A necessidade de um exame nacional de avaliação do médico no Brasil (ENAM)

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I. A REALIDADE DO ENSINO MÉDICO NO BRASIL

A realidade da situação do ensino médico no Brasil e consequentemente da qualidade do exercício profissional do médico tem se tornado uma preocupação cada vez mais crescente, principalmente porque o alvo ou destino desse exercício é a população brasileira acometida por doenças ou agravos a sua saúde, muitas vezes revestidas de gravidade ou com risco de vida, demandando do profissional médico a garantia de uma formação adequada, com conhecimentos e habilidades suficientes para permitir o restabelecimento da saúde dessa população.

Infelizmente, ao longo dos anos, a formação do profissional médico vem sofrendo um deterioro gradual e progressivo, decorrente da proliferação indiscriminada de escolas médicas e o aumento de vagas de forma desproporcional à demanda e necessidades reais do país.

Conforme o estudo “Demografia Médica 2018”, que traz dados sobre o número e a distribuição de médicos no Brasil, coordenado pelo professor da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, com o apoio institucional do CFM e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), nunca houve um crescimento tão grande da população médica no Brasil num período tão curto de tempo. Em pouco menos de cinco décadas, o total de médicos aumentou num ritmo três vezes maior do que o de brasileiros. No entanto, esse salto não trouxe os benefícios que a sociedade espera. A pesquisa mostrou uma grande concentração de profissionais nas regiões mais desenvolvidas, nas capitais e no litoral. Por exemplo, o Sudeste é a região com maior razão de médicos por 1.000 habitantes (2,81) contra 1,16, no Norte, e 1,41, no Nordeste. Somente o Estado de São Paulo concentra 21,7% da população e 28% do total de médicos do País. Por sua vez, o Distrito Federal tem a razão mais alta, com 4,35 médicos por mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro, com 3,55. Na outra ponta estão Estados do Norte e Nordeste. O Maranhão mantém a menor razão entre as unidades federativas, com 0,87 médico por mil habitantes, seguido pelo Pará, com razão de 0,97[1]. Em relação à quantidade de médicos nos 27 estados e nas cinco regiões do Brasil, foi reforçada a tendência já observada nas outras três edições da pesquisa: há desigualdades na distribuição de profissionais em todo país. No Brasil, considerando uma população de mais de 200 milhões de habitantes, a média é de 2,18 médicos para cada 1.000 pessoas, mas há capitais em que a proporção é de mais de 10 profissionais para a mesma população e regiões em que não há sequer um médico para atender o mesmo número de habitantes. O número de vagas ociosas na residência médica também é alarmante. São 58.077 vagas autorizadas pela CNMR e apenas 35.178 delas são preenchidas. Cerca de 40% das vagas não são ocupadas. Os motivos variam entre a falta de financiamento de bolsas, a infraestrutura insuficiente, a ausência de médicos orientadores e a desistência de residentes do primeiro ano[2].

Na opinião do Presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Dr. Lincoln Ferreira[3]:

“formar médicos custa caro. Formar maus médicos custa muito mais caro. E por um longo período. Médicos malformados são mais inseguros, solicitam exames desnecessários, não utilizam os tratamentos apropriados, não seguem os protocolos corretos, aumentando o tempo de internação dos pacientes e de intervenção médica sem real necessidade. Sobrecarregam o sistema de saúde, principalmente o público, que carece de mecanismos de gestão, precarizam a prevenção dos agravos e, pior, colocam em risco a vida dos brasileiros”.

A proliferação de estabelecimentos de ensino privados, sem um controle rigoroso, compromete a qualidade do ensino dos jovens estudantes, configurando-se como um risco à formação dos novos médicos. A abertura sem precedentes no número de cursos e escolas médicas levou ao aumento no tamanho da população médica, que, no entanto, carece de políticas públicas que estimulem a migração e a fixação de profissionais em áreas do interior e menos desenvolvidas. O crescimento do número de escolas médicas não tem sido acompanhado da ampliação do número de hospitais-escolas para o exercício prático do aprendizado e nem de vagas nas Residências Médicas.

