A lei 13655/2018 e as alterações da LINDB: interpretação dos novos dispositivos artigo por artigo

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19/12/2019 às 13:00
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INTRODUÇÃO

Almejando homenagear o princípio da segurança jurídica nas esferas administrativa, controladora e judicial, o legislador, por meio da Lei nº 13655/2018, inseriu dez artigos à Lei de Introdução às Normas do Direito – LINDB (artigos 20 a 30). O projeto de lei que a originou foi relatado por Antônio Anastasia, senador mineiro, sendo que tal lei recebe, por alguns, a alcunha de “Lei Anastasia”. Esta norma estabeleceu novas regras que, apesar de inseridas na Lei de Introdução às Normas do Direito, são direcionadas especificamente ao Direito Público. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto nº 9830/2019, decreto este que a doutrina ainda não teve oportunidade de analisar e que será objeto de estudo neste trabalho.

Em uma primeira análise, percebe-se que o legislador, tanto no texto legal quanto no regulamentar, optou por utilizar de boa dose de conceitos vagos como: valores jurídicos abstratos, possíveis alternativas, consequências jurídicas e administrativas, interesses gerais, norma de conteúdo indeterminado, etc. Pois bem, o legislador foi infeliz nessa opção ao não valorizar a objetividade que se esperaria de uma norma que almeja propiciar segurança jurídica. No entanto, não serão priorizadas neste ensejo, críticas ao texto legal, mas sim na contribuição que ela pode fomentar para o ordenamento jurídico.

Como este trabalho é direcionado tanto ao operador cotidiano nas esferas administrativa, controladora e judicial, quanto para o estudante, acadêmico ou que almeja aprovação em concursos públicos, optou-se por um formato mais fluido, interpretando cada artigo com o suporte da doutrina, mas com maior enfoque na jurisprudência e na contribuição da experiência na esfera administrativa, favorecendo, nesta interpretação, o estabelecimento de boas práticas que favoreçam a segurança jurídica, sem o prejuízo da efetiva prestação de serviços ao contribuinte de forma eficiente e dentro do tempo razoável.

De antemão destaca-se: a LINDB, no âmbito do processo administrativo e judicial deve ser interpretada em consonância com o Código de Processo Civil (CPC), códex este que será amplamente utilizado para a interpretação da novel legislação, estabelecendo o diálogo das fontes, ainda mais com constitucionalização do Novo CPC.

Durante o desenvolvimento dos trabalhos, comentar-se-á a realidade do processo fiscal e os reflexos da nova legislação nesta seara, socorrendo-se, inclusive, da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Neste âmbito, além do CPC, será trazido o Código Tributário Nacional (CTN) como fonte interpretativa igualmente obrigatória.

Enfim, pretende-se oferecer uma solução ao operador e uma didática ao que está estudando a matéria, favorecendo uma clareza na nebulosidade que hoje verificamos para a árdua interpretação doutrinária da nova lei, inclusive quanto a reflexos penais e aos atos de improbidade administrativa.


1) CONTEXTUALIZAÇÃO DAS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI Nº 13655/2018: A CORRELAÇÃO DA INSERÇÃO DA REFORMA NA LINDB

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona dissertaram sobre a opção legislativa de alterar a LINDB ao invés de criar um diploma legal novo, citando Stolze e Viana. Tal posição pode ser verificada a seguir:

“O que de logo chama a atenção é a constatação de que os 11 artigos que a lei n. 13.655/2018 acrescentou à LINDB poderiam, perfeitamente, corresponder ao conteúdo de uma lei isolada. Contudo, optou-se por inserir tais artigos num diploma legal já existente.

No caso, o diploma legal alterado é um dos mais importantes do sistema jurídico: a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Trata-se de um diploma legal do qual se extraem normas que são consideradas integrantes de um chamado ‘superdireito’.

Há, portanto, uma importantíssima opção político-legislativa contida no fato de a lei n. 13.655/2018 ser um diploma alterador e não um diploma legal autônomo. Isso, por si só, é suficiente para se perceber que as normas extraídas dos textos dos novos artigos devem ser recebidas como normas que, apesar de infraconstitucionais, estão acima do universo normativo que se colhe dos textos dos diplomas infraconstitucionais de um modo geral.[1]

Apesar da crítica do renomado autor, percebe-se que o doutrinador está distante da realidade da aplicação do Direito na esfera administrativa. De antemão, a opção pelo legislador em inserir tais inovações em uma norma de “superdireito” foi lúcida. Uma lei ordinária federal comum, na prática administrativa, poderia ser recusada sua aplicação, caso uma lei local disponha sobre o tema. Outro ponto de destaque é a recusa de aplicação da lei sem essa carga de “supranorma” se arguida a ausência de regulamentação pela lei local. Com a inserção na LINDB, o legislador contornou ambos os déficits de aplicabilidade: sua aplicação é obrigatória e independe de regulamentação.

Interessante a interpretação de Celso Spitzkovski, que destoa da doutrina civilista, que não foi capaz de assimilar a razão das alterações e sua oportunidade no ordenamento jurídico em face do direito público, valendo transcrição:

“Como se verifica, trata-se de legislação que veio em boa hora para promover a ampliação do controle de decisões administrativas e judiciais, com a nítida preocupação, até então inexistente, com os seus efeitos e não somente com as causas, tudo de forma a preservar o interesse público”[2].

Apesar das veementes críticas da doutrina, conforme a própria doutrina de Pablo Stolze leciona, devido a presença de termos abstratos, as inovações são muito bem vindas.

Eventuais críticas aos dispositivos devem ser solucionadas com a interpretação ponderada pelo bom senso. No entanto, algumas críticas serão expostas a seguir, com os comentários aos dispositivos incluídos.

Em última análise, a reforma operada na LINDB, Flávio Tartuce, citando Carlos Eduardo Elias de Oliveira, pondera sobre sua natureza de “Lei da Segurança Hermenêutica na Administração Pública”, valendo transcrição:

“Como bem pondera Carlos Eduardo Elias de Oliveira, professor de Direito Civil e assessor jurídico do Senado Federal, que tem participado ativamente da elaboração de várias normas recentes, o diploma que surge poderia ser batizado de Lei da Segurança Hermenêutica na Administração Pública, ‘pois o seu objetivo foi, em síntese, implantar um ambiente de menor instabilidade interpretativa para os agentes públicos e para os atos administrativos, os quais sambam nas asas vacilantes das surpresas provocadas pela superveniência de interpretações jurídicas advindas especialmente de órgãos de controle’ (...)”[3].

Pois bem, fazendo uma análise dos dispositivos inseridos pela Lei nº 13.655/2018 percebe-se uma categorização.

Os artigos 20 a 24 instauraram um novo corolário do princípio do devido processo legal, qual seja, o princípio do devido processo decisório. Apesar de o legislador almejar a segurança jurídica, percebeu-se que ele foi além, uma vez que traduziu nuances de certeza jurídica. Paulo Nader trata da questão estabelecendo a diferença entre a segurança jurídica e a certeza jurídica, a saber:

“Os conceitos de segurança jurídica e de certeza jurídica não se confundem. Enquanto o primeiro é de caráter objetivo e se manifesta concretamente através de um Direito definido que reúne algumas qualidades, a certeza jurídica expressa o estado de conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas. Pode-se dizer, de outro lado, que a segurança possui um duplo aspecto: objetivo e subjetivo. O primeiro corresponde às qualidades necessárias à ordem jurídica e já definidas, enquanto o subjetivo consiste na ausência de dúvida ou de temor no espírito dos indivíduos quanto à proteção jurídica”[4].

Já os artigos 26 e 27 da LINDB instauraram nos processos administrativos e judiciais a transação de direito público, ao conceber o instrumento do compromisso e o instituto da compensação.

O art. 28, por sua vez, trata da responsabilização dos agentes públicos e suas vertentes que serão estudadas oportunamente.

Por fim, os artigos 29 e 30 da LINDB tratam da segurança jurídica na aplicação das normas, tratando a segurança jurídica em seu aspecto objetivo. Paulo Dourado Gusmão leciona sobre o tema da seguinte forma:

“A ‘segurança jurídica’ impõe o respeito à ordem constituída, à ordem pública e aos bons costumes; o respeito ao pactuado (pacta sunt servanda); a intocabilidade da decisão judicial transitada em julgado, mesmo que injusta; a subordinação do governo à lei a separação dos poderes do Estado; o respeito aos direitos adquiridos; a individuação da pena; a modificação da ordem jurídica com observância de regras legalmente preestabelecidas para criação do direito, sem atingir as situações jurídicas perfeitas, integralmente constituídas e os direitos adquiridos; a publicidade da lei (dos atos administrativos e judiciais) e demais atos normativos, bem como a anterioridade da lei ao fato a ser julgado, principalmente no caso de direito repressivo (penal) e a igualdade de todos diante da lei”[5].

Assim, contextualizada a matéria, passamos a interpretar cada um dos artigos inseridos na LINDB pela Lei nº 13.655/2018.


2) COMENTÁRIOS AOS DISPOSITIVOS INSERIDOS NA LINDB PELA LEI Nº 13.655/2018

Feita uma contextualização inicial do tema, passa-se a comentar os novos dispositivos.

2.1) O Art. 20 da LINDB e a Motivação das Decisões.

Primeiramente, vale verificar os dispositivos da Lei e do Decreto nº 9830/2019, bem como a posição geral da doutrina sobre o art. 20 da LINDB.

2.1.1) Noções gerais.

O art. 20 da LINDB, inserido pela Lei nº 13655/2018, foi assim redigido:

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Regulamentando o dispositivo acima, o Decreto nº 9830/2019, os arts 2º e 3º dispõe:

Art. 2º  A decisão será motivada com a contextualização dos fatos, quando cabível, e com a indicação dos fundamentos de mérito e jurídicos.

§ 1º  A motivação da decisão conterá os seus fundamentos e apresentará a congruência entre as normas e os fatos que a embasaram, de forma argumentativa.

§ 2º  A motivação indicará as normas, a interpretação jurídica, a jurisprudência ou a doutrina que a embasaram.

§ 3º  A motivação poderá ser constituída por declaração de concordância com o conteúdo de notas técnicas, pareceres, informações, decisões ou propostas que precederam a decisão. 

Art. 3º  A decisão que se basear exclusivamente em valores jurídicos abstratos observará o disposto no art. 2º e as consequências práticas da decisão.

§ 1º  Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se valores jurídicos abstratos aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração.

§ 2º  Na indicação das consequências práticas da decisão, o decisor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos.

§ 3º  A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta, inclusive consideradas as possíveis alternativas e observados os critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade. 

Conforme a doutrina de Marçal Justen Filho, a disposição do art. 20 da LINDB visa reduzir subjetivismos e superficialidades nas manifestações decisórias, valendo destaque:

“As inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018 destinam-se a reduzir certas práticas que resultam em insegurança jurídica no desenvolvimento da atividade estatal. O art. 20 relaciona-se a um dos aspectos do problema, versando especificamente sobre as decisões proferidas pelos agentes estatais e fundadas em princípios e valores de dimensão abstrata. A finalidade buscada é reduzir o subjetivismo e a superficialidade de decisões, impondo a obrigatoriedade do efetivo exame das circunstâncias do caso concreto, tal como a avaliação das diversas alternativas sob um prisma de proporcionalidade”[6].

Apesar da linguagem abstrata quer da LINDB, quer do Decreto regulamentador, percebem-se duas preocupações do legislador: 1) a ênfase no princípio da congruência enquanto vetor da motivação das decisões e 2) a observância obrigatória dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Ambas as nuances serão interpretadas.

De antemão, cabe a lúcida lição de José dos Santos Carvalho Filho:

É imperioso notar, contudo, que a norma não veda decisões fundadas em valores abstratos, mas sim que sejam proferidas de modo irresponsável, sem considerar as consequências práticas delas decorrentes. A ratio consiste em evitar o que não raras vezes ocorre – decisões que culminam por encerrar consequências desastrosas pelo fato de serem proferidas sem qualquer padrão de razoabilidade. Exemplos: Município condenado a fornecer vaga para crianças até 5 anos de idade; Estado condenado a realizar obras emergenciais em estabelecimento prisional. A ideia da norma é digna de louvores, buscando reduzir o perigoso ativismo judicial, mas, sem dúvida, será, na prática, de difícil aplicabilidade. Tais decisões provocam grande incerteza jurídica e não só afastam investimentos do setor privado como também dificultam a retomada do crescimento da economia[7].

Assim, obrando de forma responsável e pautada na realidade dos fatos, sem a subtração de um poder sobre o outro, haverá a sadia harmonia na pacificação social.

Feitas essas considerações, passar-se-á a estudar o princípio da congruência e seus parâmetros norteadores: a razoabilidade e a proporcionalidade.

2.1.2) O princípio da congruência, a proporcionalidade e a razoabilidade.

O princípio da congruência está previsto no art. 492 do CPC, com o seguinte teor:

Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.

Parágrafo único. A decisão deve ser certa, ainda que resolva relação jurídica condicional.

O princípio da congruência, conhecido também como princípio da correlação ou adstrição, preconiza que o julgador precisa estar adstrito ao pedido efetuado. Contudo, o princípio da congruência deve ser interpretado cautelosamente, uma vez que, para a solução do litígio, principalmente na esfera administrativa, pode envolver, com muita frequência, parcelas que não estão presentes no pedido e necessitam ser abordados pela autoridade, uma vez que, na quase totalidade das vezes, envolvem questões de ordem pública. Não é demasiado lembrar que questões de ordem pública devem ser analisadas de ofício, ou seja, independente de requerimento das partes.

A única exigência reside no fato de que, em qualquer hipótese, o julgador deve decidir de maneira fundamentada, fundamentação esta objetiva e suficiente.

Convém destacar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

O Superior Tribunal de Justiça possui orientação no sentido de que "não configura julgamento ultra petita ou extra petita o provimento jurisdicional inserido nos limites do pedido, o qual deve ser interpretado lógica e sistematicamente a partir de toda a petição inicial e não apenas de sua parte final"[8].

Assim, a congruência preconizada pelo novo dispositivo deve ser interpretada de maneira ampla, pelo conjunto do escopo posto em litígio.

No que concerne a proporcionalidade e a razoabilidade, nada de especial inovou a legislação, uma vez que todo o ordenamento jurídico deve ser interpretado com inteligência, como bem ensina Carlos Maximiliano:

Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis[9].

Em última análise, mesmo quando envolvido conceitos cuja abstração esteja presente, e deve ser destacado que toda e qualquer norma possui algum grau de abstração, essa indeterminação deve ser resolvida concreta e ponderadamente.

A pedra de toque que resume os dispositivos em destaque é a necessidade de que as decisões nas esferas administrativa, controladora ou judicial sejam suficientes e, sobre esta qualidade dos feitos decisórios, vale a transcrição da jurisprudência do STJ, a saber:

“Destaca-se, ainda, que, tendo encontrado motivação suficiente para fundar a decisão, não fica o órgão julgador obrigado a responder, um a um, a todos os questionamentos suscitados pelas partes, mormente se notório seu caráter de infringência do julgado. A norma extraída do art. 489 do Código Fux ratificou a jurisprudência há muito sedimentada neste Sodalício de que deve o julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida”[10].

No art. 489 do CPC, apontado na jurisprudência, destaca-se o seu §1º, que possui a seguinte redação:

Art. 489.(...)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Interpretando o dispositivo legal destacado, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) estabeleceu diversos enunciados, devendo ser destacado alguns a seguir que, apesar de se referir a esfera judicial, também são aplicados nas esferas administrativa e controladora:

Enunciado n. 306: O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa.

Enunciado n. 516: Para que se considere fundamentada a decisão sobre os fatos, o juiz deverá analisar todas as provas capazes, em tese, de infirmar a conclusão adotada.

Enunciado n. 517: A decisão judicial que empregar regras de experiência comum, sem indicar os motivos pelos quais a conclusão adotada decorre daquilo que ordinariamente acontece, considera-se não fundamentada.

Enunciado n. 524: O art. 489, § 1º, IV, não obriga o órgão julgador a enfrentar os fundamentos jurídicos deduzidos no processo e já enfrentados na formação da decisão paradigma, sendo necessário demonstrar a correlação fática e jurídica entre o caso concreto e aquele já apreciado.

A ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados), por sua vez, editou os seguintes enunciados, que também são aplicáveis às esferas administrativa e controladora:

Enunciado n. 9: É ônus da parte, para os fins do disposto no art. 489, § 1º, V e VI, do CPC/2015, identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, sempre que invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula.

Enunciado n. 10: A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa.

Enunciado n. 11: Os precedentes a que se referem os incisos V e VI do § 1º do art. 489 do CPC/2015 são apenas os mencionados no art. 927 e no inciso IV do art. 332.

Enunciado n. 12: Não ofende a norma extraível do inciso IV do § 1º do art. 489 do CPC/2015 a decisão que deixar de apreciar questões cujo exame tenha ficado prejudicado em razão da análise anterior de questão subordinante.

Enunciado n. 13: O art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015 não obriga o juiz a enfrentar os fundamentos jurídicos invocados pela parte, quando já tenham sido enfrentados na formação dos precedentes obrigatórios.

Enunciado n. 19: A decisão que aplica a tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos não precisa enfrentar os fundamentos já analisados na decisão paradigma, sendo suficiente, para fins de atendimento das exigências constantes no art. 489, § 1º, do CPC/2015, a correlação fática e jurídica entre o caso concreto e aquele apreciado no incidente de solução concentrada.

Enunciado n. 40: Incumbe ao recorrente demonstrar que o argumento reputado omitido é capaz de infirmar a conclusão adotada pelo órgão julgador.

Enunciado n. 42: Não será declarada a nulidade sem que tenha sido demonstrado o efetivo prejuízo por ausência de análise de argumento deduzido pela parte.

Pois bem, destacadas essas conclusões, convém alertar ao leitor: nunca, em momento algum, os novos dispositivos da LINDB podem ensejar o retrocesso, ou seja, desconstruir sistemas erigidos a muito custo e que devem ser mantidos. Exemplo disso é o entendimento de que a fundamentação sucinta, por si só, possa ser considerada incongruente. Esse entendimento é basilar, principalmente na esfera administrativa fiscal, valendo a menção à jurisprudência do CARF a seguir:

NULIDADE. ACÓRDÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA.

Não há que se cogitar em nulidade do acórdão de primeira instância por cerceamento do direito de defesa quando a decisão enfrentou as questões principais deduzidas pelo contribuinte, na ocasião impugnante, expondo as razões que formaram o convencimento do julgador, cuja fundamentação, mesmo que sucinta, é capaz de justificar racionalmente a deliberação que manteve o lançamento fiscal[11].

No mesmo sentido a jurisprudência do STJ e do STF, como a seguir transcrito:

Segundo a jurisprudência consolidada do Pretório Excelso, reafirmada no julgamento, sob o regime de repercussão geral, do AI-RG-QO 791.292/PE, a teor do disposto no artigo 93, IX, da Constituição Federal, as decisões judiciais devem ser motivadas, ainda que de forma sucinta, não se exigindo o exame pormenorizado de cada alegação ou prova trazida pelas partes, tampouco que sejam corretos os seus fundamentos (Tema 339/STF)[12].

Mas até que ponto a fundamentação sucinta é legítima e qual o limite da sua insuficiência? A jurisprudência do CARF é rica e traz sólidos balizamentos, conforme os acórdãos a seguir:

PRELIMINAR. DESPACHO DECISÓRIO. NULIDADE. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA.

Demonstrados no despacho decisório eletrônico os fatos que ensejaram o indeferimento do ressarcimento, informada a sua correta fundamentação legal, emitido por autoridade competente e tendo sido dada ciência ao contribuinte para a apresentação do recurso cabível, é de se rejeitar a alegação de nulidade do despacho decisório por cerceamento de defesa.

PRELIMINAR. ACÓRDÃO RECORRIDO. NULIDADE. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. OCORRÊNCIA.

A decisão de primeira instância, que deixa de apreciar as provas apresentadas oportunamente pela contribuinte, incorre em vício insanável por cerceamento do direito de defesa[13].

Assim, a decisão que demonstra a fundamentação legal do convencimento do julgador competente não é nula. Outra sorte se verifica quando o julgador, apesar de demonstrar a fundamentação legal de sua decisão, omitir a análise de elementos probatórios suficientes para infirmar a decisão. Vale dizer: a decisão administrativa deve pormenorizar os fatos apurados, como bem orienta a jurisprudência do CARF:

DESCRIÇÃO DOS FATOS. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL. INOCORRÊNCIA DE NULIDADE.

