O direito à saúde pública no Brasil em face da adoção de políticas austeras de redução de gastos

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O direito à saúde é garantido a todos de forma gratuita e universal mediante a efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o SUS tem sido ameaçado por políticas públicas de saúde que ignoram sua essencialidade e julgam-no apenas como "gasto".

Introdução

O direito à saúde pública no Brasil adquiriu o caráter de direito fundamental na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) com a finalidade de universalizar o seu acesso a toda a população, de forma gratuita e integral, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em conformidade com seus princípios norteadores, o SUS vinha apresentando uma estrutura capaz de alcançar as necessidades mais básicas do cidadão por meio de programas preventivos e de grande impacto frente à população. Entretanto, tal sistema encontra-se ameaçado diante da adoção de políticas públicas austeras de contenção de gastos, marcadas, principalmente, pela ausência de investimentos, redução de profissionais e de serviços prestados.

Diante desse cenário, o acesso à saúde pública de qualidade tem se tornado um desafio cada dia maior. Isto posto, estuda-se neste trabalho, através de análise documental e pesquisa bibliográfica, a estrutura do SUS e alguns aspectos históricos da prestação do serviço de saúde pública no Brasil, bem como a prestação privada suplementar desse serviço com o escopo de estudar se o rumo em que a política pública de saúde vem tomando recentemente é consentânea com o disposto na CRFB/1988.

1. Breves apontamentos acerca da evolução da Saúde Pública no Brasil

A história da saúde pública no Brasil é marcada por evoluções e retrocessos ao longo do seu desenvolvimento. Com a promulgação da CRFB/1988, houve um marco histórico nessa evolução, visto que tal tema passou a ser tratado de forma específica, na Seção II, “da saúde”, bem como a regulamentação da organização e do funcionamento do SUS.

Inicialmente, a saúde no Brasil esteve fortemente ligada à caridade, através da prestação de serviços por médicos e instituições filantropas. A intervenção do Estado, por sua vez, se dava através de ações de saúde destinadas à redução de epidemias, à promoção de vacinação e de saneamento básico (CARVALHO, 2013).

Até meados de 1930, a assistência médica era tratada como um favor do Estado, não como dever, inexistindo qualquer instrumento que legalizasse a universalidade desse serviço. Com a industrialização em diversas cidades brasileiras, o aumento do trabalho assalariado e a consequente migração urbana, houve o crescimento das demandas relacionadas à saúde, razão pela qual o governo passou a dar uma maior atenção à saúde pública (CARVALHO, 2014).

Uma atuação mais efetiva do Estado na área da saúde se deu somente a partir da década de 1920, com o Decreto Legislativo n. º 4.682/1923, popularmente conhecido como Lei Eloy Chaves (BRASIL, 1923), cujo objetivo era aplacar a onda de revoltas populares. Tal diploma legal regulamentava a formação de Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), direcionadas a algumas organizações trabalhistas, como os ferroviários e os marinheiros. Ressalta-se que em 1930, as CAPs foram transformadas nos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) (OLIVEIRA, 2012).

Nos anos de 1950, houve notáveis avanços no campo da saúde pública, podendo-se citar a criação do Ministério da Saúde em 1953 e a reorganização dos serviços de controle das endemias rurais no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERU). Em contrapartida, como decorrência do crescente aumento da demanda para o sistema de saúde, tornou-se praticamente impossível ao Estado garantir todos os atendimentos, tendo ganhado espaço os serviços médicos ligados aos setores privados, os quais se intensificaram com o regime ditatorial a partir de 1964 (CARVALHO, 2014).

Em razão da expansão da industrialização, em 1960 foi criada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), a qual possibilitou a uniformização dos benefícios a todos os trabalhadores, independentemente do instituto ao qual estavam filiados. No mesmo sentido, em 1966, ocorreu a unificação dos IAPs com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), permitindo a incorporação de novas categorias profissionais ao sistema. Por sua vez, a parcela da população que não possuía vínculo previdenciário permanecia sem acesso à Previdência Social (OLIVEIRA, 2012).

