Em 1859, visitando o prédio da Faculdade de Direito do Recife, o Imperador D. Pedro II, estupefato, teria recomendado expressamente às autoridades locais que jamais o mostrassem a estrangeiros. Não queria que levassem de nosso país tão más impressões como as que aquele ambiente precário e mal conservado causavam.
Em 1881, o Presidente da Província de Pernambuco fazia coro aos pedidos do Imperador. Todavia, ia um pouco mais além: aconselhava que nem mesmo aos brasileiros se mostrasse o prédio da Faculdade de Direito, uma casa velha, suja, imunda e arruinada.
As cenas revelam o estado do ensino jurídico no Brasil ao longo do Império. Desde a criação das faculdades de direito, em 1827, a situação sempre foi das piores: tanto em São Paulo como em Olinda (local de funcionamento originário da faculdade de Pernambuco), o improviso inicial ganhou ares de perpetuidade.
Após a edição do decreto de 11 de agosto, autorizando o funcionamento dos cursos jurídicos no Brasil, o Estado Imperial, então ainda comandado por D. Pedro I, pouco propenso a gastar seu dinheiro particular em obras para este país bárbaro, procurou instalar as faculdades recém criadas da maneira menos dispendiosa possível: chegou a acordos com religiosos da ordem de São Francisco (em São Paulo) e de São Bento (em Olinda), obtendo a cessão de áreas de seus respectivos conventos para a instalação dos cursos.
Enquanto em Pernambuco a Faculdade de Direito perambulou por casas de condições precaríssimas até seu estabelecimento definitivo em Recife, na cidade de São Paulo a provisória e não menos precária instalação do curso no convento de São Francisco dura até hoje. Assim como persistem os problemas diretamente relacionados ao ensino do direito.
Durante todo o século XIX o governo imperial deparou-se com críticas públicas relativamente ao baixo nível e à má qualidade do ensino praticado nas faculdades de São Paulo e Recife: desde os já mencionados problemas envolvendo os prédios até o desinteresse dos alunos, a falta de preparo dos professores e as interferências dos "pistolões" na seleção e avaliação dos alunos. O remédio para todas as críticas sempre foi o mesmo: a edição de leis, decretos, regulamentos, enfim, as mais mirabolantes tentativas de reforma legislativa.
Uma das Reformas mais significativas e interessantes, sem dúvida, foi a Reforma Leôncio de Carvalho, ou "Reforma do Ensino Livre", expressa no Decreto nº 7.247 de 1879. Logo em seu artigo primeiro enunciava-se a ideologia da medida:
Art. 1º. É completamente livre o ensino primário e o secundário no município da Corte e o superior em todo o Império, salvo a inspeção necessária para garantir as condições de moralidade e higiene.
Mais adiante, no art. 20, que tratava do ensino superior, podemos destacar dois parágrafos:
§ 1º. Mediante prévia inscrição, que se abrirá na Secretaria de cada Escola ou Faculdade nas épocas que forem marcadas em regulamento, serão admitidos a prestar exame, de qualquer número de matérias do respectivo curso, todos aqueles que o requererem, satisfazendo as seguintes condições.
(...)
§ 6º. Não serão marcadas faltas aos alunos nem serão eles chamados a lições e sabatinas.
Em linhas gerais, seguindo a síntese de Aurélio Wander Bastos [01], cinco pontos caracterizavam a Reforma Leôncio de Carvalho:
1.Autorizava a associação de particulares para o ensino de disciplinas ministradas nos cursos superiores oficiais;
2.Autorizava as faculdades livres, mantidas por associações de particulares, após sete anos consecutivos de funcionamento, a se regularizarem;
3.Suspendia a freqüência obrigatória nos estabelecimentos de instrução superior dependentes do Ministério do Império;
4.Introduzia os exames livres para as matérias ensinadas na faculdade ou escolas dependentes do Ministério do Império;
5.Criava os cursos livres em faculdades do estado referentes às disciplinas ali oferecidas por professores particulares.
Destacamos os dois aspectos que mais diretamente interessavam ao estudante: a abolição do controle da freqüência e dos exames parciais. A partir de 1879, um aluno ausente não poderia ter marcada sua falta, nem deveria submeter-se aos exames parciais. Por outro lado, a todos era livre o acesso aos exames finais, considerando-se aprovados na disciplina todos aqueles que, mesmo sem terem freqüentado as aulas, obtivessem nota satisfatória.
