Violência contra a criança e o adolescente:qual o juízo competente?

Uma análise do art. 23 da Lei n° 13.431/2017 baseada na jurisprudência do TJDFT

06/12/2019 às 01:51

Resumo:


  • A Lei n° 13.431/2017 estabeleceu competência preferencial aos juizados de violência doméstica para julgar crimes contra crianças e adolescentes, gerando discussões sobre sua aplicação.

  • Jurisprudência do TJDFT apresenta entendimentos divergentes, com uma corrente defendendo que a competência para esses casos permanece com as varas criminais comuns, a menos que haja elementos de violência de gênero.

  • A proposta de interpretação sugere que a Lei n° 13.431/2017 criou uma competência concorrente entre juizados de violência doméstica e varas criminais comuns, devendo conflitos ser resolvidos com base nas regras de distribuição e prevenção do Código de Processo Penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Com o advento da Lei n° 13.431/2017, questiona-se a qual juízo compete o processamento dos delitos praticados mediante violência contra pessoa menor. Este artigo promove sucinta análise do tema, com base na jurisprudência do TJDFT, propondo-nos solução.

Apresentação

No contexto democrático, a dignidade da pessoa humana arvorou-se como baluarte do direito internacional e doméstico, engendrando uma mundividência compartilhada que corresponde ao limite positivo do que se quer para as nações.

Em matéria processual (devido processo legal formal), a observância ao cabedal de premissas humanitárias que verte a CF/88 (devido processo substancial) traz para esses domínios inviolável projeção dos preceitos franco-revolucionários liberdade, igualdade e solidariedade.

No que respeita à disciplina criminal, a infusão a tais premissas é ainda mais necessária, por se tratar da última linha de incisão do Estado nas liberdades públicas, notadamente porque cerceia ao indivíduo o seu direito de ir e de vir, e promove maior contração de sua dignidade.  

A partir da década de 50, período compreendido como fase de redescobrimento vitimal, as propostas garantistas, em princípio partidárias do imputado, lançaram vistas à situação das vítimas, de modo a sagrar também entre elas a dignidade humana.

No Brasil, conferiu-se particular atenção ao trato das crianças e adolescentes vítimas e testemunhas da violência e da criminalidade, o que veio esboçado no Estatuto da Criança do Adolescente e na Lei n° 13.431/2017, ambos diplomas de caráter vitimológico.

Todavia, restringir-nos-emos a abordar a dúvida interpretativa que decorre do teor do art. 23, caput e parágrafo único, da Lei n° 13.431/2017, a saber, qual Juízo é competente ao processamento  das causas que envolvam violência praticada em desfavor da vítima menor.

No primeiro capítulo, para fins de contextualização, apresentaremos as nuances da nova disciplina legal.

No segundo capítulo, acercaremos o entendimento do TJDFT a partir da análise de 6 (seis)  decisões de conflitos negativos de competência suscitados em torno da temática.

Na parte final, promoveremos sucinta apreciação crítica desse tópico, propondo-nos uma solução.  

 1. LEI N° 13.431/2017 : ASPECTOS GERAIS

A Lei n° 13.431/2017 ocupou-se, dentre outros aspectos, do tratamento processual conferido às crianças e aos adolescentes vítimas ou testemunhas da criminalidade e da violência, em especial por instituir a colheita especializada de seus depoimentos, seja na fase judicial ou inquisitiva.  O mote valorativo dessa norma, de indisfarçado teor vitimológico, é a preservação da dignidade do menor, enquanto pessoa em desenvolvimento. Note-se:

“Art. 2° - A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha [...] Art. 5° - A aplicação desta Lei, sem prejuízo dos princípios estabelecidos nas demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, terá como base, entre outros, os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente a [...] receber tratamento digno e abrangente”.

Preocupou-se, também, com os fenômenos de revitimização a que, ao enfrentar as burocracias processuais, submete-se a vítima menor. Consoante disposição do art. 4°, inciso IV, considerou-os uma forma de violência institucional.

 Por sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, quis a referida normativa propiciar às crianças e aos adolescentes um ambiente neutro, conduzido por equipes especializadas, para a colheita de suas declarações. Veja-se: “Para os efeitos desta lei, a criança e o adolescente serão ouvidos sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e depoimento especial”. (Art. 4°, §1°).