Não há que se falar em nulidade por cerceamento de defesa, quando o lançamento contém descrição pormenorizada dos fatos apurados e indicação correta dos dispositivos legais aplicados[14].

A seguir será abordado o art. 20 e sua aplicação na jurisprudência:

2.1.3) Manifestações jurisprudenciais sobre o art. 20 da LINDB.

O Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se do art. 20 da LINDB, afastou a exigibilidade da aplicação da legalidade estrita, quando está em jogo danos sociais excepcionalmente sensíveis. Tal concepção pode ser verificada no seguinte recentíssimo acórdão, cujo relator foi o Min. Napoleão Nunes Maia, valendo transcrição:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. REMOÇÃO. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. PRESERVAÇÃO DA UNIDADE FAMILIAR. SITUAÇÃO SOBRE A QUAL O TEMPO ESTENDEU O AMPLO MANTO DA SUA JUSTA IMODIFICABILIDADE. AGRAVO INTERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Na hipótese vertente, a situação fática está consolidada no tempo, haja vista que, em julho de 2010, por força de antecipação de tutela recursal, a agravada teve deferido seu direito de prestar serviços na Cidade de Arcoverde-PE. Ademais, a sua permanência por si só, não implica prejuízos para a Administração, posto que a Autora continua a prestar seus serviços no Hospital Regional Estadual de Arcoverde-PE. 2. Sendo assim, é um caso excepcional, em que a restauração da estrita legalidade ocasionaria mais danos sociais do que a manutenção da situação consolidada. Precedentes: AREsp. 883.574/MS, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 19.10.2017; AgRg no AREsp. 445.860/MG, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe  28.3.2014 e AgRg no Ag 1.397.693/SP, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 23.3.2012. 3. Nas palavras do Jusfilósofo alemão, Professor KARL ENGISCH (1899-1990), reportando lição do Professor HANS REICHEL (1892-1958) que, nos idos de 1915, asseverou que o Juiz é obrigado, por força do seu cargo, a afastar-se conscientemente de uma disposição legal, quando essa disposição de tal modo contraria o sentimento ético da generalidade das pessoas que, pela sua observância, a autoridade do Direito e da Lei correria um perigo mais grave do que através da sua inobservância (Introdução do Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Gulbenkian, 1965, p.272). 4. Ademais, em atenção ao princípio insculpido no art. 226 da Constituição Federal, insta reconhecer que tem o Estado interesse na preservação da família, considerada base sobre a qual se assenta a sociedade. Outrossim, não se olvida que aludido princípio não pode ser aplicado de forma indiscriminada, merecendo cada caso concreto uma análise acurada de suas particularidades. 5. Agravo Interno do ESTADO DE PERNAMBUCO a que se nega provimento[15].

O Ministro Relator, em seu voto, dissertou da seguinte forma:

“Ademais, há a solidificação de situações fáticas ocasionada em razão do excessivo decurso de tempo entre o provimento do Apelo e os dias atuais, de maneira que a reversão desse quadro implicaria inexoravelmente em danos desnecessários e irreparáveis à parte agravada; é o que ocorre no caso dos autos, onde a autora está na nova lotação há 9 anos. Aplica-se, no caso, a Lei Anastasia, que em seu art. 20 dispõe que, nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”[16].

Assim, verifica-se o reconhecimento de um considerável grau de relevância dado pelo STJ ao art. 20 da LINDB, a sobrepor o princípio da legalidade estrita na administração pública.

Também o Supremo Tribunal Federal já abordou o art. 20 da LINDB em sua estreita correlação com o Código de Processo Civil e com o escopo econômico do processo, valendo transcrição:

“1. O Art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (incluído pela Lei n.º 13.655/2018) dispõe, verbis: ‘Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão’. 2. O Magistrado tem o dever de examinar as consequências imediatas e sistêmicas que o seu pronunciamento irá produzir na realidade social, porquanto, ao exercer seu poder de decisão nos casos concretos com os quais se depara, os Juízes alocam recursos escassos. Doutrina: POSNER, Richard. Law, Pragmatism and Democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 60-64. 3. A segurança jurídica prevista no Código de Processo Civil de 2015, representa o cânone que consagra diversos mecanismos para o sobrestamento de causas similares com vistas à aplicação de orientação uniforme em todos eles (art. 1.035, § 5º; art. 1.036, § 1º; art. 1.037, II; art. 982, § 3º), juntamente com a estabilização da jurisprudência, a isonomia e a economia processual. 4. A doutrina sobre o tema assevera que, verbis: ‘trata-se de uma preocupação central do Código, cujo art. 926 impõe aos Tribunais a uniformização de sua jurisprudência para mantê-la estável, íntegra e coerente. Repise-se que a segurança jurídica quanto ao entendimento dos Tribunais pauta não apenas a atuação dos órgãos hierarquicamente inferiores, mas também o comportamento extraprocessual de pessoas envolvidas em controvérsias cuja solução já foi pacificada pela jurisprudência.’ (FUX, Luiz; BODART, Bruno. Notas sobre o princípio da motivação e a uniformização da jurisprudência no novo Código de Processo Civil à luz da análise econômica do Direito. In: Revista de Processo, v. 269, jun. 2017, pp. 421-432)”[17].

Ainda no STF, o Ministro Edson Fachin, em decisão interlocutória, dissertou sobre o art. 20, afirmando que tal dispositivo homenageia o consequencialismo jurídico como corolário do princípio da segurança jurídica. Leciona também, citando Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras que o dispositivo em questão instaura um devido processo legal decisório. Confira:

“A despeito disso, na qualidade de Estado-Juiz, impende apontar que art. 20 do Decreto-Lei 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, consolidou, em algum grau, no ordenamento jurídico o dever de obediência a prescrições emanadas do consequencialismo jurídico como corolário necessário do princípio da segurança jurídica e do interesse social.

Eis o teor do dispositivo supracitado:

 “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

De acordo com Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras, essa norma vincula ao Poder Judiciário e significa o seguinte:

‘A prescrição é um tanto mais sofisticada. Estabelece um devido processo legal decisório, mais interessado nos fatos, por intermédio do qual os decisores terão de explicitar-se: (i) dispõem de capacidade institucional para tanto, ou se, excepcionalmente, estão exercendo uma função que lhe é atípica, mas por uma necessidade pragmática, porém controlável; (ii) a decisão que será proferida é a mais adequada, considerando as possíveis alternativas e o seu viés intrusivo; e (iii) se as consequencias de suas decisões são predicadoras de medidas compensadoras, ou de um regime transição. Cuida-se de uma motivação para além da exigida pelo disposto no artigo 50 da Lei 9.784/1999. Não se trata de um dever de utilização de uma ‘retórica das consequências’, como já se cogitou, nem, tampouco, tem o propósito de tornar o controle mais lasso. Quem exerce o controle não pode descurar o seu autocontrole.

Na verdade, trata-se de dispositivo que visa estabilizar e a conferir exequibilidade às decisões do controlador. E, de outro bordo, estabelecer parâmetros a partir dos quais tais decisões poderão ser controladas. Assim é que, caso se trate de decisão na esfera administrativa, a inobservância dessa exigência poderá importar na sua invalidação, por ausência de motivos, como determina o disposto no artigo 2º, d e parágrafo único, d, ambos da Lei 4.717/1965 (Lei da Ação Popular). De outro lado, caso tal inobservância seja observada em provimento jurisdicional, tratar-se-á de decisão considerada sem fundamentação, nos termos do artigo 489, parágrafo 1º, do CPC 2015, o que pode ensejar a sua nulidade (nos termos do artigo 1.013, parágrafo 3º, I, do CPC 2015). O dispositivo, portanto, não só é compatível com sistema normativo já vigente como, de resto, com ordenamento constitucional brasileiro’.” (Disponível em: . Acesso em 13.09.2018)[18].

Devem ser destacados os efeitos das decisões que não cumprirem o disposto no artigo 20 da LINDB. Se decisão administrativa, admite invalidação da mesma por violação do art. 2º, alínea “d”, com a conceituação dada pelo parágrafo único, alínea “d” do mesmo dispositivo da Lei nº 4.717/1965 (Lei da Ação Popular). Se decisão judicial, ela será considerada sem fundamentação, nos termos do art. 489, §1º, inciso IV do CPC. Contudo, é válido dizer que ambas as fundamentações são aplicáveis tanto para o julgador nas esferas administrativa e judicial indiscriminadamente. Vale dizer: se o administrador não aplicar o art. 20 da LINDB, será também considerada não fundamentada, vez que o art. 489 supra também alcança o processo administrativo, por força do art. 15 do CPC.

De acordo com a doutrina de Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras citada pelo Ministro Edson Fachin, o artigo 20 da LINDB é erigido para compatibilizar as decisões administrativas, controladoras e judiciais à ordem constitucional vigente, inaugurando um “devido processo legal decisório”.

Em instâncias ordinárias, merecem destaques acórdãos que estabelecem a aplicação do art. 20 da LINDB na esfera administrativa. A primeira hipótese reside no sequestro de numerários públicos para atendimento de saúde do cidadão, sem onerar desproporcionalmente o erário, destacando-se acórdão do TJSC, nos seguintes termos:

SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA OBRIGAR OS RÉUS AO ATENDIMENTO DE PACIENTES COM NEOPLASIA MALIGNA. DETERMINAÇÃO DE PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA. SUBSTITUIÇÃO PELO SEQUESTRO DE VERBAS PÚBLICAS EM RELAÇÃO AO ESTADO, OPORTUNIDADE EM QUE SE OBSERVARÁ O ART. 20 DA LINDB. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO[19].

Em seu voto, o Exmo. Desembargador ponderou:

Ressalta-se que, caso haja sequestro, caberá ao juízo da execução ponderar acerca das consequências advindas ao Estado, em especial os custos.

Em outras palavras, deve-se resguardar o interesse dos pacientes sem onerar demasiadamente os cofres públicos, nos termos do que estabelece o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Assim, o caminho é a cassação da astreinte, com sua substituição pelo sequestro de verbas públicas necessárias ao atendimento dos pacientes.

(...)

Dá-se parcial provimento ao recurso para, em relação ao Estado, substituir a multa diária pelo sequestro de verbas necessárias ao atendimento dos pacientes com neoplasia maligna, se for necessário, oportunidade em que se observará o art. 20 da LINDB.

Também no TJSC, houve a aplicação do art. 20 em exame nas hipóteses de obrigatoriedade de oferecimento de interprete de libras a alunos com necessidades especiais, no que concerne aos reflexos desproporcionais aos cofres públicos, a saber:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE INTÉRPRETES DE LIBRAS (LINGUAGEM BRASILEIRA DE SINAIS) PARA ACOMPANHAMENTO DE ALUNOS DEFICIENTES AUDITIVOS. SEPARAÇÃO DE PODERES, CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE DA ADMINISTRAÇÃO E RESERVA DO POSSÍVEL. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA REFORMA DA SENTENÇA, RESSALVADO O PONTO DE VISTA PESSOAL DESTE RELATOR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO A FIM DE DETERMINAR QUE, QUANDO DA EXECUÇÃO DO JULGADO, SEJAM OBSERVADAS AS CONSEQUÊNCIAS, EM ESPECIAL FINANCEIRAS, IMPUTADAS AO ESTADO. EXEGESE DO ART. 20 DA LINDB. (ARE 639337 AgR, rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 23-8-2011)[20].

O TJRS, em recente acórdão, declarou que o art. 20 da LINDB deve ser utilizado para priorizar a análise do mérito, evitando-se a extinção sem a sua análise, a saber:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. REMOÇÃO SEM CONCURSO PÚBLICO. VACÂNCIA. 1. Ilegitimidade passiva. Cabe ao Poder Judiciário a fiscalização das serventias extrajudiciais (art. 236, § 1º, da CF). Portanto, o Estado do Rio Grande do Sul tem responsabilidade pelo ato impugnado, uma vez que é o executor da decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça, tendo elaborado as listas de vacância – Resolução 80/2009-CNJ. 2. Coisa Julgada. A coisa julgada ocorre quando se repete ação que já foi decidida por decisão, de que não caiba recurso, conforme regramento previsto no art. 337, incisos VI e VII, e parágrafos 1º a 4º, do Código de Processo Civil. O autor impetrou anterior mandado de segurança contra decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que desconstituiu ato do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Aplicação do artigo 20 da LINDB, considerando os resultados práticos da decisão de extinção do processo. Princípio da primazia da decisão de mérito, segundo o qual o julgador deve priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para que ocorra. 3. Mérito do Recurso. Hipótese em que a parte autora já impetrou mandado de segurança contra decisão do CNJ, que desconstituiu ato de remoção do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no qual os argumentos postos foram afastados, sendo mantido o indeferimento da liminar e negado seguimento ao pedido. 4. A pretensão de reversão da declaração de vacância e manutenção de titularidade do Ofício de Bom Princípio, Comarca de Feliz/RS, já foi repelida tanto na via administrativa, quanto no julgamento da impugnação e recursos junto ao CNJ. 5. Concretização do princípio da força normativa da Constituição, considerando a prévia declaração do STF de plena aplicação do artigo 236, §3º, CF. Na solução dos problemas jurídicos deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos constitucionais, contribuem para a eficácia da Constituição. Prevalência da solução hermenêutica que garanta integridade e coerência do texto constitucional, considerando a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal. 6. A vacância da serventia do Ofício Distrital de Bom Princípio, Comarca de Feliz/RS ocorreu quando já vigente a Constituição Federal de 1988, ou seja, em agosto/1992. Não se aplica o disposto no artigo 682 da Lei Estadual nº 5.256/66, porquanto não recepcionado pela Constituição Federal. PRELIMINARES REJEITADAS. APELO PROVIDO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE[21].

O Exmo. Relator explicitou em seu voto o seguinte:

A recente Lei nº 13.655/2018, acrescentou na LINDB, o artigo 20, segundo o qual nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores abstratos, sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Muito embora as dificuldades para compreender a expressão “consequências práticas da decisão”, o texto normativo, no mínimo, remete para o dever de o julgador refletir sobre as dimensões pragmáticas da decisão. O parágrafo único do dispositivo citado, por sua vez, ao elencar requisitos da motivação, inclusive da decisão judicial, menciona a motivação da necessidade e a adequação da invalidação de processo, inclusive em face das possíveis alternativas.

Raciocínio similar poderá ser utilizado quando a decisão judicial importar extinção do processo, ou seja, com o intuito de privilegiar a segurança jurídica de matéria tão controvertida que chegou a este Tribunal de Justiça, além do próprio encaminhamento aqui proposto, é crível aplicar o princípio da primazia do mérito. No entendimento de Freedie Didier Jr.:

“O CPC consagra o princípio da primazia da decisão de mérito. De acordo com esse princípio deve o órgão julgador priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para ocorrer. A demanda deve ser julgada – seja a demanda principal (veiculada na petição inicial), seja um recurso, seja uma demanda incidental”.

No Tribunal de Justiça do Paraná, o art. 20 da LINDB foi utilizada como subsídio para vedar a exigência de certidão de regularidade fiscal para renovação contratual com a administração pública:

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONDICIONAMENTO DA RENOVAÇÃO DO REGISTRO DE TRANSPORTADORA DE PASSAGEIROS PERANTE O DER À APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL – RESTRIÇÃO AO LIVRE EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL - MEIO INDIRETO DE COBRANÇA DE TRIBUTOS – VEDAÇÃO – PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - OBSERVÂNCIA AO ARTIGO 20, LINDB – RECURSO DESPROVIDO – SENTENÇA MANTIDA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO[22].

O art. 20 da LINDB foi utilizado também pelo TJPR como substrato nas hipóteses de aplicação de teses de tribunais superiores, a saber:

SUPOSTA OMISSÃO E CONTRADIÇÃO NA DECISÃO COLEGIADA, EM VIRTUDE DA INOBSERVÂNCIA DAS TESES FIXADAS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL (TEMAS Nº 500 E 793). INEXISTÊNCIA DOS REFERIDOS VÍCIOS. APLICAÇÃO DA TESE QUE SOMENTE SE MOSTRA POSSÍVEL A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO PARADIGMA, NOS TERMOS DO ART. 1.040, III, DO CPC, O QUE AINDA NÃO OCORREU. NECESSIDADE IN CASU DE PROCEDER COM CAUTELA DIANTE DAS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DA DECISÃO (ART. 20, CAPUT, DA LINDB). PLEITO DE REFORMA TAMBÉM COM RELAÇÃO AOS HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. PRETENSÃO DE REDISCUSSÃO DA MATÉRIA JÁ APRECIADA. IMPOSSIBILIDADE[23].

A Exma. Desembargadora relatora em seu voto dissertou:

A aplicação da tese, desacompanhada dos fundamentos contidos no Acórdão, certamente compromete a segurança jurídica, sobretudo em casos como o presente, que potencialmente podem deslocar a competência para processamento e julgamento das demandas.

Acrescento, ainda, a preocupação desta Relatora no que tange às consequências práticas da decisão (art. 20, , da LINDB) que eventualmente empregasse a tese nos caput referidos termos, causando a remessa de inúmeras ações à Justiça Federal, sem conhecer a totalidade dos argumentos utilizados para subsidiar as teses firmadas pelo STF.

Enquanto não houver a publicação do acórdão paradigma, entendo ser temerária a utilização da tese propriamente dita desprovida de seus fundamentos. Sendo assim, não há que se falar na configuração de omissão ou contradição na decisão embargada[24].

Mais uma vez o TJPR adotou o art. 20 da LINDB analisando a ausência de fundamentação pela Corte de Contas, a saber:

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO – DESAPROVAÇÃO DE CONTAS DE PREFEITO MUNICIPAL PELO TRIBUNAL DE CONTAS DO PARANÁ (TCE/PR) – ALEGAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA PER RELATIONEM – INOCORRÊNCIA – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES (ART. 93, INCISO X, CF E ART. 20, LINDB) – CONTROLE JUDICIAL DE ATO ADMINISTRATIVO – POSSIBILIDADE – DECISÕES COM FLAGRANTE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO E REEXAME NECESSÁRIO NÃO RECEBIDO[25].

Ainda no TJPR, o art. 20 da LINDB foi utilizado como fundamento para limitar o quantum indenizatório em indenização por acidente de trânsito, a saber:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. PEDIDO DE REFORMA DA SENTENÇA DEDUZIDO EM CONTRARRAZÕES.NÃO CONHECIMENTO. IRRESIGNAÇÃO ADSTRITA AO QUANTUM INDENIZATÓRIO. CRITÉRIO BIFÁSICO. PATAMAR MÉDIO DO GRUPO DE CASOS.ANÁLISE DAS CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS DA DECISÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 20 E PARÁGRAFO ÚNICO DA LINDB. MANUTENÇÃO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ DOS RECORRENTES NÃO CONFIGURADA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJPR – 8ª Câmara Cível – APELAÇÃO CÍVEL Nº 0002204-28.2009.8.16.0148 – Rel. Desemb. CLAYTON MARANHÃO – Julgamento: 18/07/2019).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, adotou o art. 20 da LINDB nas hipóteses de cumprimento de acordo homologado judicialmente:

REMESSA NECESSÁRIA - APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE SENTENÇA - ACORDO HOMOLOGADO JUDICIALMENTE - EXECUÇÃO: VALORES: SEM ESPECIFICAÇÃO - ACORDO: CUMPRIMENTO: CIRCUNSTÂNCIAS - LINDB. 1. Na execução deve ser especificada a origem do crédito executado, possibilitando à parte executada a sua ampla defesa. 2. Nos termos do art. 20 da LINDB (Decreto-lei nº 4.657/1942, ao interpretar os atos administrativos deve se levar em consideração os obstáculos e dificuldades do gestor em cumprir os acordos celebrados, observando as circunstâncias que o impediram ou limitaram o seu cumprimento a tempo e modo. 3. Atento às especificidades do caso concreto, bem como aos princípios da boa-fé e lealdade processual, deve ser levado em consideração todos os atos praticados para o cumprimento do acordo, que de fato foi cumprido, observando, ainda, a ausência de manifestação da parte contrária quanto aos pedidos de prorrogação para cumprimento do acordado.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0474.11.004191-7/001, Relator(a): Des.(a) Oliveira Firmo , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/09/2018, publicação da súmula em 11/09/2018)

Feita a abordagem do art. 20 da LINDB, passar-se-á à análise do seu art. 21.

2.2) O Art. 21 da LINDB e os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade nas Hipóteses de Invalidação.