Durante o regime militar houve uma queda na qualidade dos serviços públicos de saúde, um favorecimento do setor privado e a medicalização da saúde. Por tal motivo, as condições de vida dos brasileiros tornaram-se mais precárias e tal período foi marcado por reivindicações populares, cuja resposta estatal vinha somada a mais opressão (CARVALHO, 2014).

Na década de setenta, como resposta às pressões por reforma na política de saúde, houve um aumento na cobertura do sistema, sendo criado o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), que possibilitou a expansão da oferta de serviços médico-hospitalares. Ainda, visando disciplinar a oferta de serviços de saúde, foi criado o Plano de Pronta Ação em 1974, cujo objetivo era universalizar o atendimento médico, e a Lei do Sistema Nacional de Saúde de 1975, revogada pela Lei n. 8.080/1990 (OLIVEIRA, 2012).

A Lei n. 6.439 de 1977 instituiu o Sistema Nacional de Saúde de Previdência e foi criado o Instituto Nacional De Assistência Médica Da Previdência Social (INAMPS), cuja responsabilidade era prestar assistência médica aos trabalhadores que contribuíam para a previdência social, a trabalhadores urbanos e rurais com vínculo empregatício e a seus dependentes. Ressalta-se que os demais setores da população ainda continuavam sem acesso a esses serviços (CARVALHO, 2014).

Com a crise enfrentada pelo regime militar no final dos anos setenta e diante das reivindicações sociais, ganham espaço alguns projetos de redemocratização. Nessa linha, em 1981, criou-se o Conselho de Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), por meio do Decreto n. 86.329/81. O Conselho realizou um diagnóstico acerca da saúde pública brasileira e propôs algumas alternativas para a reestruturação do setor, dentre as quais destaca-se o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS) (OLIVEIRA, 2012).    

O CONASP implantou o Sistema de Atenção Médico-Hospitalar da Previdência (SAMHPS), cuja finalidade era disciplinar o financiamento e o controle dos serviços realizados pelo setor privado e criou as Ações Integradas de Saúde (AIS) com o intuito de racionalizar os serviços de saúde ofertados pelo setor público (CARVALHO, 2014).

Diante da permanência da grave crise de caráter político, social e econômico, com enormes repercussões sobre a saúde pública, surgem propostas de democratização da saúde, que envolviam diversos setores da sociedade civil, profissionais da saúde, representantes partidários, de organizações e instituições. Esses atores difundiram o Movimento da Reforma Sanitária, formalizaram o conceito de saúde que foi apresentado e ampliado na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986 (CARVALHO, 2014).

Esta conferência foi extremamente relevante diante do cenário vivenciado pelo Brasil, visto que sistematizou e difundiu um projeto de reforma sanitária que possibilitou intensa transformação institucional. Seu principal objetivo foi promover a universalização ao acesso à saúde de maneira igualitária para todas as classes e ampliar o conceito de saúde como um direito fundamental e de obrigação do Estado. Ainda, cumpre salientar que por meio de tal conferência ficaram definidos os princípios estruturantes daquilo que, posteriormente, se tornaria o Sistema Único de Saúde (SUS) (OLIVEIRA, 2012).    

Por iniciativa do INAMPS, através do Decreto n. 94.657/1987 foi criado o Programa de Desenvolvimento de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), em1987, que visava auxiliar o processo e consolidação de ações integradas de saúde e foi essencial para a construção do SUS (CARVALHO, 2014).

Conforme demonstrado, por um longo período da história brasileira, os serviços públicos de saúde eram disponibilizados apenas aos trabalhadores que contribuíam para a Previdência Social, cabendo ao restante da população se valer de serviços particulares ou filantrópicos. Entretanto, com a promulgação da CRFB/1988, o direito à saúde passou a ser considerado como direito fundamental, houve a criação do SUS e a garantia de acesso integral à toda a população, abrangendo desde serviços simples aos mais complexos.

