I. A REALIDADE DO EXERCÍCIO DA MEDICINA NO BRASIL
A realidade da situação do ensino médico no Brasil e, consequentemente da qualidade do exercício profissional da medicina, tem se tornado uma preocupação cada vez mais crescente, principalmente porque o alvo ou destino desse exercício é a população brasileira acometida por doenças ou agravos a sua saúde, muitas vezes revestidas de gravidade e/ou de risco de vida, demandando do profissional médico a garantia de uma formação adequada, com conhecimentos e habilidades suficientes para permitir o restabelecimento da saúde dessa população.
Infelizmente, ao longo dos anos, a formação do profissional médico vem sofrendo um deterioro gradual e progressivo, decorrente da proliferação indiscriminada de escolas médicas e do aumento de vagas de forma desproporcional à demanda e necessidades reais do país.
O estudante de medicina, durante seu processo de formação na faculdade, é submetido a uma série de avaliações teóricas e práticas que visam testar os conhecimentos adquiridos. Afinal, após aprovação de todas essas provas estará apto a receber seu diploma de médico e, a seguir, a realizar sua inscrição no Conselho Regional de Medicina onde desenvolverá suas atividades obtendo a respectiva licença para o exercício profissional.
Num cenário ideal, essa formação baseada em conhecimentos e habilidades adquiridos e testados pela própria faculdade, presume-se suficiente para que o médico recém-formado atenda às necessidades básicas de saúde da população. Entretanto, não é isso o que se vê na realidade. Os sistemas de avaliação dos estudantes e dos cursos de medicina hoje existentes (ANASEM, SINAES), mostram uma realidade maioritariamente deficitária, revelando faculdades de má qualidade, que lançam ao mercado de trabalho médicos com formação insuficiente até para exercer a medicina nas suas áreas básicas com qualidade, como se esperaria ao final de um curso de graduação em medicina.
Ainda, a principal porta de entrada para esse mercado de trabalho para o médico recém-formado e, piora ainda, para o malformado, são as emergências das Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e Pronto Socorro (PS), justamente onde os pacientes são mais graves, correm risco de morte e necessitam de atendimento rápido e de qualidade. Estas unidades destinadas ao atendimento de urgência e emergência, admitem pacientes com quadros graves como infarto agudo de miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC), traumas decorrentes de acidentes graves, etc; e exigem dos médicos que prestam esses atendimentos de urgência/emergência, conhecimentos e habilidades mínimas indispensáveis para estabilizar o quadro desses pacientes e evitar o desfecho fatal (morte) ou a ocorrência de sequelas graves. Esses conhecimentos e habilidades mínimos incluem, fazer uma rápida e correta coleta de informações, um exame clínico acurado, acerto na solicitação de exames emergenciais laboratoriais e de imagem necessários, interpretação dos resultados desses exames, e finalmente a elaboração de hipóteses diagnósticas acuradas que permita iniciar um tratamento rápido e adequado visando a estabilização do quadro de urgência/emergência, que inclui muitas vezes, a realização de procedimentos que requerem habilidades especificas, como intubação endotraqueal, punção de acessos profundos, cardioversão elétrica, passagem de marcapasso provisório, drenagem de tórax, punção de derrame pericárdico, etc., para posteriormente decidir ou não pela sua transferência para um centro de referência. Evidentemente um médico recém-formado e ainda com formação deficiente, não terá esses conhecimentos e habilidades suficientes e, as consequências dessa deficiência representam um custo demasiado elevado, pois envolve a perda de vidas que poderiam ser salvas ou a ocorrência de sequelas graves que poderiam ser evitadas, caso o paciente tivesse sido atendido por um médico com formação e capacitação adequadas. Nesse sentido, veja-se a visão do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo em matéria publicada em 2004 na Revista Ser Médico, sob título “Urgência e Emergência: situação crítica no sistema público de saúde”[1]:
O atendimento de urgência e emergência funciona hoje como uma desvirtuada porta de entrada ao sistema de saúde. Além das urgências, acolhe pacientes desgarrados da atenção primária e está sobrecarregado pela falta de resolutividade nas outras instâncias da rede assistencial.
Paradoxalmente, o atendimento complexo e de risco é feito por profissionais recém-formados e residentes, em geral mal remunerados e não valorizados.
(...)
