Imunidade material dos vereadores. limites, alcance e implicações

11/12/2019 às 17:37
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Trata-se de uma singela contribuição ao estudo do Direito Municipal, demonstrando, em breves linhas, os limites e o alcance da imunidade material dos Vereadores, bem como as implicações em caso de não incidência desta prerrogativa

1 – introdução

                       

                        A Constituição Federal de 1.988, em seu artigo 29, inciso VIII, prevê, expressamente, a inviolabilidade dos Vereadores “por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”.

                        Esta prerrogativa demonstra à condição de agente político concedida pelo constituinte ao Vereador, haja vista que esta imunidade antes se restringia apenas aos congressistas.

                        Com a clareza que lhe é peculiar, Petrônio Braz assevera que a imunidade material por ser “um direito de ordem política, choca-se com o direito do cidadão, de ordem social [...] mas é indispensável ao exercício do mandato eletivo”.[1]

                        Das sempre oportunas lições do mestre De Plácido e Silva extraímos que imunidade, de um modo geral, pode ser considerada como prerrogativa concedida, legalmente, aos delegados do povo, a fim de que possam exercer livremente seu mandato.[2]

                        Portanto, grosso modo, a imunidade material é medida que visa proporcionar aos Vereadores plena liberdade nas diversas formas de manifestação ligadas ao exercício de seu mandato parlamentar.

                        Esta prerrogativa ou, melhor dizendo, direito de ordem política, não pertence à pessoa física do edil, mas sim ao cargo que este exerce no interesse da comunidade[3], adquirindo, inclusive, status de indisponibilidade.[4]

2 – Natureza Jurídica

                        A doutrina classifica e diferencia de diversas formas a natureza jurídica da imunidade material.

                        Alguns apontam tratar-se de causa excludente de crime. Outros tratam aludido tema como causa excludente de punibilidade. Há, ainda, quem dispense ao assunto a nomenclatura de causa funcional de irresponsabilidade.

                        Entretanto, a despeito destas diferenciações, a natureza deste instituto deve ser observada como àquela que trata da imunidade tributária, ou seja, mutatis mutandis deve ser interpretada como situação onde o fato ocorrido deixa de produzir os efeitos que normalmente produziria em razão de especial garantia de caráter constitucional.  

                        Em suma, como pondera o Ministro Celso de Mello, o importante para a natureza jurídica de tal instituto é manter-se “em consonância com a exigência de preservação da independência do congressista no exercício do mandato parlamentar”.[5]   

3 – Limites da imunidade material

                       

                        De um modo geral, podemos dizer que a imunidade material dos Vereadores encontra uma limitação funcional e outra territorial.

                        Por limitação funcional entende-se que esta imunidade está restrita ao exercício do mandato parlamentar.

Nesta esteira de raciocínio, José Nilo de Castro, numa interpretação ampla, aponta que “não somente a questão pertinente ao exercício do mandato stricto sensu, mas todas as questões (lato sensu) levadas ao plenário da Câmara Municipal [...] estão acobertadas pelo instituto, protegendo o Vereador, por que se protege a corporação”.[6]

Ilustrando o acima asseverado, convém mencionar brilhante abordagem do Subprocurador-Geral da República, José Bonifácio Borges de Andrada, expondo que “tudo o que é dito na Tribuna o é no exercício do mandato, pelo simples fato de que só o parlamentar, no exercício do mandato, pode ocupá-la. Não há hipótese de o parlamentar estar fora do exercício do mandato, na tribuna, justamente porque aquele é ato privativo de parlamentar”.[7]  

                        Ainda, nesse sentido, o mestre Alexandre de Moraes expõe que a inviolabilidade alcança tanto aquilo proferido no Parlamento quanto nas Comissões, inclusive quando se trata de depoimento destinado às Investigações nas Comissões de Inquérito.[8] 

                        Arrematando, Hely Lopes Meirelles ensina que a imunidade material abrange “todas as manifestações que tenham relação com o exercício do mandato, ainda que produzidas fora do recinto da casa legislativa”. Ou seja, presente “o necessário nexo entre o exercício do mandato e a manifestação do vereador, há de se preponderar à inviolabilidade constitucionalmente assegurada”.[9]         

                        Portanto, em linhas gerais, entende-se que esta limitação funcional pauta-se pela existência de um nexo entre a manifestação exarada pelo Vereador e o exercício de seu munus público, independente desta produzir-se dentro ou fora do recinto da Casa Legislativa, protegendo, acima de tudo, a instituição.  

                        A limitação territorial prevista pelo constituinte, por sua vez, prevê que a imunidade material dos Vereadores está adstrita à circunscrição do município, ou seja, esta imunidade abarca toda a extensão do Município, desde que, evidentemente, guarde nexo com o exercício do mandato.