Assegurou-lhes, ainda, a expressão de seus desejos e opiniões ao longo do processo, bem como, caso queiram, o direito de permanecerem em silêncio no curso da oitiva especializada (Art. 5°, inciso VI).

A legislação novata previu como garantia fundamental à vítima menor o direito à assistência qualificada, jurídica e psicossocial, quando submetida ao processo; no mesmo sentido, “o resguarde contra comportamentos inadequados adotados pelos órgãos” nele atuantes. (Art. 5, inciso VII).

Outra previsão de destaque diz respeito à obrigação estatal de resguardar e proteger as crianças e adolescentes submetidas ao processo de qualquer espécie de sofrimento, “com direito a apoio, planejamento de sua participação, prioridade na tramitação, celeridade processual, idoneidade do atendimento e limitação das intervenções”. (Art. 5°, inciso VIII).

Nessa lousa, a título de exemplo, diante de eventuais situações de risco, permitiu-se à autoridade policial representar ao Ministério Público pela proposição de ação cautelar de antecipação de prova, quando a demora de sua produção projete prejuízos ao desenvolvimento do menor. (Art. 21, inciso VI).

Aos artigos 7° e 8°, a normativa cuidou de conceituar depoimento especial e escuta especializada. O Depoimento especial é colhido perante a autoridade policial ou judiciária, e deve ser realizado em local neutro, apropriado e acolhedor, de forma a garantir a privacidade da criança ou do adolescente.

Segundo previsão dos artigos 15 e 22, §1°, do Decreto n° 9.603/2018, o depoimento especial há que ser realizado, sempre que possível, uma única vez, em sede de produção antecipada de provas. Quis-se, assim, evitar a revitimização do menor, não lhe exigindo recontar e reviver o fenômeno traumático:

“Os profissionais envolvidos no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência primarão pela não revitimização da criança ou adolescente e darão preferência à abordagem de questionamentos mínimos e estritamente necessários ao atendimento [...] O depoimento especial deverá primar pela não revitimização e pelos limites etários e psicológicos de desenvolvimento da criança ou do adolescente”. 

No que nos diz respeito, a nova disciplina programou a criação de juizados ou varas especializadas para processar e julgar os crimes cometidos mediante violência contra crianças ou adolescentes (art. 23 da Lei n° 13.431/2017). Conforme preceitua o parágrafo único do artigo retromencionado, enquanto tal não ocorra, o julgamento e a execução das causas que decorram de violência contra o menor ficarão a cargo, preferencialmente, dos juizados de violência doméstica. Confira-se:

“Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins”.

Há dois pontos a ressalvar: 1) a atribuição tem forte teor vitimológico, pois indica o desejo do legislador de que as crianças e adolescentes vítimas de violência, quando submetidas aos trâmites processuais penais, insiram-se num contexto neutro, adequado, não agressivo, dirigido por profissionais especializados no trato vitimal. Os Juizados de Violência Doméstica, nesse sentido, possibilitam a organização de equipes multidisciplinares para o tratamento da vítima; 2) A previsão normativa entabulou o debate acerca da fixação de competência para o processamento dos feitos dessa natureza, que será objeto dos capítulos seguintes.

2. CONFLITOS DE COMPETÊNCIA : A DICÇÃO DO TJDFT

Neste capítulo, apresentaremos o entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a partir de breve análise de 6 (seis) de seus julgados, sob a égide do art. 23, caput e parágrafo único, da Lei n° 13.431/2017.

Sob a relatoria do Desembargador Cruz Macedo, considerou o colegiado que, em se tratando a vítima de pessoa menor, ainda que do sexo masculino, é competente para o processamento do feito o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, pois, em casos tais, sendo a criança ou o adolescente filho, a agressão viola também sua genitora:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PRIMEIRA VARA CRIMINAL DO GAMA X JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DO GAMA. SUPOSTA VIOLÊNCIA PRATICADA PELO PAI. ÂMBITO FAMILIAR. CRIANÇA DO SEXO MASCULINO. LEI N. 13.431/2017. SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA. CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS. PREFERÊNCIA DAS VARAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 1. É do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a competência para processar e julgar o feito, ainda que a criança, suposta vítima da violência, seja do sexo masculino, porque o suposto crime sexual foi praticado no âmbito familiar e a mãe também pode ser vítima de violência psicológica. 2. Buscou o Legislador, com a edição da Lei n. 13.431/2014, fortalecer o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, tratando-os de forma especial também quando são vítimas ou testemunhas de violência. Não quer o Legislador que as ações dessa natureza continuem sendo processadas nas Varas Criminais, como prevê a Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal, tanto que estabeleceu a criação de varas especializadas no tema. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Suscitado (Juízo do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Gama). (Acórdão 1105865, 07076489120188070000, Relator: CRUZ MACEDO, Câmara Criminal, data de julgamento: 25/6/2018, publicado no DJE: 17/7/2018. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