Atualmente, estima-se que o Brasil conta com 341 escolas médicas. Nesse quesito, fica atrás apenas da Índia, que tem mais 1 bilhão de habitantes, e a frente de países como a China, Estados Unidos, indonésia e Paquistão – todos mais populosos. Desde 2011 passaram a funcionar 162 cursos de medicina, sendo 116 (71%) privados. No total, 42 dessas instituições estão em municípios com menos de 100 mil habitantes, com infraestrutura precária para o ensino médico (com déficit de leitos de internação, de equipes de saúde da família e sem hospitais adequados à formação dos profissionais).[4] Pelo quadro atual, em pouco tempo, o país ultrapassará a marca de 500 mil médicos em atividade, com média de 2,5 médicos por mil habitantes, índice próximo ao de nações como Japão e Canadá[5].

Após diversas manifestações públicas do Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e de outras instituições da área médica contra a abertura indiscriminada de escolas de Medicina, foi assinada a Portaria CNE/CES Nº 328, de 05 de abril de 2018 que impede a criação de novos cursos de Medicina no país, durante cinco anos. A moratória é resultado de um esforço que visa a boa formação médica e o atendimento de excelência à população. Entretanto, o Ministério de Educação (MEC) vem sinalizando a intenção de revogar a Portaria CNE/CES nº 328/2018 e permitir novamente a abertura de escolas médicas[6].

Agrava-se a situação com a vinda de médicos formados no exterior, principalmente em faculdades das fronteiras de Bolívia e Paraguai que não contam com estrutura acadêmica e hospitais de treinamento que garantam uma adequada formação profissional. Tais profissionais devem se submeter, por lei, a um processo de revalidação do diploma de médico obtido no exterior.

Relevante se faz, portanto, estabelecer mecanismos de filtro que testem a suficiência de conhecimentos e habilidades para que o médico formado no Brasil ou no exterior, com seu diploma concedido ou revalidado por universidade brasileira conforme ditames legais em vigor, possa obter sua inscrição no respectivo Conselho Regional de Medicina, que lhe permitam exercer legalmente a medicina no Brasil.


II. DO EXERCÍCIO DA MEDICINA NO BRASIL

Para o exercício legal da medicina como profissão regulamentada há que se verificar o disposto na Lei Maior e nas Leis infraconstitucionais:

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL, no seu art. 5º, inc. XIII estabelece que:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (grifei)

Ora, somente Lei em sentido formal, poderá estabelecer as qualificações para o exercício da medicina.

O DECRETO Nº 20.931 DE 11 DE JANEIRO DE 1932 (Revogado pelo Decreto nº 99.678, de 1990 e Revigorado pelo Decreto de 12 de julho de 1991) estabelece:

Art. 1º O exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeiro ficam sujeito à fiscalização na forma deste decreto.

Art. 2º Só é permitido o exercício das profissões enumeradas no art. 1.°, em qualquer ponto do território nacional, a quem se achar habilitado nelas de acordo com as leis federais e tiver título registrado na forma do art. 5º deste decreto.

Art. 5º É obrigatório o registro do diploma dos médicos e demais profissionais a que se refere o art. 4.º, no Departamento Nacional de Saúde Pública e na repartição sanitária estadual competente. (grifei)    

A LEI FEDERAL No 3.268, DE 30 DE SETEMBRO DE 1957 (Dispõe sobre os Conselhos de Medicina, e dá outras providências) determina que:

Art . 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade. (grifei)

Art . 18. Aos profissionais registrados de acordo com esta lei será entregue uma carteira profissional que os habilitará ao exercício da medicina em todo o País.

Da legislação supracitada, claramente se desprende que para exercer legalmente a medicina deve-se cumprir com as seguintes exigências legais (qualificações legais):

1.- Possuir Diploma conferido por Faculdade de Medicina oficial ou reconhecida no país ou revalidado conforme a legislação em vigor.

                               2.- Registro do Diploma de Médico no MEC.