                        Entretanto, vozes na doutrina, numa interpretação extremamente lógica e condizente com a garantia constitucional, expõem que, mesmo fora do Município, mas no exercício do mandato, como representante do Legislativo Municipal, o Vereador deve gozar dessa prerrogativa em suas manifestações.[10] A contrario sensu, ofensas que não tenham nenhuma relação com o exercício do mandato, não gozam da imunidade. Logo, não se aplica a imunidade material (STF. Plenário. Inq 3215, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 04/04/2013).

                       

                         

4 – Alcance da imunidade material

                        Dois assuntos merecem destaque no que diz respeito ao alcance da imunidade material.

O primeiro versa sobre o âmbito da proteção constitucional, ou seja, pretende analisar se a imunidade se restringe apenas ao disposto na Magna Carta.

 O segundo, por sua vez, dispõe sobre a extensão da proteção quanto a eventuais responsabilidades.

                        No que tange ao âmbito da proteção constitucional, notamos que esta se refere, expressamente, apenas às opiniões, palavras e votos.

                        Desta forma, é possível estabelecer que a inviolabilidade abrange também os “discursos, comícios, conversas ou discussões ocorridas em qualquer parte do território municipal”.[11]  

                        É ainda cabível estender o âmbito desta inviolabilidade para os pareceres e ofícios expedidos pelo Vereador, bem como para os gestos utilizados como forma de manifestação, ainda que considerados obscenos[12]. A imunidade se estende também à divulgação pela imprensa de fato coberto pela imunidade, não importando a quem coube a iniciativa pela publicação.[13]    

                        Quando o assunto é responsabilização podemos dizer que na seara criminal a imunidade ressoa pacifica, merecendo destaque às lições de Nelson Hungria prevendo que “jamais se poderá identificar, por parte do parlamentar, qualquer dos chamados crimes de opinião ou crimes de palavra, como os crimes contra a honra, incitamento a crime, apologia de criminoso, vilipêndio oral a culto religioso etc”.[14]

                        Por outro lado, na esfera civil inexiste uma unicidade de posicionamentos. Dê um lado estão àqueles que entendem que a imunidade parlamentar não afasta o direito do cidadão comum acioná-lo civilmente.[15]De outro estão os que postulam pela extensão da proteção ao âmbito civil.[16]

                        Rui Stoco, em sua clássica obra sobre responsabilidade civil, numa assertiva lógica prevê que “se o crime ou conduta do agente tipificada na lei penal como ato criminoso é um plus com relação ao ato ilícito de natureza civil, tanto que a condenação com trânsito em julgado na esfera criminal constitui o título executivo que permite que a vítima ingresse com a execução no cível para obtenção de reparação, ressuma claro que a imunidade no crime retira o dever de indenizar no cível”.[17]         

                         Complementando este pensamento, Raul Machado Horta leciona no sentido de que esta inviolabilidade do Vereador obsta a propositura de ação civil inclusive após o término do próprio mandato.[18]     

Assim, na verdade, observamos que a inviolabilidade material dos Vereadores não se restringe à esfera criminal, visando, acima de tudo, garantir independência ao Poder Legislativo em face dos outros Poderes do Estado.

5 – Implicações em caso de não incidência

Não há dúvida de que em inúmeras situações são cometidos abusos no uso desta prerrogativa constitucional.

A imunidade material tem como premissa lógica proteger a liberdade de atuação do Vereador, não podendo, nunca, se transformar em um simples privilégio ou escudo para ofensas à honra alheia.

De um lado, há quem defenda que os eventuais excessos cometidos pelo parlamentar devem ser submetidos à Casa Legislativa nos termos de suas disposições regimentais.[19]

Outros, como o mestre Alexandre de Moraes, ao dispor sobre a imunidade material, preveem a não incidência, em absoluto, de “nenhuma sanção disciplinar, ficando a atividade do parlamentar, inclusive, resguardada da responsabilidade política”.[20]

Mas, comungando das lições do mestre Petrônio Braz, observamos a importância de, em certas ocasiões, coibir abusos, até porque “o uso egoístico do direito subjetivo à inviolabilidade constitui-se em procedimento contrário à sociedade, pendente de uma solução jurídica, restando sua solução ao Regimento Interno da Câmara”.[21]

Assim, a inviolabilidade parlamentar deve ser capitulada como prerrogativa que proíbe a incidência de crime ou de qualquer forma de reparação de danos, sem embargo de facultar ao Regimento Interno da Casa de Leis a possibilidade de coibir (por meio de advertências, cassação da palavra e etc.) determinadas atitudes ofensivas ao decoro parlamentar.   