Sob a relatoria de Jesuino Rissato, o tribunal sufragou o entendimento de que a legislação novata, em seu art. 23, tem caráter meramente sugestivo, tal que, regra geral, prevalece a competência da vara criminal comum. No entender do colegiado, é imprescindível à fixação de competência, nesses domínios, averiguar se a violência ocorrera, de fato, no contexto doméstico ou intrafamiliar, consoante previsão do art. 5°, e incisos, da Lei Maria da Penha. Considerou-se, ainda, que a Lei n° 13.431/2017 não altera a organização judiciária do Distrito Federal:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VARA CRIMINAL VERSUS JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. LEI Nº 13.431/2017. CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM CAUSAS ENVOLVENDO CRIANÇA E ADOLESCENTE. PREFERÊNCIA PELA TRAMITAÇÃO NO JUÍZO ESPECIALIZADO. NORMA ABERTA. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO CONTEXTO DOMÉSTICO E FAMILIAR. HIPÓTESES DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM. 1. A novel Lei nº 13.431/2017 busca conferir mecanismos legais para maior proteção da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, sendo um deles a criação de varas especializadas na matéria. No entanto, a disposição legal do art. 23 é norma de caráter não cogente e aberta, tratando-se apenas de sinalização de preferência para que as causas envolvendo crianças e adolescentes tramitem nos juizados especializados, em lugar das varas criminais comuns, sem que tenha sido alterada ainda a Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal. 2. Há precedentes desta Corte de Justiça no sentido de que, na hipótese da prática de violência contra criança ou adolescente, mesmo diante da novel legislação (Lei nº 13.431/2017), não se pode prescindir da análise do contexto doméstico e familiar (art. 5º, da Lei nº 11.340/06), independentemente do gênero. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo suscitado, no caso a Primeira Vara Criminal do Gama/DF. (Acórdão 1138372, 07175559020188070000, Relator: JESUINO  RISSATO,  Câmara Criminal, data de julgamento: 19/11/2018, publicado no DJE: 26/11/2018. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

Decidiu-se no mesmo sentido sob a relatoria da desembargadora Maria Ivatônia:

CONFLITO DE JURISDIÇÃO. VARA CRIMINAL. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. ARTIGO 23 DA LEI FEDERAL 13.431/2017. CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM CAUSAS ENVOLVENDO CRIANÇA E ADOLESCENTE. PREFERÊNCIA PELA TRAMITAÇÃO NO JUÍZO ESPECIALIZADO. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO CONTEXTO DOMÉSTICO E FAMILIAR. ARTS. 1º E 5º DA LEI FEDERAL 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM. 1. A Lei 13.431/2017 busca conferir mecanismos legais para maior proteção da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, sendo um deles a criação de varas especializadas na matéria. No entanto, a disposição legal do art. 23 é norma de caráter não cogente e aberta, tratando-se somente de sinalização de preferência para que as causas envolvendo crianças e adolescentes tramitem nos juizados especializados, em lugar das varas criminais comuns, sem que tenha sido alterada ainda a Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal. 2. Na hipótese da prática de violência contra criança ou adolescente, mesmo diante da Lei 13.431/2017), não se pode prescindir da análise do contexto doméstico e familiar (arts. 1º e 5º da Lei 11.340/06), independentemente do gênero. Precedentes desta Câmara Criminal. 3. O caso dos autos não se enquadra em nenhuma das hipóteses do art. 5º da Lei Maria da Penha, pois os alegados crimes não teriam sido cometidos no âmbito da família (inciso II) ou em relação íntima de afeto (inciso III), tampouco as visitas esporádicas do menor à casa do acusado podem ser consideradas convívio permanente (inciso I). 4. Conflito conhecido e acolhido para declarar competente o Juízo suscitado, no caso a Primeira Vara Criminal do Gama/DF.  (Acórdão 1146256, 07218507320188070000, Relator: MARIA IVATÔNIA,  Câmara Criminal, data de julgamento: 28/1/2019, publicado no DJE: 4/2/2019. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