2. Sistema Único de Saúde (SUS)

Para a efetivação das ações da saúde pública, o artigo 198, da CRFB/1988, instituiu um Sistema Único de Saúde com atendimento integral, regionalizado, descentralizado e hierarquizado, no âmbito das três esferas de governo, que prioriza a prevenção de doenças e garante a participação da comunidade. O SUS é o único sistema de saúde pública do mundo que atende mais de 190 milhões de pessoas, sendo que 80% delas dependem exclusivamente dele para qualquer atendimento de saúde (AMADO, 2015).

Um estudo realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) com 1.500 consumidores das capitais do país revela que 70% dos brasileiros não possuem plano de saúde particular – seja ele individual ou empresarial, percentual ainda maior entre as pessoas das classes baixas. O estudo é uma parceria do SPC Brasil e da CNDL com o Instituto Ibope e busca investigar o impacto dos gastos com saúde no orçamento do consumidor brasileiro, além de avaliar o nível de satisfação com o serviço prestado pelas operadoras (CNDL, 2018).

De acordo com o estudo, quando essas pessoas precisam de atendimento, 45% alegam utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e o restante (25%) procura atendimento particular para ter acesso aos serviços necessários (CNDL, 2018).

Entender a saúde como direito significa muito mais do que apenas prover recursos médicos para a população em geral. Trata-se de compreendê-la como uma forma de lazer, de saneamento, educação, entre outras necessidades, que, na maioria das vezes, não estão disponíveis no sistema de saúde. A CRFB/1988, por exemplo, não prevê o processo de construção desse serviço, o qual ocorreu, posteriormente, através de legislações complementares (AMADO, 2015).

O SUS é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Básica, até o transplante de órgãos, através do acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a criação do SUS, a atenção integral à saúde, passou a ser um direito de todos os indivíduos, desde a gestação e até o final da vida, com foco na qualidade de vida, visando a prevenção de doenças e a promoção da saúde (BRASIL, 2019b).

A Atenção Básica compreende um conjunto de serviços, estratégias e ações de promoção e preservação da saúde, que funciona como o principal acesso ao restante do SUS. Quando funciona bem, é capaz de resolver mais de 80% dos casos que recebe. Sua face visível é a rede de Unidades Básicas e a Estratégia Saúde da Família, que inclui em suas equipes os agentes comunitários de saúde (RADIS, 2017).

De acordo com o art. 7º, da Lei 8.080/90, as ações e serviços de saúde do SUS deverão observar alguns princípios, quais sejam:

a) Universalização: a saúde é um direito de todos, cabendo ao Estado assegurá-lo, através de ações e serviços a serem ofertados de maneira universal, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. (SANTOS, 2013).

b) Equidade: tal princípio visa reduzir as desigualdades, visto que embora o acesso aos serviços seja um direito de todos, cada pessoa tem necessidades individuais e distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior (SANTOS, 2013).

c) Integralidade: este princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção, o tratamento e a reabilitação. Juntamente, o princípio de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, visando uma atuação mais efetiva (SANTOS, 2013).

Além dos princípios supramencionados, o SUS também é regido pelos seguintes princípios organizativos:

a) Regionalização e Hierarquização: os serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos e com definição e conhecimento da população a ser atendida. A regionalização é um processo de articulação entre os serviços que já existem, visando o comando unificado dos mesmos. Já a hierarquização deve proceder à divisão de níveis de atenção e garantir formas de acesso a serviços que façam parte da complexidade requerida pelo caso, nos limites dos recursos disponíveis numa dada região (CHIORO; SCAFF, 1999).

b) Descentralização e Comando Único: Na seara da saúde, a descentralização envolve a prestação de serviços com maior qualidade através da redistribuição de poder e responsabilidade entre os três entes federativos, além de garantir maior controle e fiscalização pelos cidadãos. Ressalta-se que, devem ser fornecidas as condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para que os municípios possam exercer essa função (CHIORO; SCAFF, 1999).