Antes de aprofundar o tema, válido expor a disposição do art. 21 da LINDB, bem como a regulamentação do Decreto nº 9830/2019 e as linhas gerais doutrinárias.

2.2.1) Noções Gerais.

O novo art. 21 da LINDB possui a seguinte redação:

Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Parágrafo único.  A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. 

Este dispositivo foi regulamentado pelo multicitado Decreto nº 9830/2019, em seu art. 4º da seguinte forma:

Art. 4º  A decisão que decretar invalidação de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos observará o disposto no art. 2º e indicará, de modo expresso, as suas consequências jurídicas e administrativas.

§ 1º  A consideração das consequências jurídicas e administrativas é limitada aos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos que se espera do decisor no exercício diligente de sua atuação.

§ 2º  A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta, consideradas as possíveis alternativas e observados os critérios de proporcionalidade e de razoabilidade.

§ 3º  Quando cabível, a decisão a que se refere o caput indicará, na modulação de seus efeitos, as condições para que a regularização ocorra de forma proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais.

§ 4º Na declaração de invalidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, o decisor poderá, consideradas as consequências jurídicas e administrativas da decisão para a administração pública e para o administrado:

I - restringir os efeitos da declaração; ou

II - decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente definido.

§ 5º  A modulação dos efeitos da decisão buscará a mitigação dos ônus ou das perdas dos administrados ou da administração pública que sejam anormais ou excessivos em função das peculiaridades do caso. 

Tanto no dispositivo legal quanto no regulamentar percebe-se uma exigência à autoridade imbuída da competência decisória: uma conduta proativa nas hipóteses de invalidação, exigindo a abordagem na decisão sobre as consequências do julgado. No entanto, esta mesma conclusão poderia ser extraída do art. 20 já comentado, entendimento este que também esposa José dos Santos Carvalho Filho, a saber:

No art. 21, caput, o legislador procedeu a uma inútil repetição, pois a norma traduz o que já dispõem o caput e o parágrafo único do art. 20: a decisão administrativa ou judicial que invalidar ato, contrato e outras condutas administrativas deve indicar expressamente as consequências jurídicas e administrativas.

O parágrafo único desse mesmo art. 21 trata das condições de regularização das condutas invalidatórias, exigindo que ocorram de modo proporcional e equânime, sem prejuízo aos interesses gerais e sem impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, no caso, sejam anormais ou excessivos. Pretendeu o legislador impedir decisões irresponsáveis que desconsiderem situações constituídas. Interpreta-se modo proporcional como a possibilidade de modulação de efeitos, ao passo que a equanimidade espelha justiça e neutralidade, sendo intrínseca a qualquer tipo de ato decisório de órgãos do Estado[26].

O regulamento (art. 4º, §1º) restringe essa análise aos limites dos fatos e fundamentos de mérito. Vincula também uma motivação adequada, proporcional e razoável das alternativas necessárias (art. 4º, §2º). Utiliza ainda da técnica da modulação dos efeitos do julgado (art. 4º, §§ 3º a 5º).

De qualquer forma, estas medidas devem ser precedidas de contraditório e ampla defesa ao administrado, partes ou entidades sujeitas a controle, pois uma medida que, em tese, visa uma segurança jurídica, pode ensejar uma conduta lesiva ao próprio interesse dos destinatários que visam salvaguardar.

A modulação dos efeitos também exige a participação dos interessados no processo, com a intimação destes para se manifestarem sobre a necessidade de modulação e sugestão de alternativas e prazos. A autoridade decisória, de per si, na maioria das vezes, não possui a visão abrangente que contemple todos os pontos de vista aplicáveis e necessita da colaboração de todos os envolvidos. A lei, ao colocar nos ombros unicamente do decisor essa responsabilidade, cria uma desestabilização do sistema.

A melhor interpretação seria a distribuição de responsabilidades entre o decisor e as partes no processo, todos imbuídos na melhor alternativa, colaborando para o fim desejável no prazo razoável.

2.2.2) Manifestações Jurisprudenciais Acerca do Art. 21 da LINDB: a correlação com o art. 23 do mesmo diploma legal

O STJ estabelece uma correlação entre a menor onerosidade prevista no art. 21 e a modulação dos efeitos prevista no art. 23 da LINDB. Valendo transcrição:

“O regime de transição do art. 23 da LINDB está em íntima conexão com o princípio da menor onerosidade da regularização, previsto no art. 21, parágrafo único, de referido diploma legal, segundo o qual não se pode impor aos sujeitos atingidos pela modificação de jurisprudência ônus ou perdas anormais ou excessivos”[27].

O Tribunal de Justiça de São Paulo adotou o art. 21, combinado com o art. 20 da LINDB nas hipóteses de anulação de contrato por vícios de licitação, após longeva vigência contratual, a saber:

Direito administrativo. Concessão de serviço de água e esgotos. Licitação e contrato administrativo datados de 1996. Vícios intrínsecos. Subsequente aditamento com mutação subjetiva em 2007. Anulação ao fundamento da noção de acessoriedade na esteira de decisão do TCE data de 2017. Cumprimento das obrigações contratuais pelo novo contratado. Inexistência de registro de aplicação de sanções por descumprimento do ajuste. Contratado que se sujeitou cooperativamente a diversos processos de controle judicial do contrato. Produção de vários e substanciais efeitos padrão do contrato executado. Boa-fé. Segurança jurídica e confiança legítima. Consequências práticas, jurídicas e administrativas da anulação não ponderadas nos termos do art. 20 e do art. 21 da LINDB. Hipótese de estabilização dos vícios. Sentença de procedência reformada. Recurso provido[28].

Vale também a transcrição de excerto do voto do relator:

Isto posto, é forçoso reconhecer que é longeva a produção dos efeitos padrão do contrato viciado, e que inexiste má-fé por parte da empresa contratada, contra a qual nada foi articulado na petição inicial que permita identificar conluio para aproveitar-se da situação de fato e de direito precedente à investidura na titularidade dos serviços, e em favor da qual se identifica a boa-fé na medida dos atos de execução contratual e da sujeição a atos de controle judicial do ajuste como acima registrado.

Nestas condições, os valores da segurança jurídica e da confiança legítima favorecem a pretensão recursal da empresa apelante de ver reconhecida a estabilização dos vícios originários do edital de licitação e do contrato administrativo.

Ponderam-se, ainda, em favor da tese sustentada pela empresa apelante, as disposições do art. 20 e do art. 21 da LINDB, pois a rescisão do contrato daria causa a danos emergentes, fato não ponderado no julgamento da causa, vislumbrando-se na alternativa de continuidade da relação contratual pelo lapso de tempo inferior à terça parte final do prazo contratual como a alternativa que melhor convém ao interesse público e à regularidade da prestação do serviço. [29]

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro abordou o art. 21 da LINDB da seguinte forma:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C REQUERIMENTO DE TUTELA DE URGÊNCIA. PEDIDO DE CONTRATAÇÃO DE PROFISSIONAL MEDIADOR/CUIDADOR PELO ENTE ESTADUAL PARA ACOMPANHAR O AUTOR/AGRAVADO EM SALA DE AULA DO COLÉGIO ESTADUAL EM QUE ESTUDA, POR SER PORTADOR DE AUTISMO, APRESENTANDO DIFICULDADES DE APRENDIZADO E INTERAÇÃO. DEFERIMENTO DA TUTELA DE URGÊNCIA CONTRA A QUAL SE INSURGE O ESTADO DO RIO DE JANEIRO. DECISÃO AGRAVADA QUE NÃO INDICA AS CONDIÇÕES DE SEU CUMPRIMENTO EFETIVO, INOBSERVANDO O ARTIGO 21, PARÁGRAFO 1º, DA LINDB (“art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”). CONTRATAÇÃO DE PESSOAL NA ESFERA PÚBLICA QUE DEMANDA O CUMPRIMENTO DE NORMAS DE ORDEM CONSTITUCIONAL E INFRA CONSTITUCIONAL NA ESFERA NO ENTE FEDERADO. ARTIGO 37 E INCISOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECISÃO QUE SE AFIGURA MERAMENTE POLÍTICA. DIREITO FUNDAMENTAL A EDUCAÇÃO QUE NÃO AFASTA A NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIAS DAS NORMAS INSCULPIDAS PELO ESTADO DE DIREITO. O DEVER DOS ENTES FEDERADOS NA CONSECUSSÃO DOS DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE PREVISTOS DEVE SE CONSTRUIR NO INTERESSE DA COLETIVIDADE, EM ATENDIMENTO AO INTERESSE PÚBLICO. REFORMA DO DECISUM PARA DESONERAR O ENTE AGRAVANTE DO DEVER DE CONTRATAR O PROFISSIONAL REQUERIDO PELA PARTE AGRAVADA. PROVIMENTO DO RECURSO[30].

O TJSP concedeu segurança a concursado portador de deficiência, para que eventual incapacidade laboral fosse diagnosticada por ocasião do estágio probatório e não por ocasião da eliminação do certame. Nesta avaliação no período do estágio probatório, foi vinculada a eventual avaliação negativa “à comprovação de que a administração diligenciou o que lhe cabe com vistas à concretização da inclusão social”. Vale transcrição:

Direito administrativo. Concurso público. Portador de deficiência. Exame admissional. Inaptidão. Ato administrativo desprovido de fundamentação razoável à luz da política nacional de inclusão social. Art. 2º, inciso III, da Lei nº 7.853/89. Segurança ora concedida, ressalvado o reexame da matéria na avaliação de estágio probatório à luz das mesmas exigências. Recurso provido[31].

Em seu voto, com extrema lucidez, o Exmo. Relator impôs:

Registre-se, para os fins do art. 21 da LINDB, que eventual avaliação negativa do estágio probatório se sujeita à comprovação de que a administração diligenciou o que lhe cabe com vistas à concretização da inclusão social[32].

Após comentado o art. 21 da LINDB, passar-se-á a estudar o art. 22 do mesmo diploma legal.

2.3) O art. 22 da LINDB e a Empatia ao Gestor Público

A inovação do art. 22 da LINDB será tratado em suas linhas gerais, antes de verificar as manifestações jurisprudenciais.

2.3.1) Noções Gerais

O art. 22 da LINDB está assim disposto:

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º  Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

§ 2º  Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.

§ 3º  As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato. 

O Decreto nº 9830/2019, ao regulamentar esse dispositivo, determina:

Art. 8º  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos, as dificuldades reais do agente público e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º  Na decisão sobre a regularidade de conduta ou a validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, serão consideradas as circunstâncias práticas que impuseram, limitaram ou condicionaram a ação do agente público.

§ 2º  A decisão a que se refere o § 1º observará o disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º. 

Na interpretação das normas sobre gestão pública, o legislador criou uma “empatia” para com o administrador público, com a determinação de se considerar “os obstáculos, as dificuldades reais do agente público e as exigências das políticas públicas a seu cargo” e a integração destas nuances aos direitos dos administrados.

Sobre este dispositivo, doutrina de Eduardo Jordão:

“No caso do art. 22, objeto específico deste texto, é particularmente relevante esta segunda trilha, referente à contextualização. Daí ser comum que se afirme que ele consagra o ‘primado da realidade’. Nele, a exigência de contextualização produz uma espécie de ‘pedido de empatia’ com o gestor público e com suas dificuldades. Esta é outra lógica bastante presente no projeto: se o controlador quer se colocar na posição de tomar ou substituir decisões administrativas, é preciso que enfrente também os ônus que o administrador enfrenta. Esta circunstância vai na linha das afirmações de parte da doutrina, mencionadas acima, no sentido da necessidade de maior atenção às agruras e aos dilemas do gestor público”[33].

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Vale dizer: não se deve levianamente atacar uma gestão pública se não for compreendida todas as circunstâncias que levaram a tomada da decisão. É “se por na pele” do gestor antes de criticá-lo.

Em última análise, o dispositivo em questão aplica o princípio da realidade, nos termos da doutrina de José dos Santos Carvalho Filho:

Em nosso regime federativo, composto de unidades autônomas, há expressivas diferenças quanto à gestão dos administradores públicos, sendo induvidoso que a gestão da União ou de um Estado-membro poderoso não pode comparar-se à de um longínquo e isolado Município. E essa diferença realmente tem que ser considerada pelos órgãos de controle, principalmente pelos Tribunais de Contas.

Por esse motivo, a nova lei, no art. 22, recomendou que, para a interpretação de normas sobre gestão pública, deverão levar-se em conta os obstáculos e as dificuldades do gestor e as exigências das políticas públicas de sua atribuição, sem prejuízo dos direitos dos administrados. Em outra vertente, para avaliar regularidade ou validade de conduta, ato, contrato, processo ou norma, será imprescindível analisar as circunstâncias concretas que impuseram, limitaram ou condicionaram a conduta do gestor (art. 22, § 1º). A incidência, no caso, é do princípio da realidade, que sugere, em alguns casos, a inaplicabilidade de parâmetros meramente teóricos. Exemplo crítico sempre citado é o da condenação de pequenos Municípios a fornecer a uma só pessoa medicamentos ou serviços de custo elevadíssimo, cujos recursos seriam alocados para assistência médica a toda a população[34].

No entanto, percebam que mais uma vez a lei foi redundante, pois esta mesma conclusão é perfeitamente extraída do art. 20 já comentado.

2.3.2) Manifestações jurisprudenciais.

Sobre a aplicação da sanção ao administrador, o TJSC possui o seguinte entendimento:

APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO DE MAJORAÇÃO DA MULTA CIVIL PARA TRÊS VEZES O VALOR DO ACRÉSCIMO PATRIMONIAL E DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS NO PRAZO DE OITO A DEZ ANOS. PROVIMENTO PARCIAL. PENALIDADE ARBITRADA COM A OBSERVÂNCIA DO ART. 22, § 2º, DA LINDB. No âmbito da improbidade, o sancionamento deve ser realizado à luz do princípio da proporcionalidade, sob a ótica da proibição de excesso punitivo, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A respeito, ensina o Ministro Gilmar Mendes: "O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há também de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito)". (Voto-vista proferido no RE n. 349.703, j. 3-12-2008).   Também é necessário observar a natureza, gravidade da infração cometida, os danos que dela provieram para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente, nos termos do art. 22, § 2º, da LINDB[35].

O Tribunal de Justiça do Paraná se socorreu do art. 22, combinado com o art. 20, ambos da LINDB, para fundamentar acórdão envolvendo a situação carcerária de presos provisórios, a saber:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA. EXECUÇÃO PENAL. SUPERLOTAÇÃO DA CADEIA PÚBLICA DE IBIPORÃ. PRESOS PROVISÓRIOS CONFINADOS COM PRESOS CONDENADOS. ALEGADA OMISSÃO DO ESTADO. DECISÃO DE TUTELA PROVISÓRIA PELA QUAL SE DETERMINOU A REMOÇÃO IMEDIATA DOS PRESOS DA CADEIA PÚBLICA COM CONDENAÇÃO JÁ DEFINIDA. INSURGÊNCIA RECURSAL DO ESTADO. ALEGADA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. ACOLHIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE O PODER JUDICIÁRIO SE IMISCUIR NOS ASSUNTOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, MÁXIME QUANDO HÁ PROVIDÊNCIAS SENDO TOMADAS CONCRETAMENTE POR MEIO DA CENTRAL DE VAGAS. AUSÊNCIA DE OMISSÃO ESPECÍFICA A JUSTIFICAR INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRECEDENTES DESTA CÂMARA EM CASOS ANÁLOGOS. DETERMINAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA DE PRESOS DE UM LOCAL A OUTRO QUE NÃO SOLUCIONA O PROBLEMA. QUESTÃO AMPLA QUE DEMANDA INVESTIMENTOS A MÉDIO E LONGO PRAZO PARA SER SOLUCIONADA. SITUAÇÃO DO GESTOR PÚBLICO QUE ENCONTRA AMPARO NOS ARTIGOS 20 E 22 DA LINDB. DECISÃO AGRAVADA REFORMADA. RECURSO PROVIDO.[36]

O juiz relator, em seu voto, salientou precedente da mesma Corte, com o seguinte excerto:

Ainda, cabe mencionar que a LINDB (arts. 20 e 22) exige que o juiz considere as consequências práticas de suas decisões quando referentes às políticas públicas, e no caso não constou da decisão recorrida para onde devem os presos ser removidos. Em outras palavras, transferir presos de um lugar para outro apenas transfere o mesmo problema, não o soluciona, vez que a defasagem de vagas no sistema prisional é uma questão muito mais ampla, e que demandará investimentos a médio e longo prazo para ser solucionada. O juiz da execução penal deverá diligenciar junto à Central de Vagas para obter uma solução ao menos parcial para a cadeia pública local[37].

O Tribunal de Justiça do Paraná também aplicou o art. 22, §1º da LINDB no julgamento do Governador do Estado e do Secretário de Segurança Pública pelas ações conhecidas pela “Operação Centro Cívico”, que envolveu protestos de professores com ampla cobertura jornalística. O Resultado do julgamento por improbidade administrativa foi assim verificado:

ANÁLISE DA PETIÇÃO INICIAL. IMPUTAÇÃO DE ATOS ÍMPROBOS PRATICADOS EM CONTEXTO DE “DESLEALDADE INSTITUCIONAL”, COM FULCRO NOS ARTS. 10 E 11 DA LEI 8.429/1992. O JUIZ SÓ PODE REJEITAR UMA AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SE CABALMENTE CONVENCIDO DA INEXISTÊNCIA DO ATO, DA IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO OU DA INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA (ART. 17, § 8º, DA LEI 8.429/1992). INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS MÍNIMOS DA PRÁTICA DOS ATOS ÍMPROBOS QUE NÃO AUTORIZA O RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL, EM OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, AO NÃO PROSSEGUIMENTO DE LIDES TEMERÁRIAS. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE NÃO PODE SER UTILIZADO PARA VIABILIZAR DEMANDAS INÓCUAS E SEM INDÍCIOS MÍNIMOS DE COMETIMENTO DE ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. IN CASU, AFIGURA-SE QUE OS REQUERIDOS NÃO PRATICARAM QUALQUER ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ADEMAIS, IMPRESCINDÍVEL QUE SE LEVE EM CONSIDERAÇÃO AS CIRCUNSTÂNCIAS PRÁTICAS QUE CONDICIONARAM A AÇÃO POLICIAL, NOS TERMOS DO ART. 22, § 1º, DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO, NA MEDIDA EM QUE O NÚMERO EXCESSIVO DE MANIFESTANTES. SENTENÇA MANTIDA. APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA[38].

Mais uma manifestação do TJPR de aplicação do art. 22, §1º da LINDB:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITA DO MUNICÍPIO DE FAROL/PR. CONTRATAÇÃO DE SERVIDOR PARA EXERCER CARGO EM COMISSÃO DE “CHEFE DE HORTA”, MAS QUE LABOROU EM DESVIO DE FUNÇÃO COMO MOTORISTA DE ÔNIBUS DA PREFEITURA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA POR VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO (ART. 11 DA LEI 8429/92). INSURGÊNCIA RECURSAL DOS RÉUS. ALEGADA NÃO CARACTERIZAÇÃO DE ATO ÍMPROBO. ACOLHIMENTO. DESVIO DE FUNÇÃO OCORRIDO SEM HABITUALIDADE. SERVIDOR REQUERIDO QUE EXERCEU A FUNÇÃO DE MOTORISTA DE FORMA ESPORÁDICA, APENAS PARA COBRIR A FALTA DE OUTROS MOTORISTAS, O QUE SE DEU INCLUSIVE PARA EVITAR PREJUÍZOS AO TRANSPORTE ESCOLAR DO MUNICÍPIO. CONDUTA DA PREFEITA QUE TEM AMPARO NO ARTIGO 22, § 1º, DA LINDB. DOLO OU MÁ-FÉ NÃO DEMONSTRADOS. AÇÃO IMPROCEDENTE. RECURSO PROVIDO[39].