Falta qualificação profissional para atendimento complexo e de risco
É conhecido o fato de que os médicos que se propõem a trabalhar no setor de Urgência e Emergência são geralmente jovens recém graduados, às vezes acumulando a função com a formação em Residência Médica ou pós-graduação. “Muitas vezes esses jovens vão para o pronto-socorro por falta de outra opção de trabalho ou por não ter conseguido vaga nos programas de Residência Médica”, informou Renato Françoso. Segundo ele, para a maioria o atendimento na urgência é apenas a porta de entrada no mercado de trabalho, não se cultiva o vínculo com a instituição e não há motivação. Faltam programas de qualificação, cargos e carreiras compatíveis com a complexidade dessa atribuição. Veja a seguir as opiniões e propostas sobre esse tópico:
“O que fará diferença no atendimento será a formação do profissional. No momento, não temos preparação para que ele apareça, visto que da especialização decorreu um profissional mais capacitado para determinadas áreas. Além das características técnicas, ele deve ter capacitação administrativa, pois trabalhar na emergência não é só tratar de doentes.” Carlos Fujikawa, preceptor do pronto-socorro, do Hospital São Paulo/Unifesp-EPM
“Os profissionais precisam ser valorizados pela Academia e pelos colegas. Os Residentes do primeiro e do segundo ano passam pela urgência como uma exigência marginal da Comissão de Residência. Os mais avançados não querem passar por ela. Não é difícil defender uma especialização como a do modelo americano, visto que outras práticas foram introduzidas no cenário da urgência e emergência: regulação médica, sistema de atenção móvel avançada, pré-hospitalar móvel e pronto-atendimentos. As unidades hospitalares têm arquitetura e resolutividade próprias da urgência, nas quais cabe uma especialidade.” José Sebastião dos Santos, consultor do Ministério da Saúde
“O Cremesp deve trazer as universidades e autoridades da área para discutir a capacitação em três frentes:
1) graduação
2) residência médica
3) educação continuada
Em cada uma, as universidades e autoridades tem seus papéis. Na graduação, a universidade tem de adequar os currículos dando ênfase à urgência e emergência. Cabe às autoridades manter a proibição da abertura de novos cursos e a fiscalização dos já existentes. Na residência médica, a universidade tem de adequar o currículo, no sentido de privilegiar as áreas generalistas e aumentar o número de vagas. As autoridades devem melhorar a fiscalização das residências existentes. Na educação continuada, cabe às universidades incrementar cursos na área (ATLS/ACLS/PALS etc) e estabelecer os protocolos de diretrizes de urgência e emergência. As entidades médicas e autoridades devem fortalecer o título de especialista, a exigência de recertificação e a criação de um plano de carreira na área.” Gaspar de Jesus Lopes Filho
“O PS é considerado a cloaca do Hospital, o aluno e o professor não querem ficar ali. É preciso transformá-lo num lugar agradável e de intenso aprendizado, inclusive poderia servir para uma carreira de pesquisador. As entidades poderiam criar um sistema de acreditação para ser médico de urgência e emergência e para receber o CRM. Acho que a universidade pode criar uma especialidade de urgência, o ideal seria dividir em duas: urgência clínica e urgência cirúrgica. Temos de criar uma rede guideline de atendimento à urgência. Não tem sentido fazer um guideline para cada hospital. O modelo do Cohcrane poderia ser colocado na urgência.” Álvaro Atallah, coordenador do Centro Cochrane do Brasil
“Temos de pensar a longo prazo. Podemos fazer uma recomendação hoje para viger em dois ou três anos, dando tempo para que as instituições se preparem. Ao mesmo tempo, indicamos para o aparelho formador que precisamos de um médico com tal perfil para atender determinada necessidade do sistema de saúde. Dentro da esfera dos Conselhos de Medicina, estamos discutindo a criação de exames de acreditação, com questões específicas para cada área.” Renato Françoso Filho, conselheiro do Cremesp
“Para criarmos uma recomendação ou Resolução, temos de aprofundar o debate sobre a qualificação profissional, independente da formação básica, para não entrarmos no campo da disputa de mercado dos vendedores de cursos de pseudo-qualificação. Recomendar é importante. Nenhuma sociedade vai se opor a uma recomendação sobre a capacitação objetiva para lidar com paciente crítico.” Gilberto Luiz Scarazatti, conselheiro do Cremesp