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c) Participação Popular: o Estado de proporcionar a participação da sociedade no sistema, por meio da criação de Conselhos e realização de Conferências de Saúde, com o objetivo de formular estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde (CHIORO; SCAFF, 1999).

Todos os brasileiros podem usar o SUS, porque todos contribuem com impostos para que ele funcione. O SUS é integral, igualitário e universal, ou seja, não faz, e nem deve fazer qualquer distinção entre os usuários. Inclusive, estrangeiros que estiverem no Brasil e necessitarem de alguma assistência de saúde, podem utilizar de toda a rede do SUS gratuitamente (BRASIL, 2019b).

Impende ressaltar que a gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes federativos: a União, os Estados e os municípios. A rede que compõe o SUS é ampla e envolve tanto ações quanto os serviços de saúde. Engloba a atenção básica, média e de alta complexidades, os serviços de urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica (BRASIL, 2019b).

A gestão em âmbito federal da saúde é realizada pelo Ministério da Saúde, sendo que o governo federal é o principal financiador. Historicamente, o Ministério da Saúde aplica metade de todos os recursos gastos no país em saúde pública, enquanto estados e municípios, em geral, contribuem com a outra metade. Ainda, o Ministério da Saúde elabora normas, avalia e controla o funcionamento do SUS, além de formular políticas nacionais de saúde que deverão ser executadas por seus parceiros (estados, municípios, ONGs, fundações, empresas, etc.) (BRASIL, 2003).

Já os estados possuem secretarias específicas para a gestão de saúde. Os gestores estaduais devem aplicar recursos próprios, inclusive nos municípios, e aqueles repassados pela União e organizar o atendimento à saúde em seu território. Cabe aos estados coordenar e planejar o SUS em nível estadual, respeitando a normatização federal, além de formular suas próprias políticas de saúde (BRASIL, 2003).

Os municípios, por sua vez, são responsáveis pela execução das ações e serviços de saúde no âmbito do seu território. Os gestores municipais aplicam recursos próprios e aqueles repassados pela União e pelo estado. O município coordena e planeja o SUS em nível municipal, respeitando a normatização federal, além de formular suas próprias políticas de saúde. Destaca-se que é possível a realização de parcerias com outros municípios visando o atendimento pleno da população, para prestação de procedimentos de complexidade que estejam acima daqueles que pode oferecer (BRASIL, 2003).

3. Estrutura do SUS

O Sistema Único de Saúde possui, em sua composição, o Ministério da Saúde, representando a atuação da União, bem como os demais entes federativos, os quais convivem independentemente e de acordo com as atribuições determinadas pela CRFB/88. A Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, resultante da sanção presidencial da Emenda Constitucional 29 estabelece o percentual de investimento financeiro que cada um dos entes terá que realizar (BRASIL, 2003).

Inicialmente, expõe-se que ao Ministério da Saúde é conferido o poder de gerir, em âmbito nacional, o sistema de saúde. Diante disso, cabe a ele o monitoramento, a normatização e a apreciação de políticas, conjuntamente com o Conselho Nacional de Saúde. Além disso, tem elementar contribuição no pacto das diretrizes do Plano Nacional de Saúde, o qual orienta toda a gestão federal no setor de saúde (BRASIL, 2019a).

Do mesmo modo, em esfera estadual, tem-se as Secretarias Estaduais de Saúde (SES), que possuem papel ativo no desenvolvimento de políticas de saúde e, de maneira semelhante como ocorre com o Ministério da Saúde, participa da aprovação e implementação do plano estadual de saúde. Ressalta-se, também, o apoio prestado à saúde em âmbito municipal (BRASIL, 2003).

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS), igualmente, também executa as funções, dentro de seu território, de controle, organização e avaliação de políticas de saúde, bem como articula o plano municipal de saúde (BRASIL, 2019a).

Pontua-se que a atuação de cada ente está conexa com o Conselho de Saúde competente, o qual formula estratégias e controla a execução das políticas de saúde. A atuação deste abrange, inclusive, os aspectos econômicos e financeiros, no entanto, as suas decisões devem ser validadas chefe do poder legalmente correspondente (BRASIL, 2019a).