O Tribunal de Justiça de São Paulo também abordou o art. 22 da LINDB:

APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. Locação de piscinas de clube local para realização de aulas de hidroginástica. Transferência subsequente dos encargos de água e energia elétrica do clube para a Prefeitura, em virtude da instalação de aquecedor não prevista em contrato, mas solicitada pelo Poder Público, acarretando aumento de despesas. Ato doloso não configurado. Imperícia do Administrador. Inteligência do art. 22 da LINDB. (TJSP - 5ª Câmara de Direito Público - Apelação Cível nº 1003073-55.2017.8.26.0587 – Relatora Desembargadora HELOÍSA MARTINS MIMESSI)

Tribunal de Justiça de Minas Gerais aplicou o art. 22 da LINDB na assistência a saúde:

EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO - DIREITO À SAÚDE - SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO - DIREITO SOCIAL À SAÚDE PARAMETRIZADO PELA INTEGRALIDADE REGULADA - PEDIDO DE TRATAMENTO ESPECÍFICO - CRITÉRIOS DA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIA - OBSERVÂNCIA DOS PROTOCOLOS CLÍNICOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS - PREVALÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS - TRATAMENTO SOLICITADO POR MÉDICO DO SUS - PRESUNÇÃO DE VALIDADE - IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO OU POSTERGAÇÃO DE TRATAMENTOS - PRAZO RAZOAVEL PARA CUMPRIMENTO DA DETERMINAÇÃO JUDICIAL - INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO E DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO - OBSERVÂNCIA DAS DIFICULDADES PARA CUMPRIMENTO DECISÃO – LINDB[40].

Feita a análise do art. 22 da LINDB, passa-se ao art. 23 do mesmo diploma.

2.4) O ART. 23 DA LINDB E A ALTERAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO

Antes de se verificar a posição jurisprudencial, verificaremos os dispositivos afetos e a instrução da doutrina.

2.4.1) Noções Gerais

O art. 23 da LINDB está assim editado:

Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

O Decreto nº 9830/2019 regulamento o dispositivo supra da seguinte maneira:

Art. 6º A decisão administrativa que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado e impuser novo dever ou novo condicionamento de direito, preverá regime de transição, quando indispensável para que o novo dever ou o novo condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

§ 1º  A instituição do regime de transição será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º.

§ 2º  A motivação considerará as condições e o tempo necessário para o cumprimento proporcional, equânime e eficiente do novo dever ou do novo condicionamento de direito e os eventuais prejuízos aos interesses gerais.

§ 3º  Considera-se nova interpretação ou nova orientação aquela que altera o entendimento anterior consolidado.

Art. 7º  Quando cabível, o regime de transição preverá:

I - os órgãos e as entidades da administração pública e os terceiros destinatários;

II - as medidas administrativas a serem adotadas para adequação à interpretação ou à nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado; e

III - o prazo e o modo para que o novo dever ou novo condicionamento de direito seja cumprido. 

A lei dispõe sobre a alteração de critérios jurídicos afetos ao cotidiano administrativo, controlador e judicial. Apesar de vincular o dispositivo somente nas hipóteses de normas de conteúdo indeterminado, tal disciplina deve ser ampliada para todas as normas, uma vez que toda a norma possui um maior ou menor conteúdo abstrato que necessita de uma interpretação.

No mesmo sentido, a disposição do art. 23 alcança um amplo espectro no que concerne a “decisão”. Sobre o tema, válida a doutrina de Floriano de Azevedo Marques Neto:

“O artigo fixa o primeiro núcleo de incidência das normas sobre a ‘decisão’, qualquer que seja, havida em uma das esferas. Segue daí o espectro amplo de incidência do art. 23: qualquer decisão exarada no âmbito do poder extroverso estatal que inove a interpretação ou a orientação sobre outra norma de conteúdo indeterminado. Note-se que o artigo não se restringe às decisões havidas no exercício da jurisdição judicial, administrativa ou de contas. Não se restringe a decisões tomadas na dirimição de conflitos. Alcança também atos administrativos de caráter normativo ou integrativo. Assim, por exemplo, uma orientação da Receita Federal acerca do lançamento tributário ou da contabilização de uma receita nos livros da empresa, uma súmula de um Tribunal ou uma resolução de um Conselho de fiscalização. Atentemos primeiro ao núcleo da prescrição: qualquer decisão. Podemos aqui estar diante de um ato administrativo, uma decisão colegiada, um acórdão, uma súmula judicial, uma orientação normativa ou mesmo um entendimento reiterado de agente, órgão ou ente de uma das três esferas. Decisão deve ser entendida como deliberação que produza efeitos jurídicos diretos ou indiretos. Digo indiretos, pois uma orientação ou deliberação reiterada pode ser determinante para um comportamento voluntário do particular ao qual a ordem jurídica confere efeitos jurídicos”[41].

Seguindo a mesma linha dos artigos já comentados, o legislador inova na recomendação de instituição de regime de transição mediante decisão suficientemente fundamentada.

No entanto, muitas vezes, a imposição do novo entendimento a partir da nova decisão não pacifica a segurança jurídica. Assim, a nova legislação concede a possibilidade ao julgador de ampliar o prazo de adequação para o novo entendimento fixado. Convém, adicionalmente, velar pelo contraditório e ampla defesa também para abalizar o período de transição, devendo o julgador ouvir as partes para melhor decidir, inclusive quanto ao regime de transição, podendo conceder também prazo, mediante motivação adequada, para produção de provas quanto aos impactos ulteriores da decisão.

2.4.2) Manifestações jurisprudenciais

O STJ se socorre do art. 23 da LINDB para fixar período de transição para nova orientação adotada pela Corte, citando precedente sob rito dos recursos repetitivos, valendo a transcrição:

1. A Corte Especial do STJ, ao julgar os Recursos Especiais n. 1.696.396/MT e de n. 1.704.520/MT, sob o rito dos recursos repetitivos, firmou a seguinte tese: o rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação. 2. Na ocasião, foi aplicada a modulação dos efeitos da tese jurídica pacificada, com fundamento no art. 23 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB, a fim de prestigiar a segurança jurídica, determinando que esta tese produza efeitos apenas em relação às decisões interlocutórias proferidas após a publicação dos acórdãos que a fixou, não senda esta a hipótese dos autos[42].

Outro acórdão traz alguns nortes para a aplicação do regime de transição, merecendo destaque:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. BANCOS DE DADOS. PROTEÇÃO AO CRÉDITO. PRIVACIDADE E INTIMIDADE. AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. EFICÁCIA HORIZONTAL. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. ANOTAÇÕES. CARTÓRIOS DE PROTESTO. TERMO INICIAL DO PRAZO. ART. 43, § 1º, DO CDC. DATA DO VENCIMENTO DA DÍVIDA. MODULAÇÃO DOS EFEITOS. ART. 927, § 3º, DO CPC/15. PRINCÍPIO. PROTEÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA. REGIME DE TRANSIÇÃO. ART. 23 DA LINDB. ÔNUS E PREJUÍZOS ANORMAIS OU EXCESSIVOS. 1 O propósito dos presentes embargos de declaração é determinar se são necessárias a modulação dos efeitos da condenação contida no acórdão embargado e a adoção de regime de transição para que a embargante se adeque ao comando contido em seu dispositivo (arts. 927, § 3º, do CPC/15 e 23 da LINDB). 2. A modulação de efeitos de decisão que supera orientação jurisprudencial é matéria apreciável de ofício, razão pela qual não configura inovação recursal. 3. O dever dos Tribunais de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente cumpre o propósito de garantir a isonomia de ordem material e a proteção da confiança e da expectativa legítima do jurisdicionado, fornecendo-lhe um modelo seguro de conduta de modo a tornar previsíveis as consequências de seus atos. 4. A força vinculante do precedente, em sentido estrito, bem como da jurisprudência, em sentido substancial, decorre de sua capacidade de servir de diretriz para o julgamento posterior em casos análogos e de, assim, criar nos jurisdicionados a legítima expectativa de que serão seguidos pelo próprio órgão julgador e órgãos hierarquicamente inferiores e, como consequência, sugerir para o cidadão um padrão de conduta a ser seguido com estabilidade. 5. A modulação de efeitos do art. 927, § 3º, do CPC/15 deve ser utilizada com parcimônia, de forma excepcional e em hipóteses específicas, em que o entendimento superado tiver sido efetivamente capaz de gerar uma expectativa legítima de atuação nos jurisdicionados e, ainda, o exigir o interesse social envolvido. 6. O regime de transição do art. 23 da LINDB está em íntima conexão com o princípio da menor onerosidade da regularização, previsto no art. 21, parágrafo único, de referido diploma legal, segundo o qual não se pode impor aos sujeitos atingidos pela modificação de jurisprudência ônus ou perdas anormais ou excessivos[43].

Percebem-se da jurisprudência, as seguintes diretrizes aplicáveis à modulação dos efeitos da decisão, nos termos do art. 23 da LINDB.

A) A modulação dos efeitos como matéria de ofício

A Corte Superior reconhece o dever de ofício da autoridade de apreciação da modulação dos efeitos. Contudo, o art. 10 do CPC deve ser destacado, a saber:

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Assim, a aplicação do regime de transição, mesmo que apreciável de ofício, exige contraditório e da ampla defesa. O fato de não ser considerado inovação recursal, por não influenciar a aplicação do mérito da causa, só implementando seu cumprimento diferido, não ostenta causa suficiente para dispensar o contraditório. Se se almeja segurança jurídica, que ela seja feita da melhor forma, qual seja, com paridade.

B) A modulação dos efeitos e sua aplicação responsável.

O uso indiscriminado da modulação dos efeitos pode gerar efeitos indesejáveis como a instabilidade das decisões, bem como sua falta de efetividade. Deve ser investigado dois elementos de forma cumulativa: a) Se a alteração de entendimento é realmente capaz de prejudicar uma expectativa legítima; e b) o interesse social envolvido assim o exigir.

C) A modulação dos efeitos e a interpretação sistemática com o art. 21, parágrafo único da LINDB.

Para cogitar modulação dos efeitos é necessária a presença das situações previstas no art. 21, parágrafo único da LINDB, quais sejam, ônus ou perdas anormais ou excessivos. Vale dizer: não é qualquer ônus ou perda que admite a utilização da modulação dos efeitos, mas somente aqueles transcendem aos usuais, segundo a realidade do interessado. Portanto, para a fixação da modulação dos efeitos, necessária a motivação nos termos do art. 20 da LINDB.

Oportuna a demonstração de manifestações jurisprudenciais nos tribunais de justiça. No TJSP, o art. 23 da LINDB foi substrato para a análise de compromissos de compra e venda anteriores a tese do STJ sobre a condição de sujeito passivo de IPTU, a saber:

Embargos à Execução Fiscal. IPTU e taxas dos exercícios de 2002 e 2003. Alegação de ilegitimidade passiva, em razão de instrumento particular de venda e compra firmado anos antes do fato gerador dos tributos. Sentença de procedência. Pretensão à reforma. Desacolhimento. Compromisso de compra e venda realizado em 1980, com firma reconhecida. Distinção entre os compromissos de compra e venda comprovadamente firmados antes e depois da publicação dos acórdãos proferidos nos Recursos Especiais Representativos de Controvérsia n. 1.111.202 e 1.110.551. Ponderação fundada nos Princípios da segurança jurídica, da razoabilidade, das exigências do bem comum e da prudência. Inteligência do art. 23 da LINDB. Sentença mantida. Inaplicabilidade das disposições do NCPC aos recursos interpostos antes da sua vigência. Teoria do isolamento dos atos processuais. Recurso não provido[44].

Feita a análise do art. 23, passa-se a discorrer sobre o art. 24 da LINDB.

2.5) O art. 24 da LINDB e a Irretroatividade da Revisão de Situações Consolidadas.

Importante disposição que homenageia a segurança jurídica e a proteção à confiança, será estudada a seguir.

Será retornado ao tema oportunamente, ao analisar a decisão de inaplicabilidade deste artigo ao Direito Tributário esposado pelo CARF.

2.5.1) Noções Gerais

O art. 24 da LINDB possui o seguinte texto:

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. 

O Decreto 9830/2019, ao regulamentar o dispositivo acima, preconiza:

Art. 5º  A decisão que determinar a revisão quanto à validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos cuja produção de efeitos esteja em curso ou que tenha sido concluída levará em consideração as orientações gerais da época.

§ 1º  É vedado declarar inválida situação plenamente constituída devido à mudança posterior de orientação geral.

§ 2º  O disposto no § 1º não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futuros de relação em curso.

§ 3º  Para fins do disposto neste artigo, consideram-se orientações gerais as interpretações e as especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária e as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

§ 4º  A decisão a que se refere o caput será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º. 

Os preceitos assinalados tratam da irretroatividade das decisões que alteram a revisão de critérios jurídicos, tipificados pela lei como “orientações gerais”. Entende-se como orientações gerais pelo Decreto nº 9830/2019 as interpretações e especificações de caráter geral, ou constantes em precedentes pacificados de origem judicial ou administrativa.

Essa matéria, por sua vez, não é nova, uma vez que consta da Lei Geral do Processo Administrativo (Lei nº 9784/1999), que em seu art. 2º, parágrafo único, inciso XIII:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...)

XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Na esfera fiscal e tributária, o art. 146 do CTN também possui disposição nesse sentido:

Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

Trazendo luz à razão de ser do dispositivo do art. 24 da LINDB em sua correlação com o art. 21 do mesmo diploma, Jacintho Arruda Câmara leciona:

“O velho brocardo ‘ato nulo não produz efeitos’ perdeu espaço. Admite-se que a declaração de nulidade de ato administrativo, dependendo do caso, se atingir situação concreta já constituída, para o bem da segurança jurídica e da proteção da confiança do administrado, invalide o ato, mas preserve os efeitos produzidos. Nesta linha dispõe o art. 21 da LINDB, segundo o qual a decisão que decretar a invalidação de ato administrativo precisa ‘indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas’, devendo ainda, quando for o caso, ‘indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos’ (art. 21, parágrafo único).

O dispositivo em comento — o art. 24 da LINDB — segue a mesma diretriz, que busca a preservação das decisões administrativas como meio de assegurar a estabilização de relações jurídicas e assim proteger a segurança jurídica. Nesse ponto a lei cristaliza um verdadeiro vetor para a aferição da validade de atos administrativos em geral. A regra, em suma, impede que seja decretada a invalidade de deliberação administrativa que tenha sido tomada com base na interpretação geral vigente à época da produção do ato. A nova lei determinou que o entendimento sobre a correta interpretação do Direito vigente pode mudar, mas eventual nova leitura não poderá ser usada como referência para anular decisões administrativas já consolidadas”[45].

Assim, em regra, a alteração de orientação geral não terá efeitos retroativos. Excepcionalmente, quando o particular requerer a aplicação retroativa e não houver prejuízo algum à Administração Pública e ao erário, mediante fundamentação nos termos do art. 20 da LINDB, poderá ser deferida a aplicação retroativa da nova orientação como uma medida que atenda a proporcionalidade e a razoabilidade. Outra exceção que pode ser levantada é aquela imposta pelo art. 149, VIII do CTN, mas esta exceção será tratada adiante e oportunamente, quando tratado dos reflexos das alterações no âmbito fiscal.

2.5.2) Manifestações jurisprudenciais.

O STJ, aplicando o art. 24, parágrafo único da LINDB, bem como pela Sumula 343/STF, negou ação rescisória de julgado por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão originária foi proferida quando a interpretação da causa era controvertida nos tribunais. O Acórdão restou assim ementado:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA INTERPOSTA DENTRO DO BIÊNIO LEGAL. REVISÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. ART. 103 DA LEI 8.213/1991. PRAZO DECADENCIAL. INTERPRETAÇÃO CONTROVERTIDA NA ÉPOCA EM QUE PROFERIDA A DECISÃO RESCINDENDA. VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSITIVO DE LEI NÃO CONFIGURADA. É INCABÍVEL AÇÃO RESCISÓRIA BALIZADA NA MODIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DE NORMA FEDERAL. APLICABILIDADE DA SÚMULA 343/STF, RATIFICADA PELO PLENÁRIO DO STF NO JULGAMENTO DO RE 590.809/RS. PEDIDO RESCISÓRIO DO INSS IMPROCEDENTE[46].

O Min. Og Fernandes, em seu Voto-Revisão, estabeleceu a correlação entre a tese do voto do relator e o novel art. 24, parágrafo único da LINDB, dissertando da seguinte forma:

Esses fundamentos, além de alinhados à jurisprudência deste Superior Tribunal e à do Supremo Tribunal Federal, estão em conformidade com o que dispõe o art. 24, parágrafo único, da LINDB, que aqui se transcreve:

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público[47].

O Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou o art. 24 da LINDB nas hipóteses de recebimento de vencimentos por erro da administração por boa-fé do servidor, a saber:

Mandado de segurança. Recebimento de vencimentos por erro da administração. Boafé. Convalidação. Art. 24 da LINDB. Remessa necessária improvida. [48]

O TJSP também fundamentou com o art. 24 da LINDB na hipótese de aplicação retroativa de ato restritivo por comprovação de gasto, em que houve estabilização do vício do ato administrativo. Vale transcrição:

Direito administrativo. Servidores públicos. Vantagem funcional de natureza indenizatória. Auxílio saúde instituído com o Programa de Assistência à Saúde Suplementar da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Resolução ALESP nº 858/08 e Resolução ALESP nº 884/12. Invalidação de pagamentos efetuados sem comprovação da realização de gastos de acordo com as disposições do Ato nº 12/12 da Mesa então vigentes. Aplicação retroativa das disposições do Ato nº 18/13 e do Ato nº 20/14, que passaram a exigir a comprovação dos gastos. Impossibilidade. Hipótese de estabilização do vício do ato administrativo. Boa fé, segurança jurídica e confiança legítima. Situações plenamente constituídas ao abrigo da disposição do art. 24 da LINDB. Ações coletivas ora julgadas procedentes. Recursos providos[49].

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul estabeleceu a correlação do princípio do tempus regit actum e o art. 24 da LINDB em âmbito da execução fiscal, a saber:

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DÍVIDA ATIVA NÃO TRIBUTÁRIA. EXECUÇÃO FISCAL. INCLUSÃO NO PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO FISCAL – REFIS 2018. POSSIBILIDADE. Hipótese em que a parte executada comprovou o preenchimento dos requisitos previstos no art. 2º da Lei Municipal n. 4.423/2018, responsável por instituir o Programa de Recuperação Fiscal no Município de Encantado. Crédito fiscal de origem não tributária, constituído em data anterior a 31 de dezembro de 2017, cujo pedido de inclusão foi formulado diretamente ao juízo em que tramita o feito executivo, durante o período de vigência da lei local. Aplicação do princípio do tempus regit actum. Art. 24 da LINDB. Decisão reformada para autorizar a inclusão do crédito fiscal no Programa REFIS/2018. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO[50].

A Exma. Desembargadora Relatora dissertou em seu voto:

Conforme bem pontuado na petição recursal, o fato de a lei não estar mais em vigor na época em que analisado o pedido não afasta a sua aplicação, tendo em vista a aplicação do princípio do tempus regit actum.

A respeito do tema, dispõe o art. 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/42):

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018).

A execução fiscal, por outro lado, tem como finalidade a satisfação de crédito constituído pela Fazenda Pública e a parte executada está disposta a adimplir com a dívida nas condições previstas na legislação municipal vigente à época do requerimento. Não pode agora, transcorrido pouco mais de um ano, o ente público furtar-se de cumprir legislação mais benéfica ao contribuinte promulgada por ele mesmo, com o intuito de regularizar a situação fiscal de seus devedores. Aliás, o transcurso desse lapso temporal apenas ocorreu por culpa da própria parte exequente que não se manifestou, quando intimada, acerca do pedido formulado pela executada e também pela morosidade do próprio Poder Judiciário que postergou a definição acerca de qual legislação a ser aplicável para o parcelamento do crédito fiscal.

O mesmo tribunal gaúcho decidiu pela inaplicabilidade do art. 24 da LINDB para afastar o direito adquirido e ato jurídico perfeito para as designações precárias em serventias extrajudiciais, a saber:

MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIONATO DE NOTAS DE FORMIGUEIRO. REMOÇÃO DA TABELIÃ TITULAR. DESIGNAÇÃO DE SUBSTITUTO. REVOGAÇÃO – PORTARIA Nº 01/2019. CÕNJUGE. NEPOTISMO. VEDAÇÃO - ART. 2º, §2º, DO PROVIMENTO Nº 77/2018 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ - OFÍCIO CIRCULAR Nº 116/2018 DA CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA- CGJ. VIOLAÇÃO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADA. Especialmente em razão da índole precária da substituição, bem como da remoção da Tabeliã titular substituída para outra serventia, indicada a conveniência e oportunidade da Administração na revogação da substituição aqui reclamada, até para evitar precedente de várias substituições através de parentes. De outra parte, afastada a hipótese de nulidade do ato administrativo - Portaria 01/2019 -, e, por consequência, a incidência do art. 54 da Lei nº 9.784/1999 - Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal – bem como do art. 24 da LINDB, em que pese a natureza de delegação do serviço público e a atuação do impetrante como substituto há mais de nove anos, tendo em vista incontroverso o parentesco – cônjuge - com a Tabeliã titular removida, e a vedação do nepotismo nos serviços públicos extrajudiciais, em cumprimento ao art. 2º, §2º, do Provimento nº 77 do CNJ, e ao Ofício Circular nº 116/2018 da CGJ. Jurisprudência do e. STF e c. STJ. Denegação da segurança[51].

