As migrações forçadas e a responsabilidade e impacto social para a sociedade brasileira

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Há um crescimento exponencial no número de migrantes cruzando as fronteiras brasileiras. A tensão gerada com isso, também sofre, contudo, o mesmo crescimento.

1.INTRODUÇÃO

Todo homem, ao nascer, inicia uma fase de construção de sua personalidade. E aqui não falamos sobre personalidade jurídica, que se define como a capacidade de perceber deveres e agregar direitos, mas o conjunto de normas que regem seu convívio social e pessoal, passando a fomentar um círculo com algumas delimitações de fácil observação.

Num contexto amplo, essa formação de personalidade passa pelo conhecimento do meio em que está inserido. A sociedade que o cerca, as pessoas e coisas ao seu redor, comprometerão todo o desenvolvimento do ser humano, inserido em qualquer ambiente.

O fato é que há casos em que se faz necessária uma mudança de ambiente para um novo recomeço, alterando o seu status quo o que, em maior grau, é preponderante no impacto e percepção daquele ser humano e do novo universo que o cerca.

Nesse ínterim, vamos destacar pontos acerca das migrações que vêm atingindo o Brasil, observando conceitos e relatando funções sociais observadas em cada comportamento relatado. Sendo assim, forneceremos subsídios com o fito da busca de uma discussão mais abrangente acerca do tema aqui analisado.


2.DIFERENCIAÇÃO DE CONCEITOS

A priori, a Lei nº 9.474 de 1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados, define o termo refugiado da seguinte forma:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

(...)

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Os migrantes, por sua vez, optam pelo deslocamento da sociedade na qual está inserido, com o fim de modificar sua condição atual e, consequentemente, qualidade de vida. Em tal condição, não o fazem, necessariamente, devido às ameaças de morte ou perseguição, mas em busca de melhoria de condições laborativas, qualificações no que tange a educação, melhorias no atendimento médico ou outras justificativas cabíveis, sem risco da própria vida.

Podemos observar a diferença entre ambas as definições e destacar que, com relação aos migrantes, estes continuam perfazendo auxílio do seu governo originário, diferentemente dos refugiados, que perdem totalmente os vínculos com aquele povo.

Para Pereira (2019) os migrantes podem ser subdivididos em dois grupos distintos: os voluntários ou os forçados, sendo estes últimos, vítimas de instabilidade econômica, ambiental, apátridas, asilados políticos ou pessoas em situação de refúgio.


3.A CRISE NA VENEZUELA

A República Bolivariana da Venezuela surgiu com o colapso da Gran Colômbia, em 1930 e, ainda atualmente, figura como um dos detentores do comércio petrolífero, desde a descoberta de tal reserva, em meados do século XX. À época, o país era governado por militares e latifundiários e, por conta disso, o país passou por grave instabilidade política, levando a população a buscar a migração para o governo democrático, em 1959. Por essa mesma época, os governantes já haviam descoberto o potencial petrolífero do país e investiram maciçamente na oferta de diversos serviços à sociedade, levando qualidade de vida aos nacionais. No entanto, a economia do país girava unicamente em torno das reservas de petróleo, que compunha seu PIB em mais de 80%.

Em 1973, ocorreu no mundo a primeira crise do petróleo. A Venezuela lucrou bastante, visto a lei de demanda e da oferta, aumentando o valor do barril de petróleo em 400% do seu valor inicialmente operado. Porém, como o valor ficou absolutamente impraticável economicamente para algumas nações, essas optaram por investir em novas fontes de energia, a fim de fugir das altas do preço. A princípio, pareceu uma opção arriscada, visto que havia latente necessidade do combustível, mas, a longo prazo, as ações mostraram-se positivas. Nesse ínterim, os Estados Unidos foram uma das nações que não buscou apenas a oferta imediata, priorizaram os estudos com foco na obtenção de novas fontes de energia. E paralelamente, investiram em sua própria captação de petróleo. O mundo recuperou-se da crise e, posteriormente, em 1979 ocorreu outra crise, mas, dessa vez, a Venezuela já não dominava o mercado como outrora.

O problema é que, mesmo não sendo mais a detentora do capital concernente ao petróleo, a Venezuela continuou a oferta dos mesmos serviços em detrimento do seu Produto Interno Bruto - PIB. Dessa forma, aumentou os seus gastos em serviços públicos, mas não havia gerado nova forma de obtenção de receita suficientemente alta a ponto de arcar com os próprios gastos internos. No ano de 1989 o então presidente, Carlos Andrés Pérez firmou acordo com o Fundo Monetário Internacional - FMI para aprovação e obtenção de empréstimo de 4,5 bilhões de dólares. Esse acordo possuía algumas contrapartidas: redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento de preço de gêneros de primeira necessidade. Assim sendo, a gasolina aumentaria um pouco o valor, mas nada exorbitante. Porém, esse valor superou um reajuste de 100% do valor inicial. À época do empréstimo, esse mesmo presidente encontrava-se em campanha eleitoral, o que gerou insatisfação da população, visto que o pacote de medidas obrigatórias vinculadas ao empréstimo afetava diretamente a população.

