente a ideia da filiação genética como modelo único que ainda insistia em repulsar a paternidade ou maternidade originadas unicamente do sentimento de amor sincero nutrido por alguém que chama outrem de filho e ao mesmo tempo aceita ser chamado de pai ou de mãe. (TJSC, AC 2011.034517-3, 4ª Câm. Civil, Rel. Des. Subst.Jorge Luis Costa Beber, j. 18/10/2012).

Já neste caso a criança foi criada por um casal desde os quatro anos de idade, após o falecimento da mãe biológica. Ficou com este casal por mais de 20 anos e teve o mesmo tratamento dispensado aos filhos biológicos. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou procedente o pedido.

Nas palavras de Paulo Lobo (2011, p. 56.) “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue.” Percebe-se, assim, que a configuração do vínculo efetivo de filiação ocorre com a convivência rotineira familiar, construída ao longo dos anos, e não do vínculo biológico. É um tipo de relação que qualquer pessoa é capaz de visualizar que ali existe um pai e um filho e/ou uma mãe e um filho, pelo comportamento mútuo, não havendo dúvidas sobre o laço socioafetivo.

Cumpre salientar que a família modifica-se na medida em que se solidificam as relações sentimentais dos seus entes, acentuando as suas funções afetivas. Ela está voltada a realizar os interesses dos seus integrantes. A comunhão de afeto não é mais um modelo matrimonializado da família, motivo pelo qual a afetividade ganhou espaço entre os juristas, como forma de esclarecer as relações familiares contemporâneas. (LOBO, 2011)

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Após explanadas as transformações ocorridas do Código Civil de 1916 para o de  2002, que procurou se adequar ao novo contexto social, em concomitância com os preceitos da Constituição da República de 1988.  Estudados o conceito e tipos de família, bem como as relações de parentesco e filiação, os princípios, a parentalidade e multiparentalidade socioafetiva, e os efeitos jurídicos.

            E, ainda, demonstrado que a filiação socioafetiva supera a biológica, já que o vínculo através do afeto é uma determinante na relação, contribuindo para a definição de caráter e personalidade dos adotados, e havendo o reconhecimento é um direito dos pais e filhos terem a situação regulamentada.

            Conclui-se que a socioafetividade é considerada como um princípio basilar do Direito de Família, visto que, configurou-se uma construção doutrinária e jurisprudencial, que entendeu que há previsão legal no Direito Brasileiro.

            Importante elucidar que o direito de uma criança ter em sua certidão de nascimento os dados da família com a qual vive, cotidianamente, configura fato indispensável à formação e desenvolvimento da sua identidade, uma vez que não é o sangue que determinada o parentesco.

            Nesse sentido, o afeto pode ser considerado como aspecto intrínseco e inerente ao ser humano, e é também relevante como princípio implícito da dignidade da pessoa humana, pois quando se refere a amor e afeto, não se mensura ou quantifica esses sentimentos, principalmente em relações familiares.

            Derradeiramente, resta evidente que os vínculos afetivos vão além da biologia, considerando que esses sentimentos são gerados com a convivência cotidiana, pautada no amor, carinho, respeito e dedicação.  Então, é de suma importância a avaliação do princípio da afetividade no contexto inserido, sendo papel do Estado intervir nas relações familiares, concedendo direitos fundamentais aos envolvidos. A realização desses desejos para a família brasileira possibilitará uma sociedade abraçada por valores constitucionais, e assim, o avigoramento do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

ADOLESCENTE, Estatuto da Criança e do Adolescente, In Vade Mecum, 27ª ed. Editora Rideel, 2018

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil,1988. Brasília: Senado Federal. In: Vade Mecum. 27ª ed. Editora Rideel, 2018.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2002

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA. Manual para Elaboração e Apresentação dos Trabalhos Acadêmicos: padrão Newton Paiva. Elaborado pelo Núcleo de Bibliotecas. Disponívelem:https://www.newtonpaiva.br/system/file_centers/archives/000/000/175/original/MANUAL_BIBLIOTECA_NEWTON.pdf?1466508943. Acesso em 01/04/2019.

CIVIL, Código de Processo Civil, 2015. In Vade Mecum. 27ª ed. Editora Rideel, 2018

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Thonson Reuters Revista dos Tribunais, 10, 2015

DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 6 : Direito de Família / São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

LIMONGI FRANÇA, Rubens. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo. Saraiva, v22

TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família. 13ª ed. Forense, 2018.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito das Sucessões. 11ª ed. Forense, 2018

SOUZA, Carlos Magno Alves, CNJ Cria Regras para Reconhecimento Extrajudicial de Filiação Socioafetiva. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2017-dez-03/carlos-souza-cnj-cria-regras-reconhecer-filiacao-socioafetiva, Acesso em: 09 mai. 2019.


[1] CR/art. 227: È dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[2] Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 27 O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

[3] Provimento 63 do CNJ, art 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais. § 1º O reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade será irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação. § 2º Poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil. § 3º Não poderão reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes. § 4º O pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido. (Edição nº 191/2017 Brasília - DF, disponibilizado, 17 /11/ 2017).

[4] CF/88, artigo 1º, III,  o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana.

[5] CPC/15, artigo 8º: ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

[6] CR/88, art. 227, §6º:Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. E o CC/2002 prevê também uma redação semelhante, o que configura o princípio da igualdade entre os filhos. No contexto familiar, tais dispositivos regulamentam a isonomia constitucional, conforme o art. 5º, caput, da CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

[7] CC/02, art 1596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e gratificações,proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

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Sobre a autora
Elza Matriz

Advogada. Pós-Graduanda em Direito Tributário. Graduada em Sistemas de Informação.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Necessidade de se regulamentar a situação de pessoas que se encontram em posse de estado do filho, não sendo seu genitor ou genitora. Ou seja, são pessoas que dedicam amor, carinho, atenção, compromissos, responsabilidades a um indivíduo que não é seu filho biologicamente, mas trata como se fosse em todos os aspectos.

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