O Exmo. Desembargador Relator, em seu voto, posicionou-se da seguinte forma:

Ocorre que havendo parentesco até terceiro grau do substituto mais antigo com o titular da serventia, não é viável tal designação, por manifesta afronta às normativas supracitadas, além do disposto no enunciado n.º 13 da Súmula Vinculante do STF. Ainda, a designação de interino para assumir serventia enquanto aguarda nomeação de concursado é ato precário, de sorte que não há falar em direito adquirido ou ato jurídico perfeito conforme pretende o impetrante, de modo que inaplicável o art. 24 da LINDB (Decreto-Lei n.º 4657/42), bem como da ocorrência de decadência, por não se tratar de situação consolidada.

Por fim, no TJMG, o art. 24 da LINDB foi utilizado para interpretar a prevenção em sucessão normativa, a saber:

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE DESEMBARGADORES - DISTRIBUIÇÃO SUCESSIVA DE RECURSOS NA MESMA CÂMARA PARA DESEMBARGADOR DISTINTO, EM RAZÃO DE VACÂNCIA, POR APOSENTADORIA DO ANTERIOR RELATOR - ARTIGO 79, §9º, DO RITJMG - VIGÊNCIA POSTERIOR - INAPLICABILIDADE - PREVENÇÃO DO SUCESSOR DO JULGADOR QUE RECEBEU O PRIMEIRO RECURSO - ATUAÇÃO TEMPORÁRIA DE OUTRO RELATOR - FATO QUE NÃO DESLOCA A COMPETÊNCIA PREVENTA - INCIDENTE ACOLHIDO

- Havendo várias distribuições, em momentos diferentes, deve-se considerar a legislação aplicável a cada ato (art. 24 da LINDB e art. 14 do CPC).

- A distribuição de recurso ocorrida antes da publicação da Emenda Regimental n° 6, de 2016, que inseriu o §9º ao 79 do RITJMG, atrai exegese presente naquele tempo, obtida da conjugação dos parágrafos 3º, 7º e §8º do mesmo dispositivo, para concluir-se que a livre distribuição ocorrida durante a vacância de cargo por aposentadoria é apenas temporária, de modo que, para os recursos posteriores, fica prevento o sucessor do Desembargador que recebeu a primeira distribuição válida[52].

Analisado o art. 24, passar-se-á à análise do art. 26 da LINDB.

2.6) O ARTIGO 26 DA LINDB: A INSTITUIÇÃO DO INSTRUMENTO “COMPROMISSO”.

O novo instrumento do compromisso será tratado primeiramente em suas noções gerais e, após, como tal instrumento está sendo tratado pela jurisprudência.

2.6.1) Noções gerais.

O art. 26 da LINDB possui o seguinte texto:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

§ 1º  O compromisso referido no caput deste artigo:

I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II – (VETADO;

III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

§ 2º  (VETADO).

O Decreto nº 9830/2019 ao regulamentar o artigo encimado, preconiza:

Art. 10.  Na hipótese de a autoridade entender conveniente para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público, poderá celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável e as seguintes condições:

I - após oitiva do órgão jurídico;

II - após realização de consulta pública, caso seja cabível; e

III - presença de razões de relevante interesse geral.

§ 1º  A decisão de celebrar o compromisso a que se refere o caput será motivada na forma do disposto no art. 2º.

§ 2º  O compromisso:

I - buscará solução proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecido por orientação geral; e

III - preverá:

a) as obrigações das partes;

b) o prazo e o modo para seu cumprimento;

c) a forma de fiscalização quanto a sua observância;

d) os fundamentos de fato e de direito;

e) a sua eficácia de título executivo extrajudicial; e

f) as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

§ 3º  O compromisso firmado somente produzirá efeitos a partir de sua publicação.

§ 4º  O processo que subsidiar a decisão de celebrar o compromisso será instruído com:

I - o parecer técnico conclusivo do órgão competente sobre a viabilidade técnica, operacional e, quando for o caso, sobre as obrigações orçamentário-financeiras a serem assumidas;

II - o parecer conclusivo do órgão jurídico sobre a viabilidade jurídica do compromisso, que conterá a análise da minuta proposta;

III - a minuta do compromisso, que conterá as alterações decorrentes das análises técnica e jurídica previstas nos incisos I e II; e

IV - a cópia de outros documentos que possam auxiliar na decisão de celebrar o compromisso.

§ 5º  Na hipótese de o compromisso depender de autorização do Advogado-Geral da União e de Ministro de Estado, nos termos do disposto no § 4º do art. 1º ou no art. 4º-A da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, ou ser firmado pela Advocacia-Geral da União, o processo de que trata o § 3º será acompanhado de manifestação de interesse da autoridade máxima do órgão ou da entidade da administração pública na celebração do compromisso.

§ 6º  Na hipótese de que trata o § 5º, a decisão final quanto à celebração do compromisso será do Advogado-Geral da União, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 4º-A da Lei nº 9.469, de 1997. 

Termo de ajustamento de gestão

Art. 11.  Poderá ser celebrado termo de ajustamento de gestão entre os agentes públicos e os órgãos de controle interno da administração pública com a finalidade de corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e garantir o atendimento do interesse geral.

§ 1º  A decisão de celebrar o termo de ajustamento de gestão será motivada na forma do disposto no art. 2º.

§ 2º  Não será celebrado termo de ajustamento de gestão na hipótese de ocorrência de dano ao erário praticado por agentes públicos que agirem com dolo ou erro grosseiro.

§ 3º  A assinatura de termo de ajustamento de gestão será comunicada ao órgão central do sistema de controle interno. 

A doutrina define o compromisso da seguinte forma:

“O compromisso previsto no art. 26 da LINDB consiste em autêntico acordo administrativo, o que pressupõe a negociação do exercício de determinada prerrogativa pública pelo Poder Público com o particular e a celebração por acordo de vontades no âmbito de um processo administrativo. A respeito da polêmica em torno da natureza do acordo administrativo – se ato administrativo bilateral, contrato administrativo ou acordo administrativo per se – a LINDB parece ter tentado suplantar essa questão por meio da disciplina regulamentar suficiente, que afastaria a necessidade de aplicação subsidiária de normas outras que não as processuais administrativas”[53].

O instrumento criado pelo art. 26 supra, o Compromisso, assemelha-se com o Termo de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, §6º da Lei nº 7.347/1985 (“§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”). Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Compromisso surgiu como uma alternativa para a pura e simples declaração de nulidade ou indeferimento do pedido que, apesar de haver prescrição legal, no caso concreto mostra-se desproporcional e desarrazoado.

O Decreto nº 9.830/2019 estabeleceu a previsão compulsória de que o compromisso seja um título executivo extrajudicial. Assim, o regulamento corrigiu uma injustificável omissão da lei, qual seja, a concessão de executoriedade ao compromisso. Assim, estabeleceu uma interpretação sistemática entre o art. 26 da LINDB e o Art. 5º, §6º da Lei nº 7.347/1985, louvável a integração hermenêutica operada pelo Decreto analisado.

O Decreto nº 9830/2019 também previu o termo de ajustamento de gestão a ser celebrado entre os agentes públicos e os órgãos de controle interno. Esta disposição deve ser interpretada com cautela para não suprimir a competência dos órgãos de controle externo quanto a análise da conduta do servidor e a real configuração do dolo ou erro grosseiro.

Um exemplo de possibilidade de utilização de Compromisso reside na hipótese em que a Instituição sem fins lucrativos é reconhecidamente idônea, mas não possui demonstrações contábeis, ou as possui de maneira incorreta. A não declaração de imunidade pela ausência de contabilidade formal, ou mesmo quando é incompleta ou falha, é desarrazoada, sendo preferível a assinatura do compromisso com as especificações e apontamentos necessários.

Tanto a lei quanto o decreto estabelecem requisitos materiais e procedimentais mínimos para que seja firmado o compromisso, mas nada impede que sejam inseridas mais disposições adequadas ao caso concreto. Como no exemplo da imunidade apresentado, a vinculação da entidade às normas contidas na ITG 2002, do Conselho Federal de Contabilidade pode ser inserido no Compromisso, apesar de não previsto tal exigência na lei ou no decreto.

2.6.2) Da Inconstitucionalidade e exorbitação do poder regulamentar do art. 11 do Decreto nº 9830/2019.

Primeiramente será feita uma abordagem geral do tema, com a exposição dos dispositivos do art. 11 Decreto nº 9830/2019.

2.6.2.1) Noções gerais

O Decreto nº 9830/2019 em seu art. 11 previu o “Termo de Ajustamento de Gestão”, da seguinte forma:

Art. 11.  Poderá ser celebrado termo de ajustamento de gestão entre os agentes públicos e os órgãos de controle interno da administração pública com a finalidade de corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e garantir o atendimento do interesse geral.

§ 1º  A decisão de celebrar o termo de ajustamento de gestão será motivada na forma do disposto no art. 2º.

§ 2º  Não será celebrado termo de ajustamento de gestão na hipótese de ocorrência de dano ao erário praticado por agentes públicos que agirem com dolo ou erro grosseiro.

§ 3º  A assinatura de termo de ajustamento de gestão será comunicada ao órgão central do sistema de controle interno. 

Este dispositivo “criou” um instrumento a ser firmado entre agentes públicos e órgãos de controle interno para corrigir falhas, aprimorar procedimentos e assegurar a continuidade da execução do objeto.

A tônica do regulamento foi a seguinte: há uma ilegalidade e a administração, interna corporis, irá “por panos quentes” para que os órgãos de controle externo e o próprio Poder Judiciário estejam limitados por um instrumento de direito público para promover a responsabilização, caso seja necessário.

Assim, a própria administração faz a análise da “inexistência” de dolo ou erro grosseiro, firma o instrumento e comunica o órgão central do sistema de controle “interno”. Destaca-se que tal instrumento não passará pelo crivo nem do Tribunal de Contas e muito menos pelo crivo do Ministério Público.

Feitas as abordagens gerais, será feita a exposição da exorbitação do poder regulamentar.

2.6.2.2) Da inconstitucionalidade e da exorbitação do poder regulamentar.

O dispositivo do art. 26 da LINDB, inserida pela Lei nº 13655/2018 teve o inegável intuito de criar um instrumento em que o particular transacionasse com o Poder Público para por fim a um litígio e não um instrumento em que gestores públicos transacionassem entre si. A simples leitura do seu caput denuncia a exorbitação do regulamento:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

Qual a razão desse Termo de Ajustamento de Gestão? O mesmo Decreto previu, em seu artigo 22, as orientações normativas que fornecem aos órgãos centrais de sistema as mesmas possibilidades do Termo mencionado, sem a questionável possibilidade de quebra do princípio da impessoalidade. E mais: se realmente não há dolo ou erro grosseiro, o instrumento criado pelo decreto é inócuo, pois o problema é unicamente procedimental, envolvendo a administração, no todo ou em parte, e não somente o agente público isoladamente, mais um argumento que coaduna com a hipótese das orientações normativas.

Assim, exorbitou o Decreto nº 9830/2019 em sua atividade constitucional de regulamentar, afrontando os arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV, todos da Constituição Federal.

Passar-se-á a demonstração das manifestações jurisprudenciais sobre a exorbitação do poder regulamentar, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para melhor comodidade do leitor.

2.6.2.3) Manifestações jurisprudenciais sobre a exorbitação do poder regulamentar.

A jurisprudência do STJ é rica ao delinear a exorbitação do poder regulamentar. O acórdão a seguir, da lavra do então ministro do STJ, hoje do STF, Luiz Fux, traça o arcabouço constitucional e doutrinário sobre o tema a saber:

“ADMINISTRATIVO. IMPORTAÇÃO DE BEBIDAS ALCÓOLICAS. PORTARIA Nº 113/99, DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO. IMPOSIÇÃO DE OBRIGAÇÃO NÃO PREVISTA EM LEI. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. O ato administrativo, no Estado Democrático de Direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV), o que equivale assentar que a Administração só pode atuar de acordo com o que a lei determina. Desta sorte, ao expedir um ato que tem por finalidade regulamentar a lei (decreto, regulamento, instrução, portaria, etc.), não pode a Administração inovar na ordem jurídica, impondo obrigações ou limitações a direitos de terceiros.

2. Consoante a melhor doutrina, ‘é livre de qualquer dúvida ou entredúvida que, entre nós, por força dos arts. 5, II, 84, IV, e 37 da Constituição, só por lei se regula  liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma se impõem à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos.’ (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros Editores, 2002, págs. 306/331)”[54].

Outros acórdãos mais recentes mantém viva a orientação juripsrudencial

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que "(...) às portarias, regulamentos, decretos e instruções normativas não é dado inovar a ordem jurídica, mas apenas conferir executoriedade às leis, nos estritos limites estabelecidos por elas" (REsp 872.169/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe 13/5/2009)”[55].

“O decreto, expedido com finalidade de regulamentar a lei, não pode inovar na ordem jurídica, dispondo de modo contrário ao que determina a norma que lhe é hierarquicamente superior”[56].

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IPVA. ISENÇÃO. ARTIGO 1º, DO DECRETO ESTADUAL 9.918/2000. RESTRIÇÃO AOS VEÍCULOS ADQUIRIDOS DE REVENDEDORES LOCALIZADOS NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL. EXORBITÂNCIA DOS LIMITES IMPOSTOS PELA LEI ESTADUAL 1.810/97. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE ESTRITA. INOBSERVÂNCIA. AFASTAMENTO DE ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO POR ÓRGÃO FRACIONÁRIO DO TRIBUNAL. POSSIBILIDADE. SÚMULA VINCULANTE 10/STF. OBSERVÂNCIA. [57]

Portanto, o decreto que inovam a ordem jurídica e não se limitam a dar executoriedade à lei que visam regular, padecem de inconstitucionalidade sob os termos dos arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV, todos da Constituição Federal.

2.6.3) O Compromisso como permissivo genérico de transação pelo Poder Público

Traduz-se do art. 26 da LINDB um permissivo geral para a possibilidade de transação pelo Poder Público, possibilidade esta bem restrita anteriormente em face da rigidez do indisponibilidade do interesse público.

Conforme a doutrina de Hely Lopes Meirelles, o princípio da indisponibilidade, corolário do princípio da supremacia do interesse público, impõe somente ao Estado, mediante lei, a possibilidade de disponibilidade ou renúncia afetados pelo interesse geral, a saber:

“Dele decorre o princípio da indisponibilidade do interesse público, segundo o qual a Administração Pública não pode dispor desse interesse geral, da coletividade, nem renunciar a poderes que a lei lhe deu para tal tutela, mesmo porque ela não é titular do interesse público, cujo titular é o Estado, como representante da coletividade, e, por isso, só ela, pelos seus representantes eleitos, mediante lei, poderá autorizar a disponibilidade ou a renúncia”.[58]

Assim, o art. 26 da LINDB, inserido pela Lei nº 13655/2018, ingressou no ordenamento jurídico para conceder ao agente público, nos limites de sua competência legal, a possibilidade de firmar compromissos.

A doutrina de Sérgio Guerra, Juliana Bonacorsi De Palma, dissertam especificamente sob o tema, merecendo transcrição:

“O grande mérito do compromisso previsto no art. 26 da LINDB é superar a dúvida jurídica sobre o permissivo genérico para a Administração Pública transacionar. De modo claro e contundente, a autoridade administrativa poderá firmar compromisso, ou seja, celebrar acordos. Para tanto, a LINDB criou uma nova espécie de acordo — o compromisso do seu art. 26 — e trouxe o mínimo regulamentar dessa figura, com os requisitos de validade imprescindíveis à efetividade e à garantia dos interesses gerais”[59].

No entanto, esse permissivo genérico sofre limitações, quais sejam: ou quando a lei expressamente vedar a transação, como na hipótese da Lei de Improbidade Administrativa, conforme o art. 17, §1º da Lei 8429/1992, ou na hipótese do art. 171 do Código Tributário Nacional. Sobre este último tema, será retornada a sua discussão oportunamente. Sobre a questão da vedação oposta pela Lei de improbidade, a seguir será transcrita a jurisprudência do STJ que aborda a questão.

2.6.2) Manifestação jurisprudencial.

O Superior Tribunal de Justiça não reconheceu a aplicabilidade do compromisso para compensação da conduta ímproba, sob o argumento de que vige o princípio da especialidade, com prevalência da Lei de Improbidade, que veda a transação, acordo ou conciliação. O Acórdão foi assim ementado:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SUSPENSÃO DO FEITO PARA QUE SEJAM BUSCADOS MEIOS DE COMPENSAÇÃO DA CONDUTA ÍMPROBA, À LUZ DA LEI 13.655/2018. IMPOSSIBILIDADE. PREVALÊNCIA DA REGRA ESPECIAL CONTIDA NO ART. 17, § 1º, DA LIA. LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL. AUMENTO DE DESPESAS COM PESSOAL. ATO ÍMPROBO CARACTERIZADO. SÚMULA 7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO[60].

No seu voto, o Ministro Relator assim deliberou:

No caso concreto, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, em seu art. 26, caput, introduzido pela Lei 13.655, de 25/04/2018, autoriza que a autoridade administrativa possa, preenchidos determinados requisitos, celebrar compromissos com os interessados a fim de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. Confira-se:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

Ocorre que, em se tratando de irregularidade caracterizadora de ato de improbidade administrativa, deve prevalecer a norma especial prevista no art. 17, § 1º, da Lei 8.429/1992, que expressamente veda a possibilidade de transação, acordo ou conciliação[61].

Passaremos agora para o art. 27 da LINDB.

2.7) ART. 27 DA LINDB: O REGIME DA COMPENSAÇÃO.

O art. 27 da LINDB apresenta a seguinte redação:

Art. 27.  A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos.

§ 1º  A decisão sobre a compensação será motivada, ouvidas previamente as partes sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor.

§ 2º  Para prevenir ou regular a compensação, poderá ser celebrado compromisso processual entre os envolvidos. 

O Decreto nº 9830/2019 regulamentou o dispositivo supra da seguinte forma:

Art. 9º  A decisão do processo administrativo poderá impor diretamente à pessoa obrigada compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos, com a finalidade de evitar procedimentos contenciosos de ressarcimento de danos.

§ 1º  A decisão do processo administrativo é de competência da autoridade pública, que poderá exigir compensação por benefícios indevidamente fruídos pelo particular ou por prejuízos resultantes do processo ou da conduta do particular.

§ 2º  A compensação prevista no caput será motivada na forma do disposto nos art. 2º, art. 3º ou art. 4º e será precedida de manifestação das partes obrigadas sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor.

§ 3º  A compensação poderá ser efetivada por meio do compromisso com os interessados a que se refere o art. 10. 

O estatuído pelo art. 27 da LINDB é mera autorização para decidir sobre compensação de benefícios inoficiosos auferidos por particular ou quando este sofreu prejuízos anormais. Esta compensação pode constar na própria decisão de mérito, em decisão autônoma ou no compromisso previsto no art. 26 e já estudado.

A doutrina Carlos Ari Sundfeld e Alice Voronoff leciona sobre a compensação, em sua correlação com o CPC, quanto ao dano processual (arts. 79 a 81), e quanto a cláusula geral de reparação do dano inscrita no art. 927, parágrafo único do Código Civil (responsabilidade objetiva por atividades de risco inerente), da seguinte forma:

“O novo art. 27 da Lei de Introdução se inspirou na lógica intrínseca a essas regras do Código de Processo Civil para determinar que as decisões de processos poderão impor compensações. Mas foi além, amparado no princípio geral do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

Disse em seu caput, o núcleo da novidade normativa, que “a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”.

Ou seja: com o direito material concretizado, podem ser reexaminados os atos e fatos processuais para se identificar a eventual ocorrência de efeitos negativos ou positivos gerados para os envolvidos, que se relem injustos ou dissociados do direito material concretizado (os custos do processo e as externalidades processuais). É esta a lógica que autorizou o caput do art. 27 a prever que a própria decisão do processo resolva a questão sobre as compensações devidas, agora em função de atos e fatos do processo”[62].

