UM AMARGO REGRESSO

31/10/2019 às 15:53
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE O AI-5 E A APOLOGIA À DITADURA

UM AMARGO REGRESSO

Rogério Tadeu Romano

 

Observe-se o que foi dito no site do jornal O Globo, na data de 31 de outubro do corrente ano:

“O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro , afirmou que caso haja uma radicalização da esquerda a resposta pode ser via "um novo AI-5 ", que afronta a Constituição de 1988. A declaração foi dada em entrevista à jornalista Leda Nagle , publicada em um canal do Youtube na manhã desta quinta-feira.

— Vai chegar um momento em que a situação vai ser igual a do final dos anos 60 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam-se e sequestravam-se grandes autoridades, consules, embaixadores, execução de policiais, de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente via precisar ter uma resposta. E a resposta, ela pode ser via um novo AI-5, via uma legislação aprovada através de um plebiscito, como aconteceu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada — afirmou  Eduardo.

Ele descreveu a esquerda como um "inimigo interno" e disse esperar não chegar ao ponto de um novo AI-5.

- É uma guerra assimétrica, não é uma guerra onde você está vendo o seu oponente do seu lado e você tem que aniquilá-lo, como acontece nas guerras militares. É um inimigo interno de difícil identificação aqui dentro do país. Espero que não chegue a esse ponto, mas a gente tem que estar atento.”

Trata-se de uma verdadeira apologia à ditadura em afronta ao Estado Democrático de Direito.

Aliás, há uma afronta à lei de segurança nacional que deve ser objeto da devida apuração criminal.

Trata-se de crime doloso, de perigo.

A Lei 7.170/83, mais conhecida como Lei de Segurança Nacional, foi promulgada pelo regime militar em 1983, com a justificativa de definir crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Portanto, um texto legal criado num regime de exceção, com o objetivo maior de proteger a ditadura que se instalou no país. Porém, essa norma não foi revogada e ainda se encontra em pleno vigor. Analisando seu conteúdo à luz de um Estado democrático de Direito, constitui-se certamente um entulho autoritário que permanece até nossos dias, embora, ao que parece, vinha sendo um tanto esquecida.

É  certo que a lei de segurança nacional é plena de enunciados vazios, abertos, que podem levar à sua não efetividade.

A característica mais saliente e significativa da lei de segurança nacional é a do abandono da doutrina da segurança nacional.

O art. 1.º da lei esclarece: "Esta lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I - a integridade territorial e a soberania nacional; II - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III - a pessoa dos chefes dos Poderes da União." Criticando o projeto de que resultou o texto definitivo da lei, em parecer aprovado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, Heleno Fragoso sugeriu que esse art. 1.° tivesse a seguinte redação: "Esta lei prevê crimes que lesam ou expõem a perigo: I - a existência, a integridade, a unidade e a independência do Estado; II – a ordem política e social, o regime democrático e o Estado de Direito". Desta forma se teria melhor especificado a objetividade jurídica desses crimes, indicando, com maior precisão, o âmbito da segurança externa e, com mais propriedade, os bens que importa preservar, no âmbito da segurança interna.

O art. 2.° da lei estabelece que devem levar-se em conta, na aplicação da lei, a motivação e os objetivos do agente e a lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos anteriormente mencionados, sempre que o fato esteja também previsto em outras leis penais. Isso significa que nos crimes políticos próprios (em que a ação, por sua natureza, se dirige a atentar contra a segurança do Estado), o fim de agir (motivação política) é elementar ao dolo. Nos crimes políticos impróprios (crimes comuns cometidos com propósito político) a aplicação desta lei depende de indagação sobre os motivos (que devem ser políticos)e os objetivos (que devem ser subversivos).E depende também da existência de lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos que a lei tutela.

Para isso, volta-se ao passado:

“Na tarde de 22 de outubro, durante um churrasco realizado em Itapeva, no interior de São Paulo, Castello e Costa e Silva confraternizavam com a oficialidade que acabara de concluir manobras militares na região. O ministro, violando a programação, resolveu discursar para a tropa. (...) Costa e Silva desafiou-o diante de uma platéia que, como a do Automóvel Clube em março de 1964, gritava “Manda brasa”. Mandou-a. “O Exército tem chefe. Não precisa de lições do Supremo. [...] Dizem que o Presidente é politicamente fraco, mas isso não interessa, pois ele é militarmente forte”, atacou Costa e Silva, pedindo desculpas ao presidente pela ênfase. (GASPARI, 2002a, p.271)

A mídia se dividia.

A reação da imprensa foi dividida. O Correio da Manhã denunciou a gravidade da situação e a indisciplina do ministro da Guerra, que colocava o presidente em posição difícil. Acusou o governo de atentar contra o princípio da independência e harmonia dos poderes. O Jornal do Brasil divulgou a existência de um projeto de novo Ato Institucional, que permitiria novas cassações de mandatos, e relatou os incidentes relativos ao Supremo sem tomar partido. O jornal O Globo apoiou o governo, afirmando que a continuidade da revolução estava em jogo. Para atingir os seus fins, ela tinha que ser una, não podendo existir um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo ambivalente e um Judiciário neutro. (COSTA, 2006, p.166)

O presidente do STF, entretanto, mesmo partidário da UDN, tentava manter a moral do tribunal intacto, “(...) segundo a história oral do Tribunal, depois Moutinho da Costa reagiu a ameaças do ministro do Exército, Costa e Silva, ameaçando fechar a casa e mandar a chave da instituição ao Planalto”. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Em 25 de Outubro, antes de votar habeas corpus em favor de Juscelino Kubitschek, os ministros do STF votam moção de apoio à manutenção de Ribeiro da Costa na presidência do STF até o término de sua judicatura.