“Embora existam máfias de cursos, a evolução da Residência Médica em emergência vai ter que existir. Vale lembrar que já existe no Brasil e está sendo extinta. É preciso fazer uma discussão numa esfera maior, com o Conselho, a AMB, a Comissão Nacional de Residência e as sociedades de especialidades. É preciso formar e valorizar esse profissional, porque é um excelente mercado, um dos melhores hoje. Só que cai qualquer um nesse mercado. Também é preciso criar estímulos para formar esse profissional. Se um concurso público exige dois anos de residência em Clínica ou Cirurgia, para que o profissional vai gastar seu tempo fazendo especialização em urgência e emergência, se isso não é exigido para que ele atue no setor?” Gustavo Pereira Fraga – plantonista UER do Hospital das Clínicas de Campinas
“Os Hospitais Universitários estão fechando a urgência e emergência. Isso não pode acontecer. Onde os alunos vão aprender? Começamos a discutir a formação do emergencista com o Ministério da Educação (MEC). A mudança da grade curricular também está sendo discutida, de forma que o residente possa escolher o que fazer. O Ministério vai repassar recursos aos Estados para a capacitação dos profissionais. Nesse Governo foi criada a Coordenação Nacional de Urgência. Temos que aproveitar este momento. (...) Tenho uma proposta de parceria com o CRM para verificar o cumprimento da Portaria 2.048 que estabeleceu módulos mínimos necessários para que os profissionais atuem na urgência. A Portaria deu dois anos de prazo para que o estabelecido fosse cumprido. Esse prazo acaba agora.” Irani Ribeiro de Moura, coordenadora geral de Urgência e Emergência do Ministério de Saúde
“Em São Paulo temos oito polos de qualificação de pessoal que trabalha com o Samu, vinculado à Coordenadoria de Recursos Humanos da Secretária Estadual de Saúde. [O Estado firma convênios com as prefeituras].” Adalgiza, B. Nogueira, coordenadora de Urgência e Emergência da Secretaria de Saúde do Estado de SP
“Também é preciso pensar na capacitação geral dos colegas que já atuam na emergência, inclusive daqueles que estão no setor privado.” Maria Fátima da Conceição, superintendente da Federação das Misericórdias
Apesar que a Medicina de Urgência foi reconhecida como uma Área de Atuação da especialidade de Clínica Médica apenas em 2003[2], a Medicina de Emergência foi reconhecida oficialmente como especialidade médica somente em agosto de 2016[3]. A Medicina de Urgência vinculada à especialidade de Clínica Médica continuou como Área de Atuação até 2018 em que foi incorporada à Medicina de Emergência[4]. Muito embora tenha havido mudanças no tocante ao reconhecimento de uma especialidade médica na área de urgência e emergência, a realidade das unidades de Pronto Atendimento e Ponto Socorro não tem mudando de forma significativa e continuam sendo a “porta de entrada ao mercado de trabalho” de médicos recém-formados, malformados e/ou desatualizados.
As definições de urgência e emergência foram estabelecidas pela Resolução CFM nº 1451/95, artigo 1º, Parágrafos I e II, a serem adotas na linguagem médica no Brasil[5]:
“Artigo 1º - Os estabelecimentos de Prontos Socorros Públicos e Privados deverão ser estruturados para prestar atendimento a situações de urgência-emergência, devendo garantir todas as manobras de sustentação da vida e com condições de dar continuidade à assistência no local ou em outro nível de atendimento referenciado.”
“Parágrafo Primeiro –
Define-se por URGÊNCIA a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata.”
“Parágrafo Segundo –
Define-se por EMERGÊNCIA a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento médico imediato.” (grifei)
Das definições acima elencadas, claramente pode se desprender que:
1) Ambas, envolvem agravo à saúde.
2) Ambas exigem assistência médica ou tratamento imediato. Nada diz respeito a se essa assistência médica ou o tratamento deva ser provisório ou definitivo, clínico ou cirúrgico, agressivo ou conservador, mas certamente deve ser iniciado imediatamente. Será a gravidade do quadro e a iminência do risco de morte que determinarão essas outras características.
3) A urgência poderia ou não se acompanhar de risco de vida, mas quando presente, esse risco é potencial. Ou seja, esse risco existe em estado latente; inativo, virtual, existente como possibilidade ou faculdade, não como realidade, demorando algum tempo para acontecer (será mediato). Na emergência o risco de vida é iminente, ou seja, ameaça se concretizar, está a ponto de acontecer; próximo, imediato.
4) Embora ambos termos exigem uma ação médica que seja iniciada imediatamente, a iminência de morte ou de sofrimento grave na emergência exige que o tratamento seja mais agressivo e rápido visando afastar o risco de morte num período de tempo menor que nos casos de urgência.