No §1º do art. 9º do Decreto nº 9830/2019 estatui a competência para firmar o compromisso é da “autoridade pública”. Percebe-se um critério geral de competência, portanto a autoridade imbuída no risco de propiciar dano seria igualmente competente para estabelecer sua compensação? Não creio que essa seja a solução mais acertada, uma vez que, e esta posição também é válida para o compromisso previsto no art. 26, depende da competência legal da autoridade pública. Exemplifica-se: conforme a distribuição de competências de determinado órgão, um diretor possui competência para decidir contenciosos administrativos, mas não possui o status de ordenador de despesas, ou até mesmo para firmar compromissos obrigando o órgão em questão. Assim, apesar de haver, na atuação desse diretor, um risco inerente de dano, ele próprio não ostenta competência legal para proceder, por si, a compensação ou o compromisso. Portanto, caso haja hipótese de compensação ou de compromisso, sobrestar-se-á o processo e encaminhar-se-á à autoridade competente para análise e, caso seja oportuno e razoável, firmam-se os instrumentos. Caso a autoridade competente para decidir também ostentar competência para firmar compromissos obrigando o órgão e seja ordenador de despesa, ele mesmo o procede.

A disposição prevista no §2º do art. 9º do decreto nº 9830/2019 deve se circunscrever às decisões autônomas de compensação, ou seja, o objeto do processo a que se submeterá a decisão é a própria compensação. Se o benefício indevido for apurado em razão da análise de mérito de objeto diverso, a abertura de novo contraditório será desnecessária, uma vez que houve oportunidade anterior para a oportuna manifestação. Também será desnecessário o contraditório quando a compensação decorrer de Compromisso firmado, pois estará sob o albergue da autonomia privada (art. 27, §3º).

Discorrido, passaremos ao artigo 28 da LINDB.

2.8) O art. 28 da LINDB, a Vedação à Criminalização da Hermenêutica e a Derrogação dos Tipos Culposos (art. 312, §2º do Código Penal e art. 10 da Lei nº 8429/1992 – LIA).

Apesar de uma primeira análise demonstrar ser um dispositivo simples, o art. 28 da LINDB envolvem questões muito delicadas, que dependem de uma séria discussão.

2.8.1) Noções gerais: vedação a criminalização da hermenêutica.

O Art. 28 da LINDB apresenta a seguinte redação

Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

O Decreto nº 9830/2019, ao regulamentar o dispositivo apontado, disciplinou:

Art. 12.  O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

§ 1º  Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

§ 2º  Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.

§ 3º  O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.

§ 4º  A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público.

§ 5º  O montante do dano ao erário, ainda que expressivo, não poderá, por si só, ser elemento para caracterizar o erro grosseiro ou o dolo.

§ 6º  A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.

§ 7º  No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.

§ 8º  O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais. 

Art. 13.  A análise da regularidade da decisão não poderá substituir a atribuição do agente público, dos órgãos ou das entidades da administração pública no exercício de suas atribuições e competências, inclusive quanto à definição de políticas públicas.

§ 1º  A atuação de órgãos de controle privilegiará ações de prevenção antes de processos sancionadores.

§ 2º  A eventual estimativa de prejuízo causado ao erário não poderá ser considerada isolada e exclusivamente como motivação para se concluir pela irregularidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos. 

Art. 14.  No âmbito do Poder Executivo federal, o direito de regresso previsto no § 6º do art. 37 da Constituição somente será exercido na hipótese de o agente público ter agido com dolo ou erro grosseiro em suas decisões ou opiniões técnicas, nos termos do disposto no art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, e com observância aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.

Art. 15.  O agente público federal que tiver que se defender, judicial ou extrajudicialmente, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas atribuições institucionais, poderá solicitar à Advocacia-Geral da União que avalie a verossimilhança de suas alegações e a consequente possibilidade de realizar sua defesa, nos termos do disposto no art. 22 da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995, e nas demais normas de regência. 

Art. 16.  A decisão que impuser sanção ao agente público considerará:

I - a natureza e a gravidade da infração cometida;

II - os danos que dela provierem para a administração pública;

III - as circunstâncias agravantes ou atenuantes;

IV - os antecedentes do agente;

V - o nexo de causalidade; e

VI - a culpabilidade do agente.

§ 1º  A motivação da decisão a que se refere o caput observará o disposto neste Decreto.

§ 2º  As sanções aplicadas ao agente público serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Art. 17.  O disposto no art. 12 não afasta a possibilidade de aplicação de sanções previstas em normas disciplinares, inclusive nos casos de ação ou de omissão culposas de natureza leve. 

A primeira grande questão a ser levantada é a seguinte: em razão do disposto no art. 28 da LINDB, existe a possibilidade de se configurar o odioso e antijurídico “crime de hermenêutica”?

Os crimes de hermenêutica foram objeto da célebre obra do memorável Rui Barbosa, “Posse dos Direitos Pessoais. O Júri e a Independência da Magistratura”, valendo texto a seguir:

“A resistência do juiz da comarca do Rio Grande a essa transmutação do júri numa degenerescência indigna de tal nome surpreendeu a política daquele Estado com o imprevisto de uma força viva e independente, a consciência da magistratura, difícil de submeter-se à prepotência dos governos. Com a necessidade então de acudir a obstáculo tão inesperado, improvisou-se, por ato de interpretação, nos tribunais locais, contra a magistratura, um princípio de morte, de eliminação moral, correspondente ao que, por ato legislativo, se forjara, contra o júri, no gabinete do governador. O júri perdera absolutamente a sua independência, com o escrutínio descoberto e a abolição da recusa peremptória: o poder não abrira só um postigo sobre a consciência do jurado: aquartelara-se nela. Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos.

Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juizes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo”[63].

A jurisprudência do STJ já se posicionou sobre a questão, citando Rui Barbosa, a saber:

A Corte Especial decidiu que: "Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo." (Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, Tomo III, pág. 228) (...) 5.Outrossim, cediço na Corte Especial que "O magistrado não pode ser censurado penalmente pela prática de atos jurisdicionais "(Apn 411/SP, Rel.Min. Peçanha Martins, DJ de 24/04/2006). 6.Pedido de arquivamento deferido. [64]

Em decisão mais recente o E. STJ se posicionou:

Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in judicando e in procedendo, razão por que, para a configuração do delito de abuso de autoridade há necessidade da demonstração de um mínimo de "má-fé" e de "maldade" por parte do julgador, que  proferiu a decisão com a evidente intenção de causar dano à pessoa[65].

Essa posição já é tradicional na jurisprudência, a conferir:

“Nos abusos de autoridade, o elemento subjetivo do injusto deve ser apreciado com muita perspicácia, merecendo punição somente as condutas daqueles que, não visando a defesa social, agem por capricho, vingança ou maldade, com o consciente propósito de praticarem perseguições e injustiças. O que se condena, enfim, é o despotismo, a tirania, a arbitrariedade, o abuso, como indica o nomen juris do crime”[66].

Portanto o dispositivo legal do art. 28 da LINDB deve ser interpretado para não se incidir na “hipérbole do absurdo” defendido por Rui Barbosa, para punir, quer nas esferas administrativa, controladora ou judicial, a conclusão técnica esposada no julgado causada por erro, independente de ser ou não “grosseiro”.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, sob esse enfoque, disserta:

(...) O objetivo evidente da norma é o de impedir que os órgãos de controle responsabilizem os agentes públicos por decisões ou opiniões que sejam aceitáveis e defensáveis diante de divergências doutrinárias ou jurisprudenciais sobre a mesma matéria. A simples divergência de opinião em relação à adotada pelo órgão de controle não pode servir de fundamento para a responsabilização do agente público[67].

Na regulamentação pelo Decreto nº 9830/2019, foi percebida esta questão, restringindo o alcance do art. 28 da LINDB, conforme o art. 12, §6º com o seguinte texto:

§ 6º  A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.

E foi além, interpretou o termo “erro grosseiro” equiparando-o à “culpa grave”, conforme o parágrafo 1º do mesmo art. 12 do Decreto 9830/2019, com a seguinte redação:

§ 1º  Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Percebe-se que o regulamento percebeu a potencial exacerbação do legislador (mesmo que assintomática, até) com a possível configuração do crime de hermenêutica e obrou na tentativa de remediar tal atentado ao ordenamento jurídico.

Diante disso, verificando-se a necessidade de estabelecer uma interpretação consciente da Lei e do Decreto, no sentido de que o art. 28 da LINDB deve ser interpretado em consonância com o §6º do Decreto nº 9830/2019, em todas as esferas da federação, para coibir a punição da autoridade administrativa, controladora ou judicial por mero erro quanto a interpretação da lei, rechaçando a “hipérbole do absurdo” do “crime de hermenêutica”;

2.8.2) O alcance do artigo 28 da LINDB: decisões ou opiniões técnicas.

O art. 28 da LINDB estabelece dois elementos normativos imputáveis ao agente público, quais sejam: 1) decisões e 2) opiniões técnicas.

Conforme a doutrina de Gustavo Binenbojm e André Cyrino, o alcance do termo decisões não está adstrito aos atos decisórios puros, mas também às orientações, valendo transcrição:

“O art. 28 dispõe, em segundo lugar, sobre a responsabilidade pessoal do agente tanto por atos decisórios, quanto por orientações. A abrangência da norma, portanto, vai desde a contribuição do técnico que indica, conforme sua expertise, um rumo a seguir (e.g. parecer de um expert para fins de tombamento de um imóvel, ou o parecer médico para fins de aposentadoria por invalidez junto ao INSS), até a ação concreta que causa transformações na esfera jurídica”[68].

No que concerne às opiniões técnicas, o objeto de alcance da lei é o advogado público, quanto aos pareceres proferidos. Gustavo Binenbojm e André Cyrino, sobre essas opiniões técnicas, dissertam:

“A opinião técnica a que alude o dispositivo compreende a manifestação de advogados públicos no exercício de atividade consultiva. A norma dirige-se ao parecerista e lida com o problema relativo aos limites de sua responsabilização por suas opiniões jurídicas”[69].

Assim, enquanto o entendimento quanto ao alcance da “opinião técnica” é direcionado a um conjunto específico de servidores (advogados públicos), o alcance do termo “decisões” deve ser bem amplo, uma vez que todo e qualquer servidor, no sentido amplo legal, é capaz de acarretar alterações na esfera jurídica, inclusive ocasionar responsabilidade objetiva do Estado, a teor o Art. 37, §6º da Constituição Federal. Portanto, este deve ser o alcance da lei: toda a conduta que possa obrigar a administração perante terceiros deve estar coberta pelo art. 28 da LINDB.

Qualquer interpretação em sentido restritivo ocasionará inconstitucionalidade tendo por parâmetro o princípio da isonomia, uma vez que, os servidores de maior escalão somente responderão por dolo ou erro grosseiro, enquanto os de menor escalão responderão, na prática, objetivativamente, pois não estariam cobertos pelo art. 12, §3º do Decreto nº 9830/2019 (O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público).

Analisanda a disposição do art. 28 da luz a luz do princípio da isonomia questiona-se: uma enfermeira que ministrar um medicamento prescrito pelo médico ao paciente responde por culpa enquanto o médico estará coberto pelo art. 28? O servidor que executa uma obra responde por culpa enquanto o engenheiro que faz o projeto somente responde por dolo ou erro grosseiro? O servidor subalterno que dá cumprimento uma decisão administrativa responde por culpa, enquanto o decisor terá sua responsabilidade restrita? Por óbvio que não! Esta é uma inversão de valores, um atentado a ordem constitucional!

Assim, a melhor interpretação do art. 28 da LINDB é que todos os servidores que atuam pela administração, que se sujeitam a atos de improbidade e que estão sujeitos a ressarcimento ao erário, estão inclusos no seu alcance.

2.8.3) – Do dolo e do “erro grosseiro”

O legislador criou elementos normativos, como os já estudados (decisão e opiniões técnicas) e também criou outros elementos como o dolo e “erro grosseiro”. A lei deve ser interpretada com lógica, uma vez que um decisor somente poderá ser responsabilizado por dolo, sob pena de configuração da criminalização da hermenêutica, situação já tratada no item 2.8.1. A questão do “erro grosseiro” merece um estudo mais aprofundado.

A doutrina oferece vários exemplos de “erro grosseiro”. Primeiramente, destacam-se os exemplos expostos por Maria Sylvia Di Pietro:

O artigo 28 da LINDB contém importante norma sobre responsabilização dos agentes públicos pelas decisões ou opiniões técnicas que emitirem. Trata-se de norma limitadora dirigida aos órgãos de controle: eles somente podem responsabilizar pessoalmente o agente público se a decisão ou opinião técnica for emitida com dolo (intenção de praticar ato ilícito) ou erro grosseiro (que não admite qualquer dúvida sobre a sua ocorrência, como a aplicação de dispositivo legal já revogado ou decisão em afronta a súmula administrativa ou jurisprudencial de amplo conhecimento na esfera administrativa)[70]. (Grifou-se).

Para Gustavo Binenbojm e André Cyrino, são exemplos de “erro grosseiro”:

Será erro grosseiro, e.g., a aplicação de norma jurídica revogada, ou a decisão (e/ou opinião) que ignore a ocorrência de uma prescrição, a despeito de as informações pertinentes constarem do processo administrativo. Também será erro grosseiro o erro que aplique a legislação municipal para fins de um licenciamento federal[71].

O que a doutrina tenta exemplificar como hipóteses de culpa grave, nada mais são do que condutas dirigidas por dolo eventual, vez que pressupõe concordância com o resultado, pois se o agente houvesse repelido sua ocorrência, a reprovabilidade não seria aquela pretendida pelo Decreto nº 9830/2019, qual seja: o manifesto, o evidente e o inescusável.

Confundir dolo eventual com erro grosseiro ou até com culpa grave é uma forma de interpretação rasa. Conforme a doutrina de Guilherme de Souza Nucci entende-se por dolo eventual:

“É a vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrado a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não desejado, mas admitido, unido ao primeiro. Por isso, a lei utiliza o termo ‘assumir o risco de produzi-lo’.

Nesse caso, de situação mais complexa, o agente não quer o segundo resultado diretamente, embora sinta que ele pode se materializar com o seu objetivo, o que lhe é indiferente.[72]”

Luiz Regis Prado estabelece a distinção entre dolo eventual e culpa consciente (culpa grave), a saber:

“No dolo eventual, o agente presta anuência, consente, concorda com o advento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo a renunciar à ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agente afasta ou repele, embora insconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento, e empreende a ação na esperança de que este não venha ocorrer — prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente”[73].

A doutrina de Fernando Capez, citando Nelson Hungria, destaca a fórmula de Frank para o enquadramento do dolo eventual, merecendo amplo destaque:

“Nélson Hungria lembra a fórmula de Frank para explicar o dolo eventual: ‘Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir’”[74].

Assim, para caracterizar o dolo eventual, é necessário que o agente público manifeste concordância com o resultado, preferindo manter-se em seu intuito, assumindo o risco do evento danoso. De acordo com a primeira parte do Decreto nº 9830/2019, o “erro grosseiro” é o “manifesto, evidente e inescusável”, caracterizado por uma ação ou omissão. Assim, conforme a doutrina (principalmente quanto à “fórmula de Frank” exposta por Nelson Hungria, acima citado por Fernando Capez), o agente público tem a consciência da matéria e, mesmo assim, prefere atuar segundo sua própria convicção, seu próprio desígnio, contrariamente às provas apresentadas, à instrução amplamente sabida, ao aplicar uma regra que manifestamente não vigora mais ou que evidentemente não é aplicável à espécie.

Nunca, em momento algum, o legislador quis punir uma conduta culposa (independente de seu grau), pois, se assim o quisesse, teria o escrito. Tentar enxergar palavras não escritas na lei é querer reescrevê-la. Somente após o Decreto nº 9830/2019 que esta possibilidade foi inserida em âmbito normativo e sobre esse desiderato será reservado o item a seguir.

Resumidamente, o legislador pretendeu reprimir o agente público, nas esferas administrativa, controladora e judicial, mediante “erro grosseiro”, quando ele agir como “dono da verdade”, sendo o ordenamento jurídico um detalhe irrelevante, valendo o que o agente público “quer” que seja o “correto”. Um exemplo desta hipótese: o agente público sabe que existe uma súmula vinculante editada pelo STF e, temerariamente, prefere ignora-la e não aplica-la ao caso concreto. O servidor sabe a existência da súmula, de sua aplicabilidade, mas por algum motivo não a aplica. Todo o desenvolvimento causal induz um dolo eventual, uma vez que: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”[75]

Ao revés, configurar-se-ia uma culpa grave quando, mediante uma conduta leviana, um trato minimalista da lei, o agente aplica uma manifestação concreta que finalisticamente não é que realmente o que ele quer. O desfecho, embora previsível, não foi resultante, direta e imediatamente do seu desígnio.

Retornando ao exemplo da não aplicação da súmula vinculante, convém explorá-la para sanar quaisquer modalidades de dúvida quanto ao intuito do legislador. Para tanto vamos abordar vários cenários:

A) Imagine-se a essa mesma hipótese em um processo administrativo, o particular requer um provimento e se socorre em sua fundamentação de uma súmula vinculante, a autoridade administrativa decisora, por sua vez, simplesmente a ignora a existência da súmula e indefere o pedido. Nesta hipótese, está caracterizado do dolo eventual, pela tipificação da “fórmula de Frank”;

B) Noutro enfoque, o particular ingressa com o pedido administrativo, mas não expressa em seu pedido o argumento da súmula vinculante em questão. Apesar de a aplicação da súmula vinculante ser matéria reconhecível de ofício, o art. 28 da LINDB deve ser interpretado em consonância com os arts. 21, parágrafo único e 22, ambos do mesmo diploma legal, uma vez que tal decisão pode ter sido proferida inadvertidamente em razão de inúmeros fatores, dentre as quais a própria falibilidade humana. Assim, esta conduta é atípica em razão da interpretação sistemática da própria LINDB;

C) No mesmo exemplo do item anterior, após intimação da decisão, o particular, em sede de pedido de reconsideração, argui a aplicabilidade da súmula vinculante. Diante da inequívoca ciência pela autoridade, esta insiste em manter a decisão, repelindo o pedido. Diante desta hipótese, está configurada, mais uma vez, o dolo eventual pela aplicação da “fórmula de Frank”;

D) Por fim, diante do pedido do particular, fundado em súmula vinculante, a autoridade administrativa afasta a sua aplicação, mesmo que não seja a melhor tese, mas que suficientemente enfrenta os fatos em razão da legislação, que conclui pela distinção do provimento requerido em face da hipótese de incidência da súmula vinculante. Nesta hipótese, o decisor não poderá ser responsabilizado em razão da atipicidade da “hipérbole do absurdo” caracterizado pela “criminalização da hermenêutica”[76][77][78];

E) Sob outro enfoque, agora envolvendo um pedido de parecer jurídico à advocacia pública de determinado órgão, foi requerido ao parecerista o posicionamento em face da ordem jurídica sobre uma situação genérica, sendo que uma das hipóteses possíveis envolve a incidência de uma súmula vinculante. A não abordagem dessa súmula não pode ser razão de responsabilização do parecerista, uma vez que exigir o esgotamento da ordem jurídica não é medida razoável e proporcional, impondo uma dificuldade real ao agente público (parecerista). Nesta hipótese, o art. 28 da LINDB deve interpretado em consonância com os arts. 21, parágrafo único e art. 22, ambos do mesmo diploma legal, para se considerar atípica a conduta, em face da interpretação sistemática da própria LINDB;

D) Noutra hipótese, o parecerista é instado a se manifestar sobre um caso concreto, sendo que um dos quesitos é a aplicabilidade de determinada súmula vinculante, ou o caso, por suas circunstâncias, não admite outra interpretação senão pela incidência dessa súmula. Nesta hipótese, configurado o dolo eventual em razão da “fórmula de Frank”.

Assim, categoricamente se afirma: o intuito do legislador foi punir o dolo eventual, qualificando-o equivocadamente como “erro grosseiro”.

2.8.4) Da inconstitucionalidade do art. 12, §1º e do Art. 17, ambos do Decreto nº 9830/2019

Quando da edição da Lei nº 13655/2018, ao inserir o artigo 28 à LINDB, restou clara a ausência da responsabilização por infrações culposas, uma vez que qualificou a limitação somente ao dolo e ao “erro grosseiro”.

Como já afirmado no tópico anterior, entende-se por erro grosseiro uma conduta movida por dolo eventual e nunca uma modalidade de culpa strictu sensu. Se assim o fosse, estaria previsto naquele estatuto “dolo ou culpa grave qualificada por erro grosseiro”. Mas não foi assim que ocorreu, a única conclusão lógica e real foi a ausência de responsabilidade nos casos de tipos culposos.