Além disso, compõem a estrutura do SUS a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e a Comissão Intergestores Bipartite (CIB). Ambas se tratam de foro de discussão e negociação dos gestores de a saúde sobre a atuação operacional do SUS. No entanto, distinguem-se quando aquela é composta pelos gestores federal, estadual e municipal, enquanto esta última é integrada pelos gestores estaduais e municipais (BRASIL, 2019a).

Explana-se, também, a atuação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) dentro do SUS. Esse conselho é uma entidade de direito privado que é constituída por Secretários da Saúde dos estados e do Distrito Federal. De forma semelhante, há, ainda, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), o qual é uma entidade representativa dos entes municipais na CIT e os Conselhos de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS), que representam os entes municipais no âmbito estadual (BRASIL, 2003).

Tratando agora do atendimento à população, faz-se necessário expor considerações acerca do Cartão Nacional de Saúde. Trata-se de um documento gratuito e, também, de uma ferramenta do Ministério da Saúde, em que se armazena dados sobre o histórico de atendimentos do usuário. Essas informações podem ser acessadas tanto pelo poder público quanto pelo usuário, por meio do Portal de Saúde do Cidadão (BRASIL, 2019a).

Ademais, pontua-se que o contato base que o usuário pode ter com o SUS é através da Unidade Básica de Saúde (UBS), de gestão e responsabilidade municipal.  Cada UBS tem competência de atender um bairro ou região já delimitada no mapeamento área de atuação. Quando for necessário um atendimento de maior complexidade, o indivíduo é recebido pela Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que presta atendimento de urgência e realiza alguns exames. Caso seja necessária a internação, procedimentos ainda mais complexos, cirurgias e exames mais elaborados, o paciente deverá ser direcionado a um hospital (BRASIL, 2019a).

Após a exposição dos referidos serviços, ressalta-se que as ações do SUS não se restringem a eles. O serviço de saúde ainda engloba o controle de qualidade da água potável, a Vigilância Sanitária, doação de sangue ou leite materno, campanhas de vacinação, transplantes, quimioterapia, regulamentação de venda de medicamentos genéricos, entre outros (BRASIL, 2019a). De modo ilustrativo, cita-se o programa conhecido como “Rede Cegonha”, que promove o direito à saúde materno-infantil, especialmente no apoio ao planejamento reprodutivo e a atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério (BRASIL, 2019a).

4. A prestação privada de serviços suplementares de assistência à saúde

A assistência à saúde é um direito de todos e um dever do Estado. No entanto, infelizmente o SUS não é suficientemente eficaz para atender toda a população. Em razão disso, o Estado permite à iniciativa privada a prestação de serviços médicos e hospitalares como forma de assistência complementar à saúde. Entende-se que o plano de saúde é um serviço oferecido por operadoras, empresas privadas, com intuito de prestar assistência médica, hospitalar e odontológica (REIS, 2005).

As operações vinculadas à assistência privada à saúde são reguladas pelo poder público, representado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a qual trata-se de agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde. Além disso, se sujeitam às normas da Lei 9.656 de 1998, bem como as disposições presentes no Código Civil de 2002 e do Código de Defesa do Consumidor de 1990 (SANTOS, 2016).

A Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, conceitua os planos privados de assistência à saúde como sendo:

Prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor (BRASIL, 1998).

As operadoras de planos de saúde, conforme a Lei 9.656 de 1998, podem ser constituídas por pessoas jurídicas de direito privado nacionais nas formas de sociedade civil ou comercial, cooperativa ou entidade de autogestão. Conforme Santos (2016), embora as pessoas físicas não possam operar Planos de Saúde, tanto elas quanto as jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior podem constituir ou participar do capital, ou do aumento do capital da operadora.