A Portaria GM/MS nº 2048/2002, que aprovou o Regulamento Técnico dos Sistemas Estaduais de Urgência e Emergência, assim estabeleceu no seu Anexo, a respeito da UPA (Unidades de Atendimento Pré-hospitalar Fixo) e do Pronto Socorro (Unidades Hospitalares de Atendimento às Urgências e Emergenciais):
(...)
CAPÍTULO III
ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR FIXO
2 - UNIDADES NÃO-HOSPITALARES DE ATENDIMENTO ÀS URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS
Estas unidades, que devem funcionar nas 24 horas do dia, devem estar habilitadas a prestar assistência correspondente ao primeiro nível de assistência da média complexidade (M1). Pelas suas características e importância assistencial, os gestores devem desenvolver esforços no sentido de que cada município sede de módulo assistencial disponha de, pelo menos uma, destas Unidades, garantindo, assim, assistência às urgências com observação até 24 horas para sua própria população ou para um agrupamento de municípios para os quais seja referência.
2.1 - Atribuições
Estas Unidades, integrantes do Sistema Estadual de Urgências e Emergências e de sua respectiva rede assistencial, devem estar aptas a prestar atendimento resolutivo aos pacientes acometidos por quadros agudos ou crônicos agudizados.
São estruturas de complexidade intermediária entre as unidades básicas de saúde e unidades de saúde da família e as Unidades Hospitalares de Atendimento às Urgências e Emergências, com importante potencial de complacência da enorme demanda que hoje se dirige aos pronto socorros, além do papel ordenador dos fluxos da urgência.
CAPÍTULO V
ATENDIMENTO HOSPITALAR
UNIDADES HOSPITALARES DE ATENDIMENTO ÀS URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS
O presente Regulamento Técnico está definindo uma nova nomenclatura e classificação para a área de assistência hospitalar de urgência e emergência. Refletindo sobre a regionalização proposta pela NOAS e sobre a estrutura dos pronto socorros existentes no país, adota-se a seguinte classificação/estruturação, partindo da premissa que nenhum pronto socorro hospitalar poderá apresentar infra estrutura inferior à de uma unidade não hospitalar de atendimento às urgências e emergências, conforme descrito no Capítulo III - item 2 deste Regulamento:
(...)
2.1.1 – Recursos Humanos
Toda equipe da Unidade deve ser capacitada nos Núcleos de Educação em Urgências e treinada em serviço e, desta forma, capacitada para executar suas tarefas. No caso do treinamento em serviço, o Responsável Técnico pela Unidade será o coordenador do programa de treinamento dos membros da equipe. Uma cópia do programa de treinamento (conteúdo) ou as linhas gerais dos cursos de treinamento devem estar disponíveis para revisão; deve existir ainda uma escala de treinamento de novos funcionários.
(...)
CAPÍTULO VII
NÚCLEOS DE EDUCAÇÃO EM URGÊNCIAS
As urgências não se constituem em especialidade médica ou de enfermagem e nos cursos de graduação a atenção dada à área ainda é bastante insuficiente. No que diz respeito à capacitação, habilitação e educação continuada dos trabalhadores do setor, observa-se ainda a fragmentação e o baixo aproveitamento do processo educativo tradicional e a insuficiência dos conteúdos curriculares dos aparelhos formadores na qualificação de profissionais para as urgências, principalmente, em seu componente pré- hospitalar móvel. Também se constata a grande proliferação de cursos de iniciativa privada de capacitação de recursos humanos para a área, com grande diversidade de programas e conteúdos e cargas horárias, sem a adequada integração à realidade e às diretrizes do Sistema Único de Saúde – SUS.
Assim, considerando o ainda importante grau de desprofissionalização, falta de formação e educação continuada dos trabalhadores das urgências, resultando em comprometimento da qualidade na assistência e na gestão do setor; a necessidade de criar estruturas capazes de problematizar a realidade dos serviços e estabelecer o nexo entre trabalho e educação, de forma a resgatar o processo de capacitação e educação continuada para o desenvolvimento dos serviços e geração de impacto em saúde dentro de cada nível de atenção; a necessidade de estabelecimento de currículos mínimos de capacitação e habilitação para o atendimento às urgências, face aos inúmeros conteúdos programáticos e cargas horárias existentes no país e que não garantem a qualidade do aprendizado; o grande número de trabalhadores já atuando no setor e a necessidade de garantir-lhes habilitação formal, obrigatória e com renovação periódica para o exercício profissional e a intervenção nas urgências e ainda, considerando a escassez de docentes capazes de desenvolver um enfoque efetivamente problematizador na educação e a necessidade de capacitar instrutores e multiplicadores com certificação e capacitação pedagógica para atender a demanda existente é que este Regulamento Técnico propõe aos gestores do SUS a criação, organização e implantação de Núcleos de Educação em Urgências – NEU.