Ocorre que o Decreto nº 9830/2019, em seu artigo 12, §1º definiu erro grosseiro da seguinte forma:

§ 1º  Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

O art. 17 do Decreto em tela foi mais incisivo ao prever a total derrogação do art. 28 da LINDB:

Art. 17.  O disposto no art. 12 não afasta a possibilidade de aplicação de sanções previstas em normas disciplinares, inclusive nos casos de ação ou de omissão culposas de natureza leve.

Assim, o regulamento veio ao ordenamento jurídico simplesmente para negar vigência ao dispositivo legal que pretendeu interpretar, retornando ao status quo, qual seja, a responsabilidade por dolo e culpa, inclusive insistindo na punição disciplinar por culpa leve (leia-se: responsabilização objetiva), com nítido propósito de manter a política do “cabresto”. Desta forma, o Poder Executivo inovou no ordenamento jurídico passando a seguinte mensagem: “Poder Legislativo, vocês erraram em seu múnus legislativo retirando os tipos culposos das infrações funcionais, mas como não me compete a nós revogar ou negar vigência ao dispositivo, vamos regulamentá-lo para obliquamente retirar-lhe a efetividade, no que concerne às hipóteses de culpa strictu sensu”.

E assim o fez, retirou a vigência da derrogação dos tipos culposos funcionais e, mediante efeito repristinatório, restabeleceu a ordem anterior, estabelecendo condições que nada mais são que retóricas para dar um efeito de lisura à retirada de efeito do dispositivo legal mediante decreto. Assim, absurdamente, o Decreto nº 9830/2019 exorbitou seu poder regulamentar, indo além na sua função de interpretação da lei, inovando a ordem jurídica, retirando a eficácia inicial do art. 28 da LINDB.

As manifestações jurisprudências sobre a exorbitação do poder regulamentar já foram expostas no item 2.6.2.3 supra, para onde se remete o leitor.

2.8.5) A derrogação dos tipos culposos nos atos de improbidade e nos crimes funcionais.

Abordada a exorbitação do poder regulamentar conforme o item anterior, passa às derrogações operadas pelo art. 28 da LINDB. Primeiramente, tratar-se-á dos reflexos na Lei de Improbidade (LIA).

2.8.5.1) A derrogação do art. 10 da LIA quanto aos atos de improbidade na modalidade culposa.

A jurisprudência do STJ já se posicionou sobre a inaplicabilidade dos atos de improbidade quando motivado com culpa leve, valendo transcrição:

“Conforme pacífico entendimento jurisprudencial desta Corte Superior, improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, sendo ‘indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou, pelo menos, eivada de culpa grave nas do artigo 10’"[79].

Ocorre que esta posição foi alterada para possibilitar a penalização por ato improbo ao gestor que obrar com tal modalidade de culpa, como observado no acórdão a seguir:

O entendimento do STJ é no sentido de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10[80].

O art. 28 da LINDB veio para sanar essa celeuma, trazendo uma terceira via, com vistas a excluir a tipicidade dos atos de improbidade na modalidade culposa.

A questão referente ao erro é irrelevante para a tipificação do ato de improbidade, independentemente da sua gravidade, até mesmo para fins de ressarcimento ao erário, nos termos do art. 5º da LIA:

Art. 5° Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano.

O próprio STF, no debate quanto a imprescritibidade das ações de ressarcimento oriundas de ato de improbidade, ao restringi-las aos casos de dolo, diante do voto condutor da maioria do Ministro Roberto Barroso, o Ministro Ricardo Levandowski aderiu a posição, sob o argumento do art. 28 da LINDB, valendo a transcrição dos debates:

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Eu acho, Ministro Lewandowski, que o "dolosa" é muito importante até pelo aspecto que o Ministro Gilmar observou que considero relevante[81].

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI -Refletindo sobre o que Vossa Excelência está dizendo, eu estaria inclinado, se vencido, a acompanhar essa tese que me parece um pouco mais consentânea com o direito de defesa. Essa proposição de Vossa Excelência se mostra consentânea com a recente alteração da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro que alterou o art. 28 - que foi alterado pela Lei 13.655, de 2018, portanto, recentemente -, que diz o seguinte: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - É isso.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - Pois então é isto.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Aliás, uma excelente lei, diga-se de passagem, foi uma inovação importante.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - E foi inspirada pelo professor Floriano de Azevedo Marques, que é diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, jovem professor titular de Direito Administrativo. Concordo com Vossa Excelência que em boa hora isto foi introduzido em nosso universo jurídico. Portanto, a proposição de Vossa Excelência, a meu ver, encontra conforto, inclusive, na vontade dos representantes do povo recentemente manifestada no Congresso Nacional.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - É como voto, Presidente[82].

O problema maior que se deparava o gestor público era a possibilidade (quase regra) de que fosse processado por improbidade administrativa por dano ao erário in re ipsa, ou seja, de forma objetiva, sem que houvesse a prova da conduta ilícita do agente.

Inclusive, o STJ possui interpretação pacífica sobre a responsabilização objetiva, nas hipóteses de ilegalidades oriundas de processos licitatórios, como destacado a seguir:

O STJ entende que frustrar a legalidade de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa prejuízo ao erário, ainda que esse prejuízo não possa ser quantificado em termos econômicos, para ressarcimento. Não se pode exigir a inequívoca comprovação do dano econômico causado pela conduta ímproba, pois nessas hipóteses específicas do art. 10, VIII, da Lei de Improbidade Administrativa, o prejuízo é presumido (in re ipsa). Nesse sentido: AgRg no REsp 1.499.706/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 14/3/2017; RMS 54.262/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 13/9/2017; AgRg no REsp 1.512.393/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 27/11/2015[83].

O art. 28 da LINDB veio para solucionar esta incongruência prevista no art. 10 da LIA que previa o tipo culposo, com o seguinte teor:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (...).

O legislador, quando da inserção do art. 28 à LINDB foi cristalino na hipótese de exclusão do elemento culposo.

A razão de ser da lei de improbidade administrativa é punir o improbo, o desonesto, o corrupto, e não o que ensejou um dano ao erário na tentativa de fazer bem sua função, mas cuja escolha dos meios foi infeliz. Ou até quando nem tinha a ciência de que o fato estava ocorrendo, sendo o gestor responsabilizado por culpa in vigilando.

Portanto, não se cogita mais a punição de ato de improbidade por lesão ao erário na modalidade culposa, devido a derrogação promovida pela Lei nº 13.655/2018, ao inserir o art. 28 na LINDB..

2.8.5.2) A derrogação dos tipos culposos penais contra a administração pública: a abolitio criminis do peculato culposo.

Na mesma toada dos atos de improbidade e emprestando os mesmos fundamentos, com a entrada em vigor da Lei 13.655/2018, operou-se a atipicidade dos crimes funcionais culposos. Assim, operou-se a derrogação do crime de peculato culposo, previsto no art. 312, §2º do Código Penal, a saber:

Peculato

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

(...)

Peculato culposo

§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

§ 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta.

Como já dito anteriormente, o novel art. 28 da LINDB excluiu expressamente a responsabilidade de agentes públicos nas hipóteses de culpa strictu sensu, operando-se a descriminalização da modalidade peculato culposo.

Os argumentos para esta derrogação são os seguintes:

A) O servidor não é autor do crime, nem concorreu conscientemente para a sua consumação;

B) A culpa reside unicamente em um “descuido”, sem contribuição volitiva para a consumação do delito por outrem.

Sobre o crime de peculato culposo, deve ser destacada a doutrina de Cesar Roberto Bitencourt, a saber:

Ocorre o peculato culposo quando o funcionário público concorre para que outrem se aproprie, desvie ou subtraia o objeto material da proteção penal, em razão de sua inobservância ao dever objetivo de cuidado necessário (§ 2º). No caso, o funcionário negligente não concorre diretamente no fato (e para o fato) praticado por outrem, mas, com sua desatenção ou descuido, propicia ou oportuniza, involuntariamente, a que outrem pratique um crime doloso, que pode ser de outra natureza. Nesse sentido, procuramos deixar claro que, como se tem reiteradamente afirmado, não há participação dolosa em crime culposo e vice-versa (Grifou-se)[84].

Vale dizer que, apesar de a doutrina penal advogar que o peculato culposo é um crime autônomo, ele nada mais é que uma participação culposa em crime doloso que a semântica legal quis qualificar como crime autônomo, sem amparo na realidade dos fatos, ao arrepio da lógica jurídico-penal. Uma herança causalista em um sistema finalista, portanto.

Assim, ao excluir tipos culposos da responsabilização funcional diante do texto do art. 28 da LINDB, houve a derrogação do crime de peculato culposo, com os reflexos de Direito, inclusive a abolitio criminis.

Na verdade, a nova lei veio a excluir mais uma responsabilidade objetiva imputada ao servidor. Na prática, bastava a comprovação do dano e o nexo de causalidade em razão de uma conduta dolosa de terceiro (pasmem!), que o “descuido” tornava-se implícito. Por exemplo: um policial militar já chegou a ser condenado por peculato culposo, inclusive em segunda instância, porque foi assaltado em sua residência, sendo levado, pelos criminosos, arma e munição da corporação. Assim, além de o policial e sua família ter sofrido a violência do assalto, o servidor foi condenado porque tinha o dever de cuidado? Um absurdo!

Assim, com a Lei nº 13.655/2018 e a introdução do art. 28 na LINDB, houve a derrogação do crime de peculato culposo, extirpando do ordenamento esse tipo penal, que não deixará saudades, aliás.

2.8.6) O ressarcimento ao erário e o direito de regresso previsto no artigo 37, §6º da Constituição Federal.

Diante da problemática identificada no art. 12, §1º do Decreto nº 9830/2019, cingir-se-á o presente tópico para, preliminarmente, identificar a amplitude da inconstitucionalidade que paira sobre seu texto.

2.8.6.1) Da amplitude da inconstitucionalidade do art. 12, §1º do Decreto nº 9830/2019: interpretação conforme a constituição para preservar sua eficácia nas reparações ao erário

No item 2.8.4 supra, dissertou-se sobre a inconstitucionalidade do art. 12 §1º do Decreto nº 9830/2019 uma vez que exorbitou seu poder regulamentar. Contudo, tal inconstitucionalidade deve ser interpretada cum grano salis para possibilitar sua interpretação conforme a constituição para restringir seus efeitos somente às infrações funcionais disciplinares, aos atos de improbidade e aos crimes funcionais, que se orientam pelo regime da reserva legal estrita (arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV, todos da Constituição Federal).

No entanto, não se deve cogitar inconstitucionalidade quando tal regulamento for utilizado para interpretar o art. 28 da LINDB para as hipóteses de ressarcimento ao erário, pois há dispositivo constitucional específico que lhe dê suporte, qual seja, o art. 37, §6º.

Esta conclusão encontra amparo na doutrina de Alexandre de Moraes, que, ao citar JJ Canotilho, ensina:

“A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.

Extremamente importante ressaltar que a interpretação conforme a Constituição somente será possível quando a norma apresentar vários significados, uns compatíveis com as normas constitucionais e outros não, ou, no dizer de Canotilho, ‘a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela’”[85].

Desta forma, mantém-se íntegro o art. 12, §1º do Decreto nº 9830/2019 unicamente para as reparações ao erário, utilizando-se a técnica da interpretação conforme a Constituição. Portanto, os agentes públicos se sujeitarão a reparação do dano ao erário, seja por ato de improbidade ou outra forma de conduta lesiva, inclusive por direito de regresso nas hipóteses de dolo ou culpa grave.

2.8.6.2) O art 28 da LINDB e as reparações ao erário.

Tanto nas hipóteses de ressarcimento ao erário, quanto ao direito de regresso, a influência do art. 28 da LINDB é unívoca, portanto, serão analisadas ambas como uma só.

O art. 37, §6º da Constituição Federal prescreve que:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Na parte final do dispositivo constitucional está previsto o direito de regresso contra o responsável (servidor) nos casos de dolo ou culpa. A melhor interpretação que pode ser dada ao dispositivo constitucional é a que o art. 28 da LINDB deve ser interpretada de acordo com a Constituição, porque a Lei nº 13655/2018 promoveu uma densificação do conceito de culpa, conforme a lúcida posição Gustavo Binenbojm e André Cyrino, valendo transcrição:

“Em segundo lugar, com os olhos no art. 37, §6º, verifica-se que o constituinte adotou um conceito amplo ao se referir à culpa, mas não fechou questão sobre o grau ou intensidade de sua incidência para a configuração da responsabilidade do agente público. Assim, logo à partida, a crítica adota uma versão de maximalismo constitucional incompatível tanto com a letra expressa na Lei Maior, quanto com uma visão aberta e democrática do constitucionalismo. Por evidente, não existe uma interdição constitucional a que o legislador democrático densifique o conceito de culpa ou adote uma certa modalidade ou intensidade para que a responsabilidade reste configurada”[86].

Assim, a interpretação que advoga a inconstitucionalidade do art. 28 da LINDB sob o espeque do art. 37, §6º da Constituição, com a permissão da franqueza, é manifestamente despropositada, míope e sem qualquer amparo na realidade e na hermenêutica básica, uma vez que inexistem direitos fundamentais absolutos, conforme a jurisprudência do STF, a saber:

“Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5.º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa[87]

“Inexistem garantias e direitos absolutos. As razões de relevante interesse público ou as exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades permitem, ainda que excepcionalmente, a restrição de prerrogativas individuais ou coletivas”[88]

“Ademais, não se pode esquecer que não há direitos absolutos, ilimitados e ilimitáveis”[89].

Necessária a exposição da doutrina de Roberto Barroso, a saber:

“O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, termos aqui empregados de modo fungível, não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (...) c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)”[90].

Marcelo Novelino também ensina:

“Por seu turno, o postulado da proporcionalidade exige que a restrição imposta a um determinado direito fundamental seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito”.

“Nesse contexto, o princípio da reserva legal vem sendo gradativamente convertido pela doutrina constitucionalista no princípio da reserva legal proporcional. A legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador dependerá da adequação das medidas adotadas para fomentar os objetivos almejados, da necessidade de sua utilização, assim como da prevalência das vantagens do fim em relação às desvantagens do meio, a serem equacionadas mediante um juízo de ponderação (proporcionalidade em sentido estrito)”[91].

Ives Gandra também deve ser ressaltado:

“No âmbito do direito constitucional, que o acolheu e reforçou, a ponto de impô-lo à obediência não apenas das autoridades administrativas, mas também de juízes e legisladores, esse princípio acabou se tornando consubstancial à própria ideia de Estado de Direito pela sua íntima ligação com os direitos fundamentais, que lhe dão suporte e, ao mesmo tempo, dele dependem para se realizar. Essa interdependência se manifesta especialmente nas colisões entre bens ou valores igualmente protegidos pela Constituição, conflitos que só se resolvem de modo justo ou equilibrado fazendo-se apelo ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, o qual é indissociável da ponderação de bens e, ao lado da adequação e da necessidade, compõe a proporcionalidade em sentido amplo”.[92]

Assim, corrigiu-se uma interpretação oriunda da Constituição manifestamente desarrazoada e desproporcional, qual seja: a responsabilização do agente por ato culposo, que, na intenção de acertar, equivoca-se a adoção dos meios, ao invés de concentrar esforços somente no corrupto, este sim o real causador de danos à sociedade.

Assim, o art. 28 da LINDB, aliada a interpretação adotada pelo art. 12, §1º do Decreto nº 9830/2019, estabeleceu a responsabilidade nos casos de dolo ou culpa grave, para fins de ressarcimento ao erário. Assim, no caso de culpa leve, torna-se inaplicável o regresso contra o servidor na responsabilidade objetiva do Estado.

2.8.4) Manifestações jurisprudenciais.

Sobre a derrogação da Lei de Improbidade, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com a edição do art. 28 da LINDB, tornou-se atípica a punição por ato de improbidade que cause dano ao erário na modalidade culposa. Vale a transcrição da ementa:

“Para a configuração do ato de improbidade administrativa, é necessária a análise do elemento subjetivo, qual seja, dolo nas condutas tipificadas nos arts. 9º e 11, observando-se que o art. 10 da Lei 8429/92 foi alterado pela Lei 13655/18, não mais sendo admitida a caracterização de ato de improbidade administrativa que cause lesão ao erário na modalidade culposa”[93].

A Exma. Desembargadora Relatora, em seu voto, salientou:

“Acrescente-se que a Lei nº 13655/18 alterou o art. 10 da Lei 8429/92, não mais sendo admitida a caracterização de ato de improbidade administrativa que cause lesão ao erário na modalidade culposa. Estabeleceu o artigo 28 da Lei 13.655/18 que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.”A nova disposição da LINDB afeta diretamente a regra do artigo 10 da Lei 8.429/92, à medida em que transforma em pressuposto da responsabilização do agente público (que decide ou emite opinião técnica) exclusivamente o dolo e o erro grosseiro, afastando, pois, a ideia de responsabilização por culpa stricto sensu”[94].

Ainda no TJPR, foi editado o enunciado interpretativo nº 10, com o seguinte teor:

Enunciado 10: "O artigo 10 da Lei 8.429/1992 foi alterado pela Lei 13.655/2018, não mais sendo admitida a caracterização de ato de improbidade administrativa que cause lesão ao erário na modalidade culposa"[95].

Este enunciado, após a entrada em vigor do Decreto nº 9830/2019, foi alterado para constar a seguinte redação:

Enunciado 10: “O artigo 10 da Lei nº 8.429/92 deve ser interpretado à luz do artigo 28 da LINDB (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro), com as alterações feitas pela Lei nº 13.655/18, não mais sendo admitida a caracterização de ato de improbidade administrativa que cause lesão ao erário quando o agente atua com culpa simples ou leve; apenas mediante dolo ou erro grosseiro, equivalente este à culpa grave nos termos do Decreto nº 9.380/19”[96].

Manifesta-se veementes criticas à alteração promovida pelo TJPR em virtude da publicação do Decreto nº 9830/2019, reconhecendo o referido tribunal que um regulamento pode deliberar sobre a existência ou não de crime, como no caso da culpa grave. E muito pior: um decreto pode alterar uma derrogação legal, restabelecendo a eficácia do tipo culposo. Melhor seria se mantivesse a redação anterior uma vez que fiel ao princípio da legalidade estrita e, principalmente, à Constituição.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também exige no mínimo erro grosseiro para a configuração da improbidade administrativa, a saber:

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Pagamento de gratificação Lei que autorizava o pagamento da gratificação em termos genéricos Defeitos na legislação que não implicam inconstitucionalidade. Art. 28 da LINDB. Ré que se enquadrava nas hipóteses de recebimento da gratificação. Ausência de violação ao princípio da legalidade. Recurso voluntário intempestivo. Recurso voluntário não conhecido, reexame necessário não provido. (TJSP - 1ª Câmara de Direito Público - Apelação Cível nº 0003038-22.2009.8.26.0352 – Rel. Desemb. Luís Francisco Aguilar Cortez – Julgamento: 24/04/2019).

Este entendimento jurisprudencial, por arrastamento, também pode ser aplicado aos crimes de peculato culposo, uma vez que inexiste mais crimes funcionais culposos.

2.9) O ART. 29 DA LINDB E AS CONSULTAS PÚBLICAS PARA EDIÇÃO DE ATOS NORMATIVOS.

O art. 29 da LINDB apresenta a seguinte redação:

Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.

§ 1º  A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver.

§ 2º  (VETADO). 

Este dispositivo foi regulamentado pelo Decreto nº 9830/2019 nos seguintes termos:

Art. 18.  A edição de atos normativos por autoridade administrativa poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico.

§ 1º  A decisão pela convocação de consulta pública será motivada na forma do disposto no art. 3º.

§ 2º  A convocação de consulta pública conterá a minuta do ato normativo, disponibilizará a motivação do ato e fixará o prazo e as demais condições.

§ 3º  A autoridade decisora não será obrigada a comentar ou considerar individualmente as manifestações apresentadas e poderá agrupar manifestações por conexão e eliminar aquelas repetitivas ou de conteúdo não conexo ou irrelevante para a matéria em apreciação.

§ 4º  As propostas de consulta pública que envolverem atos normativos sujeitos a despacho presidencial serão formuladas nos termos do disposto no Decreto nº 9.191, de 1º de novembro de 2017. 