Para que funcionem, as operadoras de planos de saúde devem obedecer aos requisitos legais, devendo possuir registro nos Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, além de demonstrar a capacidade de atendimento em razão dos serviços a serem prestados e a viabilidade econômico-financeira dos planos privados de assistência à saúde oferecidos, respeitadas as peculiaridades operacionais de cada uma das respectivas operadoras (REIS, 2005).

Além disso, em decorrência da natureza de seus serviços, o encerramento voluntário das atividades das operadoras privadas também impõe o preenchimento  de  requisitos  legais como: a comprovação de transferência da carteira sem prejuízo para o consumidor, ou a inexistência de beneficiários sob sua responsabilidade; garantia da continuidade da prestação  dos  serviços  dos   beneficiários   internados   ou   em tratamento; comprovação da quitação de suas obrigações com os prestadores de serviços no âmbito da operação de planos privados de assistência à saúde; e informação prévia à ANS, aos beneficiários e aos prestadores de serviços contratados, credenciados ou referenciados, na forma e nos prazos a serem definidos pela ANS (SANTOS, 2016).

A lei estabelece o conteúdo mínimo da cobertura estabelecida, denominado de Plano de Referência. Esse estipula o padrão do conteúdo mínimo da cobertura estabelecida: cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar,  quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas previstas na legislação (SANTOS, 2016).

Por outro lado, segundo Santos (2016) não fazem parte do supramencionado Plano de Referência a prestação destes serviços médicos, ambulatoriais e hospitalares: Tratamento clínico ou cirúrgico experimental; Procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim inseminação artificial; Tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética; Fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados; Fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar; Fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico, bem como tratamentos ilícitos ou antiéticos, assim definidos sob o aspecto médico, ou não reconhecidos pelas autoridades competentes.

Nas ideias de Santos (2016), há ainda muitas regras que regulamentam a atuação das prestadoras desse serviço. Uma delas é a proibição da exclusão de cobertura nas hipóteses de doença ou lesão preexistente à celebração do contrato, tiver sido celebrado há mais de 24 meses. Além disso, o ônus da prova de que o consumidor ou beneficiário tinha conhecimento da existência daquela doença ou lesão é da operadora. Essa prova deve ser feita na forma da regulamentação da ANS e, enquanto não produzida, a assistência à saúde do consumidor ou beneficiário, titular ou dependente, não pode ser suspensa.

Tem-se, também, que as operadoras de planos privados de assistência à saúde não podem discriminar e impedir o consumidor de participar dos planos em razão da idade ou de sua condição de pessoa com deficiência. O contrato, ainda, deve prever expressamente a variação das contraprestações pecuniárias em razão da idade do consumidor e os percentuais de reajuste incidentes em cada uma das faixas etárias, conforme normas da ANS. Os consumidores com mais de 60 anos de idade não estarão sujeitos à variação da mensalidade do plano de saúde se ele ou seus sucessores forem participantes por mais de 10 anos (REIS, 2005).

Os contratos devam conter dispositivos que indiquem com clareza: as condições de admissão; o início da vigência; os períodos de carência para consultas, internações, procedimentos e exames; as faixas etárias e os percentuais de reajuste; as condições de perda da qualidade de beneficiário; os eventos cobertos e excluídos; o regime, ou tipo de contratação (individual ou familiar, coletivo empresarial, ou coletivo por adesão); os limites financeiros ou o percentual de coparticipação do consumidor ou beneficiário, contratualmente previstos nas despesas com assistência médica, hospitalar e odontológica; os bônus, os descontos ou os agravamentos da contraprestação pecuniária; a área geográfica de abrangência; os critérios de reajuste das contraprestações pecuniárias; e o número de registro na ANS (REIS, 2005).

Posteriormente, ao consumidor titular de plano individual ou familiar há de ser entregue, na inscrição, cópia do contrato, do regulamento ou das condições gerais dos produtos oferecidos, além de material explicativo que descreva, em linguagem simples e precisa, todas as suas características, direitos e obrigações (SANTOS, 2016).