Tal possibilidade de apreciação e eventual restrição pelos excessos, não descaracterizam a proteção dispensada pelo constituinte ao Vereador, mantendo, incólume à independência e liberdade da instituição.

  

6 – Conclusão

                        A previsão constitucional do artigo 29, inciso VIII, dispensa ao Poder Legislativo um tratamento diferenciado e imperioso ao exercício da atividade parlamentar. Esta inviolabilidade deve ser vista, inclusive, com ares de indisponibilidade por parte do edil, até mesmo porque se trata de prerrogativa concedida visando garantir a independência da instituição.

                        Os limites e alcance desta previsão constitucional devem ser suavizados a fim de viabilizar a plena preservação da independência do Vereador no exercício de seu munus público.

                        O exercício egoístico de tal prerrogativa pode e deve ser repreendido, senão com a incidência de crime ou de qualquer reparação de danos, mas, ao menos, na esfera política ou disciplinar, mediante previsão no Regimento Interno da Casa de Leis.

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Notas


[1] BRAZ, Petrônio. Direito Municipal na Constituição, Livraria de Direito, 1994, p. 198.

[2] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Vol. II, Forense, 12ª ed., 1996, p. 437.

[3] “Trata-se de prerrogativa de caráter institucional inerente ao Poder Legislativo, que só é conferida ao parlamentar ratione numeris, em função do cargo e do mandato que exerce. É por essa razão que não se reconhece ao congressista, em tema de imunidade parlamentar, a faculdade de a ela renunciar. [...]” (RTJ 155/399). 

[4] “A Constituição da República, ao dispor sobre o estatuto político-jurídico dos Vereadores, atribuiu–lhes a prerrogativa de imunidade parlamentar em sentido material, assegurando a esses legisladores locais a garantia indisponível da inviolabilidade, por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município. [...](STF, 1ª Turma, HC 74201-MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12.11.96, DJU 13.12.96).  

[5] MELLO, Celso de. Inq. 510-DF, RTJ 135, p. 514. 

[6] CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 3ª ed., Del Rey, 1996, p. 109.

[7] RSTJ nº 75, p. 114.

[8] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 24ª ed., Atlas, 2009, p. 445. 

[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 16ª ed., 2008, p. 637.

[10]  MEIRELLES, Hely Lopes. Direito..., cit., p. 638

[11] MEIRA, José de Castro, A inviolabilidade do Vereador na Constituição Federal. Revista do Tribunal regional Federal, 5ª região, jul/set 2001. 

[12] “PROCESSUAL PENAL – “HABEAS CORPUS” SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. VEREADOR. GESTÃO. INVIOLABILIDADE. I – Se o gesto deseducado do Vereador, na Câmara, em meio a desentendimento, é hoje em dia, algo que dificilmente poderia ofender o sentimento de médio pudor, não há que se falar em ato obsceno. II – A exteriorização do pensar, em meio a atrito, no exercício da atividade, faz incidir a inviolabilidade prevista na Carta Magna. III – O evento não poderia ter adentrado a esfera penal. “Habeas Corpus” concedido (Min. Félix Fischer, HC 7332-SP, j. em 18.02.99).

[13] “DIVULGAÇÃO PELA IMPRENSA E IMUNIDADE MATERIAL: STF – A imunidade parlamentar material se estende a divulgação pela imprensa, por iniciativa do congressista ou de terceiros, do fato coberto pela inviolabilidade” (STF – RExt. Nº 210.917/rj, Rel. Sepúlveda Pertence).  

[14] HUNGRIA, Nelson apud MORAES, Alexandre. Direito..., cit., p. 442.

[15] TJSP – 3ª C. Dir. Privado – AP. 86.879-4/4 – Rel. Alfredo Migliori – j. 31.08.99.

[16] STF, RE 210.917-RJ, Sepúlveda Pertence, j. 12.08.98; STF – 2ª T. RE 220.687 – Rel. Carlos Velloso, j. 13.04.99.

[17] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil, Ed. RT, 5ª ed., 2001, p. 701.

[18] HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Del Rey, 1995, p. 597.

[19] “Excessos cometidos pelo Vereador em suas opiniões, palavras e votos, no âmbito do município e no exercício do mandato. Questão a ser submetida à Casa Legislativa, nos termos das disposições regimentais” (RE 140867-MS, rel. p/Ac. Min. Maurício Correia, j. 03.06.96).

[20] MORAES, Alexandre. Direito..., cit., p. 443.

[21] BRAZ, Petrônio. Direito..., cit., p. 198.

Sobre o autor
Diego da Silva Ramos

Advogado e Procurador Jurídico-Legislativo, pós-graduado em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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