(...)
2 - Grades de Temas, Conteúdos, Habilidades, Cargas Horárias Mínimas para a Habilitação e Certificação dos Profissionais da Área de Atendimento às Urgências e Emergências:
B - 3 – Médicos[6] (...) (grifei)
Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência foram definidos pela Resolução CFM nº 2.077/14 como[7]:
Art. 1° Esta resolução se aplica aos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência, públicos e privados, civis e militares, em todos os campos de especialidade.
Parágrafo único. Entende-se por Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência os denominados prontos-socorros hospitalares, pronto-atendimentos hospitalares, emergências hospitalares, emergências de especialidades ou quaisquer outras denominações, excetuando-se os Serviços de Atenção às Urgências não Hospitalares, como as UPAs e congêneres. (grifei)
Esta mesma Resolução determinou no seu artigo 7:
Art. 7º Tornar necessária a qualificação mínima dos profissionais médicos para o trabalho em UPAs, mediante o disposto no Capítulo VII, item 2, alínea B-3 da Portaria nº 2.048/GM/MS, de 5 de novembro de 2002, capacitação essa de responsabilidade dos gestores, segundo preconizado pela portaria. (grifei)
Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) 24h e congêneres, foram definidos pela Resolução CFM nº 2.079/14 como[8]:
Art. 1° Esta resolução se aplica às UPAs 24h e a todas as unidades 24h não hospitalares congêneres de atendimento às urgências e emergências, doravante denominadas UPAs.
Art. 2º Define-se como UPA o estabelecimento de saúde de complexidade intermediária entre as unidades básicas de saúde/Saúde da Família e a rede hospitalar, devendo com essas compor uma rede organizada de atenção às urgências. (grifei)
No Anexo da Resolução supracitada, considera-se como parte da estrutura de uma UPA:
Define-se como Sala de Estabilização a área física da UPA onde são atendidos os pacientes com iminente risco de vida ou sofrimento intenso, necessitando de intervenção médica imediata.
Define-se como Sala de Observação de Pacientes com Potencial de Gravidade a área física da UPA onde são mantidos os pacientes que necessitem vigilância constante e possível intervenção imediata. (grifei)
Esta mesma Resolução determinou no seu artigo 7:
Art. 7º Tornar necessária a qualificação mínima dos profissionais médicos para o trabalho em UPAs, mediante o disposto no Capítulo VII, item 2, alínea B-3 da Portaria nº 2.048/GM/MS, de 5 de novembro de 2002, capacitação essa de responsabilidade dos gestores, segundo preconizado pela portaria. (grifei)
De forma análoga, as denominadas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) foram definidas pela Resolução do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) nº 170 de 06.11.2007, no seu Anexo I[9]:
Os Serviços de Tratamento Intensivo têm por objetivo prestar atendimento a pacientes graves ou de risco, potencialmente recuperáveis, que exijam assistência médica ininterrupta, com apoio de equipe de saúde multiprofissional, além de equipamento e recursos humanos especializados.
I - Paciente Grave - paciente que apresenta instabilidade de um ou mais sistemas orgânicos, com risco de morte.
II - Paciente de Risco - paciente que possui alguma condição potencialmente determinante de instabilidade. (grifei)
Nessa mesma linha, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) da Anvisa nº 07 de 2010[10]:
Art. 4º Para efeito desta Resolução, são adotadas as seguintes definições:
(...)
XXVI - Unidade de Terapia Intensiva (UTI): área crítica destinada à internação de pacientes graves, que requerem atenção profissional especializada de forma contínua, materiais específicos e tecnologias necessárias ao diagnóstico, monitorização e terapia. (grifei).
Ainda a supracitada Resolução estabelece:
Art. 13 Deve ser formalmente designado um Responsável Técnico médico, um enfermeiro coordenador da equipe de enfermagem e um fisioterapeuta coordenador da equipe de fisioterapia, assim como seus respectivos substitutos.