Sobre a legalidade de cláusulas de contratos de planos de assistência à saúde, o STJ decidiu ser abusiva aquela que limita no tempo a internação hospitalar do segurado uma vez que exclusão de cobertura de determinado procedimento médico/hospitalar, quando essencial para garantir a vida do segurado, vulnera a finalidade básica do contrato (SANTOS, 2016).

Por fim, pontua-se que as operadoras de planos de saúde devem ressarcir o SUS pelos serviços por este prestados a seus consumidores e respectivos dependentes. O ressarcimento está limitado aos serviços que estejam previstos nos respectivos contratos firmados entre a operadora e o consumidor e deve ser feito com base em regra de valoração aprovada e divulgada pela ANS, mediante crédito ao Fundo Nacional de Saúde, e os valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras (REIS, 2005).

5. Redução de gastos e sucateamento do SUS

Conforme já mencionado, os princípios norteadores do SUS são a universalidade, a equidade e a integralidade, visando garantir a toda população o acesso universal e irrestrito ao sistema de saúde. No entanto, a concretização dos princípios e diretrizes do SUS só foi possível, principalmente, em razão do fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil através das Políticas Nacionais de Atenção Básica (PNAB).

A ideia de Atenção Básica no Brasil foi sendo construída ao longo das últimas cinco décadas, relacionando-se à garantia de acesso à atenção, promoção e prevenção em saúde; é uma espécie de porta de entrada do SUS, por meio da qual os usuários são encaminhados para atendimentos mais complexos (RADIS, 2017).

A Atenção Básica passou a se estruturar como política de Estado a partir de 1994 com a criação do Programa Saúde da Família (PSF), que permitiu a ampliação da cobertura em saúde, através de um movimento inicialmente voltado apenas para a parcela da população brasileira em situação social mais vulnerável. Em 1996, com a elaboração da Norma Operacional Básica do SUS (NOB/96), o PSF iniciou um processo de reorientação da APS e foi criado o piso da Atenção Básica (PAB), o qual estabeleceu incentivos financeiros aos muni­cípios que adotassem o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e o PSF (MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018).

A APS foi tendo grandes desdobramentos e se fortalecendo por meio do PSF, de maneira que, em 2006 foi publicada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), cujo objetivo era a consolidação de uma APS forte, apta a estender a cobertura, oferecer cuidados integrais e desenvolver a promoção da saúde. No tocante à amplitude do programa, de acordo com dados do Ministério da Saúde (MS) a ESF alcançava 58% da população, em outubro de 2017, sendo que essa cobertura chegou a atingir 100% em alguns municípios.

Em que pese a prevalência de alguns problemas, como a dificuldade do acesso, além de qualidade e continuidade dos serviços ofertados, é reconhecível que as políticas de APS possibilitaram numerosos avanços, dentre eles a redução de internações evitáveis e dos gastos hospitalares, favorecendo a promoção da saúde e do desenvolvimento da população brasileira na medida em que proporcionou maior interação com a comunidade e relações entre os entes federativos (MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018).

No entanto, em razão do longo período de crise econômica pela qual o Brasil tem passado, os governantes têm buscado diversas estratégias de redução de gastos, as quais, muitas vezes, exigem enormes sacrifícios da população. Tais estratégias incluem a restrição da oferta de bens e serviços públicos, com os cortes de despesas e o aumento da participação do setor privado, afetando de forma significativa as camadas mais vulneráveis da população.

Em 2017, com o impedimento de Dilma Rousseff e a condução do seu vice Michel Temer à Presidência, foram aprovadas medidas “racionalizantes”, cuja finalidade era reorganizar o equilíbrio fiscal. Dentre as alterações legislativas que viabilizam esse processo, destaca-se a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/2016, conhecida como a emenda do "Teto dos Gastos", que congela por 20 anos a destinação de recursos públicos e produz efeitos nas diversas políticas, especificamente no financiamento do SUS e a aprovação da PNAB, em agosto de 2017, a qual modifica a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) (RADIS, 2017).