O Supremo preparava-se para considerar um pedido de habeas corpus em favor do ex-presidente Juscelino Kubitschek, alvo de inquérito policial militar. A 25 de outubro, em sessão plena, os ministros aprovaram, em emenda regimental, o prolongamento do mandato do ministro Ribeiro da Costa até o término de sua judicatura, medida obviamente de desagravo pelas críticas que ele vinha sofrendo por parte de militares e de alguns setores da imprensa. (COSTA, 2006, p.166-7).

O mandato dele terminava em 1966, e a emenda prorrogou por mais seis ou sete meses. Ribeiro da Costa ficou, com uma posição muito vigilante, atuante, brava. (SILVA, 1997, p. 382)

Nesse momento a configuração dos ministros era a mesma que havia presenciado o golpe de 1964. A partir de então começa o desmonte do antigo STF e a reformulação de uma nova composição da corte. O primeiro golpe foi o AI-2.

Dois dias depois, a 27 de outubro de 1965, o presidente Castelo Branco emitiu o Ato Institucional na 2, que veio atingir diretamente o Supremo Tribunal Federal, alterando a sua composição. O número de ministros foi aumentado de onze para dezesseis, tendo sido nomeados cinco ministros com militância partidária na UDN, mais adequados, portanto, à política do momento. (COSTA, 2006, p.167)

O documento estabelecia ainda o aumento de 11 para 16 do número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Esta reforma do STF fora imposta a Castelo pelos militares da linha dura irados com as sucessivas decisões da mais alta corte judiciária contra os procuradores do governo em graves casos de "subversão". O presidente do Tribunal, ministro Ribeiro da Costa, denunciou a manobra, mas inutilmente. (SKIDMORE, 1988, p. 102)

Foram nomeados 5 ministros aliados ao regime militar, com tendências políticas ligadas a UDN e que facilitariam a aprovação dos interesses do regime militar no STF. Entretanto não garantiriam ainda a plena maioria contra o antigo liberalismo judiciário.

Tabela 2 – Ministros nomeados para assumir as cadeiras criadas pelo AI 2 em 16/11/1965

1

Adalício Coelho Nogueira

2

José Eduardo do Prado Kelly

3

Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello

4

Aliomar de Andrade Baleeiro

5

Carlos Medeiros Silva

Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Além dos novos ministros o AI-2 trouxe diversas novas configurações ao governo.

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O Ato Institucional no 2, de outubro de 1965, aboliu a eleição direta para presidente da República, dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. O AI-2 aumentou muito os poderes do presidente, concedendo-lhe autoridade para dissolver o parlamento, intervir nos estados, decretar estado de sítio, demitir funcionários civis e militares. Reformou ainda o judiciário, aumentando o numero de juizes de tribunais superiores a fim de poder nomear partidários do governo. O direito de opinião foi restringido, e juizes militares passaram a julgar civis em causas relativas a segurança nacional. (CARVALHO, 2005, p.161)

Apesar dos protestos dos membros do STF (...) nada aconteceu quando o Ato Institucional nº 2 aumentou o número de ministros de onze para dezesseis. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Seguiram-se os trabalhos do STF, porém o espaço para decisões contrárias ao governo militar diminuiu. Os atos impetrados pelo governo militar com base no AI-2 não podiam ser apreciados pelo poder judiciário. “O controle jurisdicional desses atos se limitaria a formalidades extrínsecas, ficando vedada à apreciação dos fatos que os motivaram. (...) "excluída a apreciação judicial desses atos". O AI-2 institucionalizava o arbítrio sob a fachada de legalidade”. (COSTA, 2006, p.167)

Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI-2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.

 A lei da mordaça, um decreto-lei que instituía a censura prévia de originais de qualquer livro que se quisesse publicar, foi aprovada pelo Congresso no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A oposição entrou com um recurso no STF, dizendo que aquela norma era inconstitucional, por atentar contra a liberdade de expressão, mas o Supremo disse que não poderia se intrometer nos interesses da revolução.

Indignado com o posicionamento do Tribunal, o ministro Adaucto Cardoso, que fora nomeado pelo militares, levantou-se, retirou a toga e disse que nunca mais voltaria ao Supremo, solicitando sua aposentadoria nessa sessão de março de 1971, logo após o julgamento do recurso. Na opinião de Carlos Chagas, esse foi um ato libertário.

Em novembro de 1965, o Presidente da República submeteu ao Senado a indicação de Alcino Paulo Salazar para substituir Osvaldo Trigueiro no cargo de Procurador-Geral da República.

Com a linha dura no governo militar, a edição do AI 5, três ministros do STF foram obrigados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.”

Essas duas providências aqui trazidas são de grave repercussão sobre os direitos e garantias constitucionais, porque a Corte Suprema representa a guarda, a defesa da ordem constitucional e ainda preservação de direitos fundamentais, representando um sério perigo que a sociedade deve atentar na defesa do Estado Democrático de Direito.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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