Em 1998, valendo-se da exploração da pobreza, com um discurso populista durante todo o processo eleitoral, Hugo durante todo Rafael Chávez Frias sagrou-se presidente. Suas políticas pautavam-se na inclusão social, com o fito de redistribuir a renda, ora centralizada nas mãos de poucos. O fato é que, embora tenham entrado muitos dólares durante as crises do petróleo, os governantes do país, nunca se preocuparam em investir em seu autossustento, deixando o país dependente de importação mesmo de produtos de primeira necessidade e de higiene, tais como papel higiênico, sabonetes, dentre outros. Por essa razão, após a ascensão ao poder por Nicolas Maduro Moros, o país continuou em sua queda, agravada por decisões dos governantes que geravam, cada vez mais, insatisfação e instabilidade. O fato é que até hoje, a população encontra-se completamente dividida entre dois poderes: o de Nicolas Maduro e o de Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente interino do país.

Tal condição do país tem favorecido a inconstância econômica e também política, no momento em que ocorre o embargo econômico promovido por diversos países, os quais até então, eram considerados parceiros. Visto que o país é naturalmente consumidor de produtos importados, não possuindo uma economia embasada no desenvolvimento sustentável ou de subsistência, a inflação atinge números exorbitantes e produtos básicos figuram como de difícil aquisição. Findando com venezuelanos se vendo obrigados a buscar novas alternativas em busca de melhores condições de sustento ou, até mesmo, visando a conservação de suas vidas.

Embora seja uma nação relativamente nova, a sua história é deveras complexa, porém de fácil entendimento aos que ofertam atenção, e passível de nos levar à compreensão mais aprofundada acerca da atual conjuntura da Venezuela.


4.A COMPETÊNCIA DO BRASIL

Diante dessa perspectiva econômica que paira sobre a República Bolivariana da Venezuela, nos surge o questionamento acerca do vínculo que temos com outras nações, principalmente no que tange a problemas internos e tão particulares, tais como as eleições e decisões de seus governantes. Economicamente, possuímos vínculo direto por ocasião do Mercado Comum do Sul – MERCOSUL.

Precisamos atentar para a letra da lei.

Primeiro atentemos para o que narra a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º. Figura como um dos princípios fundamentais a Dignidade da Pessoa Humana, direito elementar a qualquer cidadão brasileiro:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

Observemos, ainda, o artigo 5º da Carta Magna, que expõe o seguinte texto:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (...)

Ao participar da Convenção Americana de Direitos Humanos, os países membros, nesse grupo incluída a República Federativa do Brasil, acordaram, em seu artigo 1º, que:

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

Sendo assim, o Brasil se obriga a aceitar o documento, segundo o qual, todos têm direito à integridade física, psíquica e moral, à proteção à honra e dignidade, esta outrora citada na CF-88. Salientemos o que abaixo segue:

Artigo 22 - Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.

2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.

6. O estrangeiro que se encontre legalmente no território de um Estado-parte na presente Convenção só poderá dele ser expulso em decorrência de decisão adotada em conformidade com a lei.

O artigo 22 é claro no que tange a alguns direitos específicos: todos têm direito a constituir residência e circulação em qualquer Estado, desde que se encontre legalmente no território. Quando se fala em legalmente, entendamos, aqui, que aqueles que adentram o país, solicitando de imediato o seu visto de permanência, não podem sair até que seja homologado o resultado de sua solicitação. Tal especificação, dentre outras fontes, encontra-se citada pela ACNUR, Agência da ONU para refugiados, a qual é atuante em diversas nações.

Há casos em que o requerimento é arquivado ou cancelado, ambas as situações continuam a figurar no rol de petições legais de refúgio.


5.O CHOQUE CULTURAL

Segundo dados disponibilizados pela Polícia Federal - os quais foram utilizados na elaboração do Relatório Refúgio em Números – 4ª Edição - observa-se a seguinte situação:

No intervalo compreendido entre os anos 2011 e 2018, o Brasil recebeu 206.737 solicitações de reconhecimento da condição de refugiados; sendo 33.866, no ano de 2017 e 80.057 no ano de 2018.

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A Venezuela figura com 85.438 pleitos. Destes, 61.681 (81%) são solicitações apresentadas apenas no estado de Roraima.

No ano de 2011, o Brasil recebeu apenas 4 pedidos de reconhecimento oriundos da Venezuela; no ano de 2017, recebeu 17.865 pedidos e em 2018 recebeu 61.681.