§ 1º O Responsável Técnico deve ter título de especialista em Medicina Intensiva para responder por UTI Adulto; habilitação em Medicina Intensiva Pediátrica, para responder por UTI Pediátrica; título de especialista em Pediatria com área de atuação em Neonatologia, para responder por UTI Neonatal;
(...)
Art. 14. Além do disposto no Artigo 13 desta RDC, deve ser designada uma equipe multiprofissional, legalmente habilitada, a qual deve ser dimensionada, quantitativa e qualitativamente, de acordo com o perfil assistencial, a demanda da unidade e legislação vigente, contendo, para atuação exclusiva na unidade, no mínimo, os seguintes profissionais:
I - Médico diarista/rotineiro: 01 (um) para cada 10 (dez) leitos ou fração, nos turnos matutino e vespertino, com título de especialista em Medicina Intensiva para atuação em UTI Adulto; habilitação em Medicina Intensiva Pediátrica para atuação em UTI Pediátrica; título de especialista em Pediatria com área de atuação em Neonatologia para atuação em UTI Neonatal;
II - Médicos plantonistas: no mínimo 01 (um) para cada 10 (dez) leitos ou fração, em cada turno.
Estas definições foram reforçadas mais recentemente pela Portaria GM/MS nº 890 de 31 de março de 2017 cujo Capítulo II do Anexo define[11]:
2. O cuidado intensivo poderá ser realizado em Unidade de Terapia Intensiva - UTI ou Unidades de Cuidados Intermediários - UCI.
2.1 A Unidade de Terapia Intensiva - UTI é um serviço hospitalar destinado a usuários em situação clínica grave ou de risco, clínico ou cirúrgico, necessitando de cuidados intensivos, assistência médica, de enfermagem e fisioterapia, ininterruptos, monitorização contínua durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia, além de equipamentos e equipe multidisciplinar especializada, classificadas como:
I - Unidade de Terapia Intensiva Adulto UTI-a;
II - Unidade de Terapia Intensiva Coronariana - UCO;
III - Unidade de Terapia Intensiva Queimados UTI-q;
IV - Unidade de Terapia Intensiva Pediátrico UTI-ped; e
V - Unidade de Terapia Intensiva Neonatal - UTIN.
2.2 A Unidade de Cuidado Intermediário - UCI é um serviço hospitalar destinado a usuários em situação clínica de risco moderado, que requerem monitorização e cuidados semi-intensivos, intermediários entre a unidade de internação e a unidade de terapia intensiva, necessitando de monitorização contínua durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia, além de equipamentos e equipe multidisciplinar especializada, podendo ser classificada como:
I. Unidade de Cuidado Intermediário Adulto UCI-a;
II. Unidade de Cuidado Intermediário Pediátrico UCI-ped;
III. Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Convencional - UCINCo;
IV. Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Canguru - UCINCa. (grifei)
Esta Portaria Ministerial determina que poder ser feita a habilitação da UTI-a Tipo II, a mesma deverá contar com a seguinte equipe multiprofissional mínima:
I - 01 (um) médico responsável técnico com jornada mínima de 4 horas diárias, podendo acumular o papel de médico rotineiro, com habilitação em Terapia Intensiva comprovada por título;
II - 01 (um) médico rotineiro, com jornada de 04 (quatro) horas diárias, para a unidade, com habilitação em Terapia Intensiva comprovada por título;
III - 01 (um) médico plantonista, para cada 10 (dez) leitos ou fração, em cada turno, com no mínimo três certificações entre as descritas a seguir:
a) Suporte avançado de vida em cardiologia;
b) Fundamentos em medicina intensiva;
c) Via aérea difícil;
d) Ventilação mecânica; e
e) Suporte do doente neurológico grave (grifei)
Como visto acima, idealmente as unidades de urgência e emergência (UPA e PS), considerando a complexidade do tipo de pacientes a que se destinam, deveriam funcionar apenas com médicos detentores de título de especialista em Medicina de Emergência ou com certificação em Medicina de Urgência; e as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) com médicos detentores de título de especialista em Medicina Intensiva. Entretanto, em razão da inexistência de número suficientes destes profissionais assim qualificados, o atendimento nessas unidades deveria ser feito por médicos detentores de qualificações técnicas mínimas, comprovadas por cursos de especialização, capacitação e aperfeiçoamento hoje existentes, como o Curso de Suporte avançado de vida em cardiologia (ACLS), Curso de Suporte Avançado de Vida no Trauma (ATLS), Curso de Fundamentos em medicina intensiva (FCCS), Curso de Via aérea difícil (VAD), Curso de Ventilação mecânica (VM), Curso de Suporte do doente neurológico grave, etc., tal como exigem algumas das normas citadas.