Meses após a aprovação da Reforma, alguns senadores, preocupados, afirmaram estarem "quase desertas as academias". Em 1884, ofício do diretor da Faculdade do Recife informava que menos da metade dos matriculados ia às aulas. Melo Alves, estudante de São Paulo, comentando a ausência dos colegas, lamentava:
Sente-se nas arcadas o ar triste e glacial. Meia dúzia de desconhecidos permanecem numa posição muda e sombria. [02]
A Reforma, contudo, teve considerável importância para o ensino jurídico. Pondera Aurélio Wander Bastos que o ensino livre resolveu um problema estrutural da educação brasileira: a incapacidade do Império para oferecer ensino oficial superior nas províncias [03]. Graças ao ensino livre puderam surgir novas faculdades de direito, rompendo o monopólio das Faculdades de São Paulo e do Recife.
Mas sua presença em nossa história soa paradoxal por vários motivos. Primeiramente, a Reforma Leôncio de Carvalho ocorre em 1879, ainda durante o Império. Num momento de profundas crises que culminariam com a derrocada do próprio Estado Imperial, soa estranho que o Imperador tenha permitido a tentativa de resolução do grave problema da educação superior com uma medida tão "liberal" como o ensino livre. Seria mais prudente evitar a disseminação de estabelecimentos de ensino e não estimular.
Aurélio Wander Bastos sugere uma explicação. A medida teria duas finalidades políticas bem práticas: a primeira, ao possibilitar o surgimento das faculdades livres, abrir espaço para a atuação da Igreja, então cada vez mais alijada das questões de Estado; a segunda, ao esvaziar as salas de aula abolindo o controle da freqüência, desmobilizar o cada vez mais intenso e politizado movimento estudantil, cujo teor crítico já começava a incomodar.
Seu ar paradoxal deriva também de outros motivos. Depreende-se de vários depoimentos que a grande interessada, internacionalmente falando, no ensino livre, seria mesmo a Igreja Católica. Nos diversos países cujos estabelecimentos de ensino se faziam controlar pelo Estado, adotando posturas laicas, a Igreja levantava suas bandeiras pela liberdade de ensino.
Em especial na França, nossa capital cultural do século XIX, a Igreja lutava pela liberdade de ensino, aliando-se aos ultraconservadores das mais diversas estirpes, contra os estabelecimentos de ensino dominados pelos "liberais". Tal era, em linhas gerais, a análise de Joaquim Nabuco.
Todavia, homens como Leôncio de Carvalho e outros defensores do ensino livre brasileiro podem, sem sombra de dúvidas, ser considerados liberais. Parece que a idéia do ensino livre, ao ganhar sua vertente tropical, cruzava o Atlântico de pernas para o ar: idéia de conservadores na Europa, convertia-se em idéia de liberais nos trópicos. Aliás, de pernas para o ar como tantas outras idéias que cruzaram o Atlântico por essa época...
O advento da República, longe de combater a idéia do ensino livre, a consolidou e estimulou com novas medidas normativas. Um dos resultados mais diretos da Reforma, o surgimento de novas faculdades de direito, desencadeou-se de modo definitivo a partir de então.
Já em 1891 surgiram três faculdades de direito, uma em Salvador e duas na cidade do Rio de Janeiro. Em 1892 surgiu a faculdade de Minas Gerais, inicialmente estabelecida em Ouro Preto e depois transferida a Belo Horizonte. Além dessas, inúmeras outras faculdades, a partir do século XX, surgiram, e algumas desapareceram efemeramente, não sobrevivendo com o passar dos anos.
Somente em 1895, com a Lei 314, a freqüência e os exames parciais seriam restabelecidos nas faculdades oficiais. As Faculdades Livres ainda se manteriam por muito tempo, embora o governo passasse a fazer exigências para reconhecer seu funcionamento. Posteriormente, elas dariam origem às Faculdades Particulares.
Uma história retrata bem o clima do ensino livre: em 1896, um ano após o restabelecimento da presença e dos exames parciais nos estabelecimentos públicos, um aluno, chamado pelo Prof. João Monteiro, da Faculdade de Direito de São Paulo, para realizar uma avaliação, recusou-se a responder às perguntas por considerar indigno de uma pessoa sujeitar-se a exames parciais. Acrescentou ainda seguir seu mestre Leôncio de Carvalho, reputando também vexatório submeter-se ao controle da freqüência, realizado por um mísero bedel.
Temos aí o exemplo máximo do paradoxo da Reforma Leôncio de Carvalho em nosso país: o típico aluno "filhinho-de-papai", acostumado a uma vida sem regras e repleta de veleidades, utilizando-se do discurso do ensino livre para justificar sua falta de estudos e/ou seu capricho pessoal.
Notas
01 BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2000, pp. 146 e 147.
02 APUD. VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo (150 anos de ensino jurídico no Brasil). 2ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982, p. 89.
03 BASTOS, Aurélio Wander. Idem, p. 149.