Apesar de respeitáveis manifestações doutrinárias entenderem pela obrigatoriedade das consultas públicas[97], esta conclusão não consta da dicção legal, pois há clara conotação de discricionariedade, discricionariedade esta que poderá insurgir-se contra o próprio administrador público em caso de omissão na oitiva da população, enquanto a implantação do programa de governo do agente político. Enfim, toda conduta vinculada do gestor público decorre da lei e ensejar um valor jurídico abstrato para compeli-lo a fazer o que é facultado, além de ferir a política pública de governo pelo qual o agente político foi eleito por sufrágio, fere também o próprio espírito que norteou a edição da Lei nº 13.655/2018.

Feitas essas considerações, a consulta pública que precede a edição de atos normativos tem por escopo a transparência da administração pública e possui as seguintes características:

A) Excetua os atos normativos de ordenação interna: por óbvio o legislador antevê a participação popular em atos que influenciarão a comunidade e não somente aqueles afetos à organização interna corporis. Cabe, outrossim, se o ato teoricamente interno possa ter reflexos externos, como na hipótese de atos normativos mistos;

B) Efetivação preferencialmente por meio eletrônico;

C) A manifestação dos interessados será levada em consideração na decisão: o legislador não quis que a consulta pública fosse meramente uma formalidade, mas sim uma participação popular que influencie efetivamente nos rumos do país. No entanto, o agente público não está obrigado a comentar individualmente as manifestações da sociedade, sendo suficiente a manifestação por agrupamento, eliminação de repetições e manifestações impertinentes;

D) A decisão que deferir a consulta pública deverá ser motivada, nos mesmos moldes de qualquer decisão administrativa com os alertas do art. 20 da LINDB;

E) Ao convocar a consulta, deverá o agente público divulgar o texto do ato normativo, sendo que, na esfera federal, deverá ser observado o Decreto nº 9.191/2017 (normas para encaminhamento de atos normativos à Presidência da República pelos Ministros de Estado). Deverá também ser observada a Lei Complementar nº 95/1998 que disciplina a redação de atos normativos;

2.10) ART. 30 DA LINDB: A ESTABILIZAÇÃO INSTITUCIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

O Art. 30 da LINDB, último artigo inserido pela Lei nº 13655/2018, como uma das principais inovações colacionadas, possui a seguinte redação:

Art. 30.  As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.

Parágrafo único.  Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão. 

Tamanha a importância deste artigo, que o Decreto nº 9830/2019 destinou 6 (seis) artigos para a sua regulamentação, a saber:

Segurança jurídica na aplicação das normas

Art. 19.  As autoridades públicas atuarão com vistas a aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de normas complementares, orientações normativas, súmulas, enunciados e respostas a consultas.

Parágrafo único.  Os instrumentos previstos no caput terão caráter vinculante em relação ao órgão ou à entidade da administração pública a que se destinarem, até ulterior revisão. 

Parecer do Advogado-Geral da União e de consultorias jurídicas e súmulas da Advocacia-Geral da União

Art. 20.  O parecer do Advogado-Geral da União de que tratam os art. 40 e art. 41 da Lei Complementar nº 73, 10 de fevereiro de 1993, aprovado pelo Presidente da República e publicado no Diário Oficial da União juntamente com o despacho presidencial, vincula os órgãos e as entidades da administração pública federal, que ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento.

§ 1º  O parecer do Advogado-Geral da União aprovado pelo Presidente da República, mas não publicado, obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento em que dele tenham ciência.

§ 2º  Os pareceres de que tratam o caput e o § 1º têm prevalência sobre outros mecanismos de uniformização de entendimento.

Art. 21.  Os pareceres das consultorias jurídicas e dos órgãos de assessoramento jurídico, de que trata o art. 42 da Lei Complementar nº 73, de 1993, aprovados pelo respectivo Ministro de Estado, vinculam o órgão e as respectivas entidades vinculadas. 

Orientações normativas

Art. 22.  A autoridade que representa órgão central de sistema poderá editar orientações normativas ou enunciados que vincularão os órgãos setoriais e seccionais.

§ 1º  As controvérsias jurídicas sobre a interpretação de norma, instrução ou orientação de órgão central de sistema poderão ser submetidas à Advocacia-Geral da União.

§ 2º  A submissão à Advocacia-Geral da União de que trata o § 1º será instruída com a posição do órgão jurídico do órgão central de sistema, do órgão jurídico que divergiu e dos outros órgãos que se pronunciaram sobre o caso. 

Enunciados

Art. 23.  A autoridade máxima de órgão ou da entidade da administração pública poderá editar enunciados que vinculem o próprio órgão ou a entidade e os seus órgãos subordinados. 

Transparência

Art. 24.  Compete aos órgãos e às entidades da administração pública manter atualizados, em seus sítios eletrônicos, as normas complementares, as orientações normativas, as súmulas e os enunciados a que se referem os art. 19 ao art. 23. 

Para melhor didática, ressaltando a importância da matéria, abordar-se-á este artigo com maior minúcia, em razão da relevância prática da mesma, bem como a sua extrema oportunidade.

2.10.1) A Segurança Jurídica e a Estabilização Institucional da Administração.

Quando se fala em segurança jurídica, logo se tem em mente a noção de previsibilidade. No entanto, elucidar-se-á o conceito de segurança jurídica com vistas a contextualização da matéria.

Paulo Dourado Gusmão leciona sobre a segurança, pedra de toque para que a sociedade siga estável, mesmo que não necessariamente seja garantida a melhor alternativa, valendo transcrição:

“A ‘segurança jurídica’ impõe o respeito à ordem constituída, à ordem pública e aos bons costumes; o respeito ao pactuado (pacta sunt servanda); a intocabilidade da decisão judicial transitada em julgado, mesmo que injusta; a subordinação do governo à lei a separação dos poderes do Estado; o respeito aos direitos adquiridos; a individuação da pena; a modificação da ordem jurídica com observância de regras legalmente preestabelecidas para criação do direito, sem atingir as situações jurídicas perfeitas, integralmente constituídas e os direitos adquiridos; a publicidade da lei (dos atos administrativos e judiciais) e demais atos normativos, bem como a anterioridade da lei ao fato a ser julgado, principalmente no caso de direito repressivo (penal) e a igualdade de todos diante da lei”[98].

Promove-se a segurança jurídica com a intocabilidade das decisões, mesmo que ela não seja a melhor, pois, em nome da perfeição, mesmo que alcançada esta, o elemento temporal pode ocasionar a imprestabilidade da prestação. Vale dizer: melhor uma decisão que peque pela profundidade técnica e que seja célere, do aquela que atenda tal profundidade e que seja extemporânea.

Rizzatto Nunes sugere que a segurança jurídica é alcançável quando há uniformidade de tratamento sobre determinada questão, uma vez que a previsibilidade é qualidade maior da segurança jurídica. Sua lição pode ser transcrita a seguir:

“Essa uniformização deve ser buscada especialmente quando houver decisões divergentes quanto ao mesmo assunto. A função é, repita-se, estabelecer segurança jurídica”[99].

Paulo Nader resolve a questão estabelecendo a diferença entre a segurança jurídica e a certeza jurídica, a saber:

Os conceitos de segurança jurídica e de certeza jurídica não se confundem. Enquanto o primeiro é de caráter objetivo e se manifesta concretamente através de um Direito definido que reúne algumas qualidades, a certeza jurídica expressa o estado de conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas. Pode-se dizer, de outro lado, que a segurança possui um duplo aspecto: objetivo e subjetivo. O primeiro corresponde às qualidades necessárias à ordem jurídica e já definidas, enquanto o subjetivo consiste na ausência de dúvida ou de temor no espírito dos indivíduos quanto à proteção jurídica[100].

Enfim, toda esta articulação visa esclarecer que o dispositivo que melhor favorece a segurança jurídica dentre as novas normas inseridas pela Lei nº 13655/2018 é o art. 30 da LINDB. As demais disposições se preocupam mais com a certeza jurídica, mas a lei, em seu conteúdo objetivo, é incapaz de promover tal certeza. A norma, quando se preocupa com o discernimento humano da realidade dos fatos, ou da visão que as pessoas possuem dos fatos, está fadada ao fracasso.

Imiscuir-se a lei na compreensão e percepção dos julgadores frente aos fatos da natureza, impondo-se-lhes critérios a essa compreensão/percepção, atrapalha mais do que auxilia.

A primeira crítica às disposições inseridas pela Lei nº 13.655/2018, a mais óbvia por sinal, é que ela foi mal escrita, é ultrassubjetiva e manifestamente dúbia. No entanto, crítica maior deve ser feita quanto a matéria escolhida para legislar, qual seja, o que o julgador deve ou não enxergar quando se depara com uma decisão a ser tomada.

É possível o julgador decidir mal? Por óbvio que sim! Mas a esfera recursal existe exatamente para revê-la quando necessário, e mais, não é porque a decisão mereça reparo que o decisor deva ser responsabilizado por isso. São “ossos do ofício”. E a má-fé não se presume, prova-se.

O que mais a sociedade almeja para a promoção da segurança jurídica é que a resposta do Estado seja rápida e que seu posicionamento seja estável no tempo. O particular não exige o máximo de técnica nas decisões, bastando que seja justa, que não seja extemporânea e que seja estável.

2.10.2) Os Instrumentos de Estabilização da Administração Pública: Rol Exemplificativo.

Existem instrumentos previstos no art. 30 da LINDB, mas o rol ali descrito é inegavelmente exemplificativo. Consta no dispositivo como instrumentos de estabilização: os regulamentos, as súmulas administrativas e as respostas às consultas.

O Decreto nº 9830/2018, por sua vez, parecer da Advocacia-Geral da União, de órgãos consultivos e súmulas da AGU, orientações normativas e enunciados.

Será cada um deles tratados separadamente a seguir.

2.10.2.1) Da Advocacia-Geral da União (AGU), os órgãos de consultoria e as procuradorias das demais unidades da federação.

Os órgãos de representação jurídica, independente da esfera da federação são os órgãos uniformizadores por excelência. A eles que são direcionadas as disposições do art. 30 da LINDB.

O Decreto nº 9830/2019, nos seus artigos 20 e 21, preveem as competências da AGU e órgãos consultivos da União, com a aprovação, respectivamente, do Chefe do Executivo e dos Ministros de Estado, para a edição de pareceres vinculantes. Estes pareceres vinculantes têm primazia sobre os demais instrumentos vinculantes fixados por outros órgãos, conforme o art. 20, §2º do Decreto em questão. Daí a sua condição de órgão uniformizador por excelência.

Como a LINDB é uma norma de supradireito, sua utilização pelas demais unidades da federação é obrigatória, independente de regulamentação. A competência uniformizadora das procuradorias dos estados, do distrito federal e dos municípios é presuntiva e decorrente da própria representação jurídica que lhes são reservadas, desde que chancelados pelos respectivos Chefes do Executivo.

A seguir serão abordados os instrumentos legais e regulamentares de uniformização e, será mencionado “órgão de representação jurídica” que contemplará a própria AGU, bem como as procuradorias dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios.

2.10.2.2) Dos Instrumentos para a uniformização e estabilização da administração pública.

O art. 30 da LINDB prevê como instrumentos de uniformização: os regulamentos, as súmulas administrativas e a resposta às consultas. No entanto, estes instrumentos não são exaustivos, pois o Decreto nº 9830/2019 previu os seguintes: parecer dos órgãos de representação jurídica, orientações normativas e enunciados. A seguir serão todos eles estudados.

2.10.2.2.1) Regulamentos.

Hely Lopes Meirelles define os regulamentos da seguinte forma:

“Os regulamentos são atos administrativos, postos em vigência por decreto, para especificar os mandamentos da lei ou prover situações ainda não disciplinadas por lei. Desta conceituação ressaltam os caracteres marcantes do regulamento: ato administrativo (e não legislativo); ato explicativo ou supletivo da lei; ato hierarquicamente inferior à lei; ato de eficácia externa”[101].

O que pretendeu o legislador foi agregar, dentre as funções regulamentares, a de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas. Assim, o regulamento, além de estabelecer regras de aplicação e interpretação, poderá também promover a estabilização de leis.

Um exemplo bem factível é a situação em que o Chefe do Executivo, ao perceber que determinada lei está sofrendo interpretações diversas dentro do seu organograma, havendo divergências entre ministérios/secretarias, ou entre estes e o órgão de representação jurídica, gerando uma crise política entre seus órgãos, poderá se socorrer de um decreto para a pacificação da interpretação pelos seus subordinados, reestabelecendo a estabilidade institucional de seus órgãos, inclusive os vinculados. Assim, uma vez editado o decreto, todos os órgãos envolvidos deverão segui-lo fielmente.

2.10.2.2.2) Súmulas Administrativas.

Entende-se por súmulas administrativas a uniformização de entendimento, oriundo de decisões em processos administrativos ou precedentes jurisprudenciais, verticalmente e horizontalmente vinculados.

É verticalmente vinculado porque obriga a todos os órgãos que estiverem sob a seu âmbito de influência, quer hierárquico ou sob a vinculação técnica. Vale dizer: em razão de entendimento pacífico em processos administrativos, por entendimento próprio ou em razão de precedentes jurisprudenciais, um conselho de contribuintes de determinado município vier a editar uma súmula administrativa, esta vinculará todas as instâncias inferiores.

É horizontalmente vinculado porque também é direcionado ao particular, com vistas a alertar à sociedade da posição administrativa utilizada de forma pacífica e estável devendo o órgão dar publicidade, inclusive por página na internet. Também possui o condão de coibir os recursos meramente protelatórios, autorizando o não conhecimento destes, por decisão monocrática, quando houver afronta ao comando sumular, sempre por decisão motivada, levando em consideração o art. 20 da LINDB.

Nem a Lei nº 13.655/2018, muito menos o Decreto nº 9830/2019 estabeleceram procedimento algum para a edição de súmulas administrativas, portanto, a unidade da federação terá ampla autonomia para editar súmulas administrativas.

2.10.2.2.3) Respostas às consultas.

O processo de consulta é disciplinado pela Lei nº 9.430/1996, artigo 48, nos seguintes termos:

Art. 48.  No âmbito da Secretaria da Receita Federal, os processos administrativos de consulta serão solucionados em instância única.

§ 1o  A competência para solucionar a consulta ou declarar sua ineficácia, na forma disciplinada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, poderá ser atribuída:

I - a unidade central; ou

II - a unidade descentralizada.

§ 2º Os atos normativos expedidos pelas autoridades competentes serão observados quando da solução da consulta.

§ 3º Não cabe recurso nem pedido de reconsideração da solução da consulta ou do despacho que declarar sua ineficácia.

§ 4º As soluções das consultas serão publicadas pela imprensa oficial, na forma disposta em ato normativo emitido pela Secretaria da Receita Federal.

§ 5º Havendo diferença de conclusões entre soluções de consultas relativas a uma mesma matéria, fundada em idêntica norma jurídica, cabe recurso especial, sem efeito suspensivo, para o órgão de que trata o inciso I do § 1º.

 § 6º O recurso de que trata o parágrafo anterior pode ser interposto pela destinatário da solução divergente, no prazo de trinta dias, contados da ciência da solução.

 § 7º Cabe a quem interpuser o recurso comprovar a existência das soluções divergentes sobre idênticas situações.

§ 8o  O juízo de admissibilidade do recurso será realizado na forma disciplinada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

§ 9º Qualquer servidor da administração tributária deverá, a qualquer tempo, formular representação ao órgão que houver proferido a decisão, encaminhando as soluções divergentes sobre a mesma matéria, de que tenha conhecimento.

§ 10. O sujeito passivo que tiver conhecimento de solução divergente daquela que esteja observando em decorrência de resposta a consulta anteriormente formulada, sobre idêntica matéria, poderá adotar o procedimento previsto no § 5º, no prazo de trinta dias contados da respectiva publicação.

§ 11. A solução da divergência acarretará, em qualquer hipótese, a edição de ato específico, uniformizando o entendimento, com imediata ciência ao destinatário da solução reformada, aplicando-se seus efeitos a partir da data da ciência.

§ 12. Se, após a resposta à consulta, a administração alterar o entendimento nela expresso, a nova orientação atingirá, apenas, os fatos geradores que ocorram após dado ciência ao consulente ou após a sua publicação pela imprensa oficial.

 § 13. A partir de 1º de janeiro de 1997, cessarão todos os efeitos decorrentes de consultas não solucionadas definitivamente, ficando assegurado aos consulentes, até 31 de janeiro de 1997:

I - a não instauração de procedimento de fiscalização em relação à matéria consultada;

II - a renovação da consulta anteriormente formulada, à qual serão aplicadas as normas previstas nesta Lei.

§ 14.  A consulta poderá ser formulada por meio eletrônico, na forma disciplinada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

§ 15.  O Poder Executivo regulamentará prazo para solução das consultas de que trata este artigo.

O Código Tributário Nacional também prevê a consulta como causa excludente de juros de moratórios, a saber:

Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.

§ 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica na pendência de consulta formulada pelo devedor dentro do prazo legal para pagamento do crédito.

Portanto a Lei nº 13.655/2018 não inovou no ordenamento jurídico quanto a criação da consulta, somente no que tange o seu caráter vinculante.

A consulta é um processo administrativo e como tal comporta todas as modalidades de garantias processuais, salvo o duplo grau de revisão, pois não comporta recurso ou pedido de reconsideração. Se a decisão for desfavorável ao contribuinte, este ao sofrer as consequências dessa decisão, terá direito subjetivo à impugnação, aduzindo a inaplicabilidade do resultado da consulta, e, aí sim, ao duplo grau de revisão, com direito recursal.

Nada impede que o órgão julgador, em instância recursal, decida ou edite súmula administrativa sobre a matéria, podendo até divergir da tese esposada na consulta. Na hipótese de edição de sumula, o órgão de primeira instância que redigiu a consulta deverá adotar a tese pacificada no verbete sumular, uma vez que o órgão inferior não possui autoridade para vincular o órgão de autoridade superior.

2.10.2.2.4) Orientações normativas.

O Decreto nº 9830/2019 previu em seu art. 22 as orientações normativas, conforme a seguinte disciplina:

Art. 22.  A autoridade que representa órgão central de sistema poderá editar orientações normativas ou enunciados que vincularão os órgãos setoriais e seccionais.

§ 1º  As controvérsias jurídicas sobre a interpretação de norma, instrução ou orientação de órgão central de sistema poderão ser submetidas à Advocacia-Geral da União.

§ 2º  A submissão à Advocacia-Geral da União de que trata o § 1º será instruída com a posição do órgão jurídico do órgão central de sistema, do órgão jurídico que divergiu e dos outros órgãos que se pronunciaram sobre o caso.

Entende-se por “órgão central de sistema” os órgãos de controladoria geral da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, bem como os órgãos com denominação diferente, mas que realizam compliance administrativo central de unidade da federação.

A norma estabelece a submissão dessas orientações normativas ao controle das procuradorias (AGU, procuradorias estaduais, distritais e municipais) que dirimirão a as controvérsias jurídicas acerca dessas orientações.

Relembra-se ao leitor a posição sobre a LINDB e o seu alcance a todas as unidades da federação, aplicando-se, inclusive, as disposições do Decreto nº 9830/2019, em face da sua natureza inegavelmente interpretativa e ordenadora.

2.10.2.2.5) Enunciados.

O art. 23 do Decreto nº 9830/2019 definiu os enunciados da seguinte forma:

Art. 23.  A autoridade máxima de órgão ou da entidade da administração pública poderá editar enunciados que vinculem o próprio órgão ou a entidade e os seus órgãos subordinados. 

Esses enunciados são muito semelhantes às súmulas, mas somente imbuídos com a vinculação vertical e não a horizontal. Vale dizer: a vinculação prevista não alcança os particulares, uma vez que é um verbete interna corporis.

Um exemplo de enunciado é aquele em que o secretário de finanças de determinado município estabelece aos representantes fazendários, que atuam na segunda instância fiscal, a desistência de todos os recursos de ofício acerca de restituições oriundas de lançamentos indevidos por falhas reconhecidas no sistema de gestão pública utilizado pelo município.

Outro exemplo ocorre quando o secretário municipal, verificando que seus subordinados estão divergindo quanto a aplicação e interpretação da lei, estabelece um enunciado unificando a aplicação e interpretação desta lei, evitando posições díspares que causam insegurança jurídica.

Feitos os comentários aos dispositivos inseridos, passar-se-á à análise de sua aplicabilidade no âmbito fiscal, em face de entendimento contrário do CARF.

Sobre o autor
Olsen Henrique Bocchi

advogado em Londrina (PR)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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