A exigência de qualificações especificas também se dá em outras áreas diferentes da Medicina de Emergência e de Medicina Intensiva. Como exemplo podemos citar a Resolução CFM nº 2.173/2017 que define os critérios do diagnóstico de morte encefálica no Brasil. Referida Resolução estabelece no seu artigo 3º:
Art. 3º O exame clínico deve demonstrar de forma inequívoca a existência das seguintes condições:
(...)
§ 1º Serão realizados dois exames clínicos, cada um deles por um médico diferente, especificamente capacitado a realizar esses procedimentos para a determinação de morte encefálica.
§ 2º Serão considerados especificamente capacitados médicos com no mínimo um ano de experiência no atendimento de pacientes em coma e que tenham acompanhado ou realizado pelo menos dez determinações de ME ou curso de capacitação para determinação em ME, conforme anexo III desta Resolução.
§ 3º Um dos médicos especificamente capacitados deverá ser especialista em uma das seguintes especialidades: medicina intensiva, medicina intensiva pediátrica, neurologia, neurologia pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência. Na indisponibilidade de qualquer um dos especialistas anteriormente citados, o procedimento deverá ser concluído por outro médico especificamente capacitado. (grifei)
Importante destacar que a necessidade de capacitação para o diagnóstico de morte encefálica, decorre de exigência estabelecida pelo art. 17, § 3º do Decreto nº 9.175 de 18 de outubro de 2017 (que regulamenta a Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997), que assim estabelece:
§ 3º Os médicos participantes do processo de diagnóstico da morte encefálica deverão estar especificamente capacitados e não poderão ser integrantes das equipes de retirada e transplante. (grifei)
Entretanto, a própria Lei nº 9.175/97 não faz qualquer exigência de capacitação, bastando a condição apenas de “médico”:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (grifei)
Desta forma, os exemplos acima citados, mostram qualificações que embora plenamente justificadas e com clara pertinência lógica, não são exigidas por lei em sentido formal, mas por normas infralegais (decretos, portarias ministeriais e resoluções de órgãos colegiados), que correm o risco de ter sua eficácia suspensa judicialmente por não atender o disposto no art. 5º, XIII da Carta Magna.
As condições de vida e trabalho a que boa parte dos profissionais médicos têm se submetido demonstra uma evidente perda do status quo. Remuneração abaixo das expectativas e da média do mercado, redução significativa da clientela particular, redução relativa e absoluta da atividade em consultório, dependência econômico/financeira da atividade liberal à contratos e convênios com sistema empresarial de prestação de serviços, aumento absoluto da jornada de trabalho para garantir a manutenção de um padrão salarial, são algumas evidências que atestam o declínio social do médico. Nesse cenário, o médico que durante muitos anos se dedicou ao exercício de uma determinada especialidade (urologia, dermatologia, neurologia, etc.) se vê na necessidade de procurar outras fontes de renda e volta a ingressar no mercado de trabalho das urgências e emergências em Unidades de Pronto Atendimento e Pronto Socorro, sem contar evidentemente com conhecimentos e habilidades atualizadas para tanto, amparados na ampla permissão legal de que bastaria apenas o diploma de médico e a inscrição no Conselho Regional de Medicina para o exercício da medicina em qualquer área ou mesmo especialidade. Isso acarreta não apenas uma série de riscos éticos e legais para o médico, mas principalmente para os pacientes graves e com risco de vida, alvos do seu atendimento. O princípio da supremacia do interesse público e as normas constitucionais que protegem a vida e a saúde, assim como aquelas que tornam como dever do Estado sua proteção, obrigam a adoção de medidas de segurança dentro dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Conforme o estudo “Demografia Médica 2018”, que traz dados sobre o número e a distribuição de médicos no Brasil, coordenado pelo professor da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, com o apoio institucional do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), nunca houve um crescimento tão grande da população médica no Brasil num período tão curto de tempo. Em pouco menos de cinco décadas, o total de médicos aumentou num ritmo três vezes maior do que o de brasileiros. No entanto, esse salto não trouxe os benefícios que a sociedade espera. A pesquisa mostrou uma grande concentração de