Embora grande parcela da sociedade tenha plena consciência da necessidade de ajuda humanitária para com necessitados, fato atribuído ao trabalho da ACNUR – Agência da ONU para refugiados – surge o temor referente à ausência de fornecimento dos serviços básicos narrados, em especial na Constituição Federal de 1988. Pode-se exemplificar através dos constantes pleitos acerca de fornecimento de água, energia elétrica, educação básica, segurança pública, saúde, dentre os demais.

Mesmo percebendo que não se pode ignorar o problema, a observação de cidadãos originários de outros países em situação de mendicância nos centros urbanos torna-se chocante e, de certa forma, assustadora, já que há um crescimento diário de famílias em tal condição.


6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, percebemos um número exacerbado de migrantes cruzando as fronteiras do nosso país em contraponto à precariedade do fornecimento de serviços básicos aos nacionais já estabelecidos no Brasil. Tal crescimento, exponencial, tende a gerar tensão no que tange à demanda dos serviços. Há relatos extraoficiais que o maior percentual de atendimento médico – hospitalar é aos venezuelanos, bem como há situações de epidemias de doenças ora controladas no Brasil, as quais apresentam grande número nos abrigos destinados aos venezuelanos, é o caso da varicela.

Dessa forma, a população torna-se carente e em constante expectativa acerca das decisões do Estado. Roraima apresenta números populacionais cujo aumento se dá de maneira descontrolada. Segundo censo populacional do IBGE consta um aumento populacional de 146.941 habitantes em apenas nove anos.

Faz-se necessária a implementação de políticas públicas eficazes no sentido de fornecimento dos serviços básicos aos presentes, especialmente nos estados de Roraima e Amazonas, para onde migram em maiores quantidades, através das fronteiras; e um acompanhamento social de orientação acerca das atividades legal e moralmente aceitas como labor.   

Também é importante que os demais estados federados sejam orientados a receber os refugiados, proporcionalmente ao PIB e não necessariamente à capacidade de recepção declarada, a fim de não sobrecarregar a população dos estados do norte do Brasil.

É urgente a atenção voltada à saúde dos refugiados, visto que diversos apresentam enfermidades outrora controladas no território brasileiro, o que pode vir a causar epidemias tanto nos centros urbanos quanto nos abrigos.

Precisamos, por fim, perceber que, para tais refugiados, sua condição não é confortável, nem fisicamente e tampouco psicologicamente, visto que se encontram distantes de suas origens, suas culturas, suas famílias, devido a imposições das circunstâncias, o que precisa nos tornar mais sensíveis às suas demandas.


7.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

  1. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 09 set. 2019.
  2. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (1969). Disponível em:http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em 09 de set de 2019.
  3. PEREIRA GL. Direitos Humanos & Migrações Forçadas: Introdução ao Direito Migratório e ao Direito dos refugiados no Brasil e no mundo, editora ediPUCRS, 1ª edição, 2019; 163 p.
  4. FARENA MNFC. Direitos Humanos dos Migrantes: Ordem Jurídica Internacional e Brasileira, editora Juruá, 2012; 202 p
  5. MILESI R. Refugiados e migrações forçadas: Uma reflexão aos 20 anos da Declaração de Cartagena. https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/estrangeiros/art_irmarosita.pdf. Acesso em 10 Set 2019
  6. https://www.acnur.org/portugues/2019/06/19/deslocamento-global-supera-70-milhoes/. Acesso em 10 Set 2019
  7. Tendencias Globales: Desplazamiento Forzado en 2018. https://www.acnur.org/5d09c37c4.pdf. Acesso em 10 Set 2019
  8. Tendencias Globales: Desplazamiento Forzado en 2016. https://static.poder360.com.br/2017/06/relatorio_acnur_espanhol_19.jun_.pdf
  9. https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf
  10. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rr/panorama. Acesso em 01 Nov 2019
  11. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9474.htm. Acesso em
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  13. CELI, R. https://www.stoodi.com.br/blog/2019/04/16/crise-do-petroleo-o-que-foi/ Crise do Petróleo: o que foi, fases e consequências. Acesso em 12 Set 2019
  14. RODY, GC. https://guiadoestudante.abril.com.br/blog/atualidades-vestibular/entenda-os-motivos-da-crise-na-venezuela/ 28 de jan 2019. Acesso em 12 Set 2019
  15. https://www.politize.com.br/crise-na-venezuela/ Acesso em 12 Set 2019
  16. CORAZZA, F e MESQUITA, L. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45909515. 30 de Abr 2019. Acesso em 12 Set 2019
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Sobre a autora
Jacira Pereira da Silva Nascimento

Pernambucana residente no Amazonas desde 2001; Servidora Pública do Estado do Amazonas desde 2005, Investigadora de Polícia Civil desde 2011, Especialista em Gestão Ambiental. Graduanda em Direito na ULBRA Manaus

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A publicação do artigo científico é com base na exigência curricular para a faculdade de Direito da Universidade Luterana de Manaus.

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