No que se refere à aprovação da nova PNAB, dentre as principais modificações pode-se destacara relativização da cobertura, visto que há a indefinição do número de agentes comunitários de saúde (ACS), possibilitando a composição de equipes com apenas um agente. Conforme Morosini, Fonseca e Lima (2018): “Quando uma política, simultaneamente, torna indefinido o número de ACS por equipes e flexibiliza os parâmetros de cobertura, reforça-se o risco de serem recompostas barreiras ao acesso à saúde de parte da população” (p. 16).

Ainda, houve o descomprometimento com o princípio da integralidade através da segmentação do cuidado, visto que foi feita uma diferenciação entre os padrões essenciais de cuidado e os padrões ampliados. Os primeiros são prestados de forma mínima; os segundos, por sua vez, apesar de recomendados na PNAB, não são ofertados à população, sendo negligenciados (MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018).

Além disso, a PNAB de 2017 trouxe o reposicionamento da ESF e a retomada da Atenção Básica tradicional, haja vista que este método é mais atrativo para os governantes ante a possibilidade de se compor equipes com menos profissionais e com carga de horária flexibilizada, o que permite a redução de custos (MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018).

Por fim, com a elaboração da referida política houve a fragilização da coordenação nacional no pacto federativo da saúde, uma vez que no modelo tradicional de Atenção Básica não há repasse de recursos e fica a critério do Município decidir acerca da necessidade de composição de equipes de AB, com base nas características e necessidades locais.

Por consequência, nos próximos anos serão visíveis as principais respostas advindas dessa redução de gastos, quais sejam: a diminuição da expectativa de vida, o aumento na incidência de doenças infecciosas, agravamento de transtornos mentais e de suicídio, além do crescimento das desigualdades socioeconômicas (RADIS, 2017).

Nesse cenário, não há dúvidas de que, diante de medidas austeras de redução de gastos, as camadas mais pobres são as mais afetadas, uma vez que recorrem aos serviços públicos com mais frequência.

Considerações finais

É reconhecível que o direito à saúde foi uma importante conquista nacional, fruto de longa luta histórica, onde a população brasileira foi extremamente negligenciada e passou várias dificuldades no atendimento. Por tal motivo, apesar das muitas falhas, a criação do SUS e seu fortalecimento através das PNAB tem sido essencial para a promoção da saúde da população brasileira, para o desenvolvimento nacional e redução das desigualdades.

Entretanto, tal direito tem sido severamente ameaçado por governos que tratam a saúde pública como "gasto" e que tem adotado medidas austeras de contenção de gastos, dentre as quais, pode se destacar a aprovação da Política Nacional de Atenção Básica de 2017, que fere princípios estruturantes do SUS. Essas medidas afetam principalmente a população de baixa renda, que dependem do serviço público de saúde e, a longo prazo, tendem a aumentar a pobreza e a desigualdade social.

Face ao exposto, levando-se em consideração os valores basilares do Estado Democrático de Direito e o papel do Estado na promoção do direito à vida, em sua forma mais ampla, defende-se a máxima de que o direito à saúde devidamente resguardado na CRFB/1988 deve ser respeitado, mormente através de investimentos no SUS e não em seu sucateamento.

Referências

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Sobre os autores
Josielle Fernandes Silva

Acadêmica do curso de direito da Universidade Estadual de Montes Claros (MG) - UNIMONTES.

Lívia Moura Nascimento

Acadêmica do curso de direito da Universidade Estadual de Montes Claros (MG) - UNIMONTES.

Fernando Pereira Jorge

Graduado pela Universidade Estadual de Montes Claros, no ano de 2000. Realizou curso de Especialização em Direito Processual, no ano de 2003. É Professor do Ensino Superior em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros e Orientador no Serviço de Assistência Judiciária, desde o ano 2005 até a presente data. Atualmente (2018), também, é Professor das Disciplinas Prática Jurídica Trabalhista e Processo Administrativo. Trabalhou como Professor do Ensino Superior em Direito na Faculdade Vale do Gorutuba, FAVAG, do ano 2010 a 2015.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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