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Sob a relatoria de Waldir Leôncio Lopes Júnior, entendeu-se  que o legislador, ao se utilizar do advérbio “preferencialmente” (art. 23), exigiu para a fixação da competência a análise dos elementos previstos no art. 5°, e incisos, da Lei Maria da Penha, necessários à caracterização de violência de gênero, razão pela qual é inaplicável a disposição do art. 23, parágrafo único, da Lei n° 13.431/2017 quando se tratar a vítima de criança ou adolescente do sexo masculino:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER (SUSCITANTE) VERSUS VARA CRIMINAL (SUSCITADO). CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VIOLÊNCIA SEXUAL PERPETRADA PELO TIO E IRMÃO CONTRA CRIANÇA. LEI N. 13.431/2017. CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM CAUSAS ENVOLVENDO CRIANÇA E ADOLESCENTE. NORMA ABERTA. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO CONTEXTO DOMÉSTICO E FAMILIAR. HIPÓTESES DA LEI N. 11.340/06. VÍTIMA HOMEM. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA EM RAZÃO DO GÊNERO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM. 1. De acordo com o disposto no artigo 5º, caput, da Lei n. 11.340/06, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. 2. O art. 23 da Lei n. 13.431/2017, ao usar o vocábulo "preferencialmente", sinaliza que haja ao menos os requisitos de competência desses juízos especializados, o que não é o caso dos autos, considerando a ausência de motivação de gênero, bem como o fato de a vulnerabilidade do ofendido não ser decorrente de sua condição de homem. 3. Conflito negativo de jurisdição admitido para declarar competente o Suscitado. (Acórdão 1150652, 07007269720198070000, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR,  Câmara Criminal, data de julgamento: 12/2/2019, publicado no PJe: 13/2/2019. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

Decidiu-se no mesmo sentido sob a relatoria de Jair Soares:

Competência. Crime contra criança e adolescente do sexo masculino.   1 - Enquanto não criadas varas especializadas, de que trata a L. 13.431/17, compete às varas criminais processar e julgar as causas envolvendo crianças e adolescentes, as quais contam com apoio de equipe técnica especializada para atendimento a vítimas menores. 2 - A proteção conferida pela Lei Maria da Penha é quanto ao gênero feminino, em caso de violência contra a mulher em contexto de violência doméstica, intrafamiliar ou de intimidade. Não alcança crianças do sexo masculino. 3 - Conflito de competência conhecido para declarar competente o juízo suscitado: 2ª Vara Criminal de Taguatinga - DF. (Acórdão 1150630, 07008118320198070000, Relator: JAIR SOARES, Câmara Criminal, data de julgamento: 12/2/2019, publicado no PJe: 13/2/2019. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

Sob a relatoria de Carlos Pires Soares Neto, doutrarte, considerou-se que a predileção do legislador, ventilada pela nova disciplina, deslocou, expressamente, a competência das varas comuns aos juizados especializados em violência doméstica:

PENAL E PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. JUÍZOS DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DO GAMA/DF E PRIMEIRA VARA CRIMINAL DO GAMA/DF. COMPETÊNCIA. LEI N. 13.431/2017. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VIOLÊNCIA COMETIDA CONTRA CRIANÇA FORA DO ÂMBITO DOMÉSTICO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. 1. Considerando a edição da Lei n. 13.431/2017, que buscou fortalecer o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, concedendo-lhes tratamento especial quando forem vítimas ou testemunhas de violência, é competente o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para processar e julgar a prática de eventual estupro de vulnerável (CP, art. 217-A) cometido pelo vizinho contra criança que teria sido deixada sob seus cuidados. 2. A intenção da Lei foi retirar ações de tais natureza da competência das Varas Criminais, a despeito da Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal, tanto que determinou a criação de varas especializadas. 3. Recurso conhecido e provido para declarar competente o Juízo do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Gama/DF. (Acórdão 1146270, 07187891020188070000, Relator: CARLOS PIRES SOARES NETO, Câmara Criminal, data de julgamento: 28/1/2019, publicado no PJe: 8/3/2019. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

Do que se colheu, observamos haver fundada dúvida interpretativa acerca dos limites de aplicação do art. 23, parágrafo único, da Lei n° 13.431/2017. De forma objetiva, apresentaremos no capítulo seguinte uma proposta de solução.

3. UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO : COMPETÊNCIA CONCORRENTE

A norma regente, de fato, conferiu aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher competência para o julgamento das ações que envolvam a prática de crimes compreendidos nas circunstâncias delineadas pelo art. 5° da Lei n° 11.340/2006. Note-se: “Para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

Numa primeira análise, poder-se-ia imaginar estarmos diante de um conflito aparente de normas, considerando-se o que dispôs o art. 23 da Lei n° 13.431/2017, e seu parágrafo único, in verbis:

Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins.

Entendemos, contudo, não haver conflito, nem mesmo aparente, entre as regras supramencionadas e, caso existisse, resolver-se-ia nos moldes do art. 2°, §1° do Decreto-Lei n° 4657/1942, ipsis litteris:

A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.  Isso porque se cuida de dois diplomas de idêntica hierarquia, e de regras que versam sobre a mesma temática.

É dizer, se houvesse conflito entre as normas, prevaleceria a disciplina da legislação posterior, que atribuiu aos juizados de violência doméstica competência para o processamento dos crimes praticados mediante violência contra a vítima menor. Ainda que assim não fosse, a norma novata é especial quando confrontada com as disposições da Lei Maria da Penha, pois trata da situação específica da vítima de violência criança ou adolescente enquanto não lhes seja criada uma vara especializada.

Factualmente, a Lei n° 13.431/2017, estabeleceu que o julgamento e a execução das causas decorrentes de violência em desfavor de criança ou adolescente, independentemente da questão de gênero, pois nada ressalvou, deve ser atribuída, preferencialmente, aos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ora, o uso do termo “preferencialmente” não demonstra a deslocação da competência para aqueles juízos, por outro lado, também não permite aduzir serem incompetentes. Reputamos mais consentâneo afirmar que houve a atribuição de competência concorrente para o deslinde dos feitos desse jaez.

Interpretações em sentido diverso ofendem ao princípio hermenêutico segundo o qual não se presumem na lei palavras inúteis (verba cum effectu, sunt accipienda).

Em termos outros, dizer que a Lei permitiu a dado Juízo processar e julgar determinadas causas conota é dizer, também, que lhe atribuiu competência para fazê-lo, e, na hipótese vertente, o fez com prioridade.

De mais a mais, salientamos que, nos termos da própria Lei n° 11.340/2006 reservou-se ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher a aplicação das normas previstas no Código de Processo Penal, no Código de Processo Civil e, que se frise, na legislação específica relativa à criança e ao adolescente, no que não conflitarem com o estabelecido na referida normativa. 

Diante do exposto, advogamos cuidar-se da atribuição de competência concorrente entre as varas criminais comuns e os juizados de violência doméstica, de modo que, existindo conflito de jurisdição, hão que ser manejadas as regras grafadas nos artigos 75 (distribuição) e 83 (prevenção) do Código de Processo Penal.  

CONCLUSÕES

O presente trabalho acercou a dúvida interpretativa que exsurge com a vigência da Lei n° 13.431/2017 quanto à fixação de competência ao processamento dos delitos praticados mediante violência contra criança ou adolescente. 

No primeiro capítulo, apresentamos as nuances da nova disciplina legal, bem como sua orientação principiológica.

No segundo capítulo, expusemos a jurisprudência do TJDFT concernente ao tema. Verificamos haver, em nível raso, duas posições. A majoritária compreende que: a) o art. 23 da Lei n° 13.431/2017 não possui caráter cogente; b) para a fixação da competência, necessário aferir a presença dos elementos caracterizadores da violência de gênero, conforme previsão do art. 5°, e incisos, da Lei Maria da Penha. A segunda corrente, por outro lado, compreende que a aplicação do novato diploma independe da aferição do sexo da vítima, ou do ambiente em que operado o delito, bastando que se trate o vitimado de pessoa menor, pois a intenção do legislador fora retirar da competência das varas criminais comuns o processamento dos delitos desse jaez.

No capítulo final, discutimos uma proposta de dissolução da dúvida. Arrematamos não se tratar do deslocamento da competência para o processamento dos crimes cometidos contra criança ou adolescente, mas da atribuição de competência concorrente entre o juízo especializado e as varas criminais comuns, de forma que, existindo conflito de jurisdição, haverá de se resolver nos termos dos artigos 75 (distribuição) e/ou 83 (prevenção) do Código de Processo Penal.

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