profissionais nas regiões mais desenvolvidas, nas capitais e no litoral. Por exemplo, o Sudeste é a região com maior razão de médicos por 1.000 habitantes (2,81) contra 1,16, no Norte, e 1,41, no Nordeste. Somente o Estado de São Paulo concentra 21,7% da população e 28% do total de médicos do País. Por sua vez, o Distrito Federal tem a razão mais alta, com 4,35 médicos por mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro, com 3,55. Na outra ponta estão Estados do Norte e Nordeste. O Maranhão mantém a menor razão entre as unidades federativas, com 0,87 médico por mil habitantes, seguido pelo Pará, com razão de 0,97[12]. Em relação à quantidade de médicos nos 27 estados e nas cinco regiões do Brasil, foi reforçada a tendência já observada nas outras três edições da pesquisa: há desigualdades na distribuição de profissionais em todo país. No Brasil, considerando uma população de mais de 200 milhões de habitantes, a média é de 2,18 médicos para cada 1.000 pessoas, mas há capitais em que a proporção é de mais de 10 profissionais para a mesma população e regiões em que não há sequer um médico para atender o mesmo número de habitantes. O número de vagas ociosas na residência médica também é alarmante. São 58.077 vagas autorizadas pela CNMR e apenas 35.178 delas são preenchidas. Cerca de 40% das vagas não são ocupadas. Os motivos variam entre a falta de financiamento de bolsas, a infraestrutura insuficiente, a ausência de médicos orientadores e a desistência de residentes do primeiro ano[13].
Na opinião do Presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Dr. Lincoln Ferreira[14]:
“formar médicos custa caro. Formar maus médicos custa muito mais caro. E por um longo período. Médicos malformados são mais inseguros, solicitam exames desnecessários, não utilizam os tratamentos apropriados, não seguem os protocolos corretos, aumentando o tempo de internação dos pacientes e de intervenção médica sem real necessidade. Sobrecarregam o sistema de saúde, principalmente o público, que carece de mecanismos de gestão, precarizam a prevenção dos agravos e, pior, colocam em risco a vida dos brasileiros”.
A proliferação de estabelecimentos de ensino privados, sem um controle rigoroso, compromete a qualidade do ensino dos jovens estudantes, configurando-se como um risco à formação dos novos médicos. A abertura sem precedentes no número de cursos e escolas médicas levou ao aumento no tamanho da população médica, que, no entanto, carece de políticas públicas que estimulem a migração e a fixação de profissionais em áreas do interior e menos desenvolvidas. O crescimento do número de escolas médicas não tem sido acompanhado da ampliação do número de hospitais-escolas para o exercício prático do aprendizado e nem de vagas nas Residências Médicas.
Atualmente, estima-se que o Brasil conta com 341 escolas médicas. Nesse quesito, fica atrás apenas da Índia, que tem mais 1 bilhão de habitantes, e a frente de países como a China, Estados Unidos, indonésia e Paquistão – todos mais populosos. Desde 2011 passaram a funcionar 162 cursos de medicina, sendo 116 (71%) privados. No total, 42 dessas instituições estão em municípios com menos de 100 mil habitantes, com infraestrutura precária para o ensino médico (com déficit de leitos de internação, de equipes de saúde da família e sem hospitais adequados à formação dos profissionais).[15] Pelo quadro atual, em pouco tempo, o país ultrapassará a marca de 500 mil médicos em atividade, com média de 2,5 médicos por mil habitantes, índice próximo ao de nações como Japão e Canadá[16].
Após diversas manifestações públicas do Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e de outras instituições da área médica contra a abertura indiscriminada de escolas de Medicina, foi assinada a Portaria CNE/CES Nº 328, de 05 de abril de 2018 que impede a criação de novos cursos de Medicina no país, pertencentes ao sistema federal de ensino superior, durante cinco anos. A moratória é resultado de um esforço que visa a boa formação médica e o atendimento de excelência à população. Entretanto, o Ministério de Educação (MEC) vem sinalizando a intenção de revogar a Portaria CNE/CES nº 328/2018 e permitir novamente a abertura de escolas médicas[17].
Agrava-se a situação com a vinda de médicos formados no exterior, principalmente em faculdades das fronteiras de Bolívia e Paraguai que não contam com estrutura acadêmica e hospitais de treinamento que garantam uma adequada formação profissional. Tais profissionais devem se submeter, por lei, a um processo de revalidação do diploma de médico obtido no exterior.