3.- Registro (inscrição) no Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde exercerá a medicina

Destaque-se, que as normas legais claramente fazem distinção entre qualificações exigidas para a obtenção de diplomas, para revalidação de diplomas, para o registro do diploma no MEC e para o registro do diploma no respectivo Conselho Regional de Medicina. Perante a Lei, as qualificações exigidas buscam objetivos diferentes.

Assim, uma prova exigida por lei para obtenção de diploma, não poderia se confundir com uma prova para revalidar um diploma ou com uma prova para registrar um diploma, mais ainda quando tais provas são exigidas por entidades diferentes.

Nesse sentido, a Lei 12871/2013, que criou o Programa Mais Médicos (PMM), instituiu a avaliação específica para curso de graduação em Medicina:

Art. 9º É instituída a avaliação específica para curso de graduação em Medicina, com instrumentos e métodos que avaliem conhecimentos, habilidades e atitudes, conforme ato do Ministro de Estado da Educação. (Redação dada pela Lei nº 13.530, de 2017).

Este dispositivo foi regulamentado pela Resolução CNE/CES nº 3 de 20 de junho de 2014:

Art. 36. Fica instituída a avaliação específica do estudante do Curso de Graduação em Medicina, a cada 2 (dois) anos, com instrumentos e métodos que avaliem conhecimentos, habilidades e atitudes, devendo ser implantada no prazo de 2 (dois) anos a contar da publicação desta Resolução.

§ 1º A avaliação de que trata este artigo é de caráter obrigatório, processual, contextual e formativo, considerando seus resultados como parte do processo de classificação para os exames dos programas de Residência Médica, credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), sendo sua realização de âmbito nacional.

§ 2º A avaliação de que trata este artigo será implantada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) para as Instituições de Educação Superior, no âmbito dos Sistemas de Ensino.

Em 2016 a Portaria MEC Nº 982 de 25 de agosto de 2016, instituiu a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM) cujo art. 5º estabelece:

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Art. 5o A ANASEM constitui componente curricular obrigatório e a situação de sua regularidade deve ser inserida no histórico escolar do estudante, sendo condição para a diplomação, em consonância ao disposto no art. 9o da Lei no 12.871, de 2013.

§ 1o Aos estudantes dos 2o e 4o anos que se ausentarem, desde que apresentem justificativa adequada, será oferecida nova oportunidade no ANASEM subsequente. Aos estudantes do 6o ano que se ausentarem desde que apresentem justificativa adequada, será oferecida nova oportunidade de avaliação trinta dias após a data do exame.

§ 2o A ausência de inscrição e/ou participação dos estudantes e/ou cursos na avaliação ensejará na aplicação de penalidades cabíveis, nos termos da legislação vigente. (grifei)

No entanto, a Lei Federal e os atos do Ministro de Educação (Resolução e Portaria) determinaram uma avaliação específica do estudante do curso de graduação em Medicina, em caráter obrigatório, processual, contextual e formativo, e como componente curricular obrigatório, devendo sua situação de regularidade ser inserida no histórico escolar do estudante, sendo condição para a diplomação.

Essa determinação assemelha-se com a determinação que a Lei nº 10.861/2004 fixou para o ENADE no art. 5º, § 5º:

§ 5º O ENADE é componente curricular obrigatório dos cursos de graduação, sendo inscrita no histórico escolar do estudante somente a sua situação regular com relação a essa obrigação, atestada pela sua efetiva participação ou, quando for o caso, dispensa oficial pelo Ministério da Educação, na forma estabelecida em regulamento.

Portanto, o que condiciona a diplomação do estudante, não é a aprovação ou reprovação do exame (ANASEM ou ENADE) mas o registro de participação ou dispensa justificada como requisitos indispensáveis para a emissão do histórico escolar, já que se tornam componentes curriculares obrigatório dos cursos de graduação de Medicina. Apenas o estudante que não faz a prova se encontrará em situação IRREGULAR e não poderá receber o seu diploma enquanto não regularizar a sua situação junto à ANASEM ou o ENADE, haja vista não ter concluído o respectivo curso de graduação (ANASEM e o ENADE são componentes curriculares obrigatórios). Entretanto, o estudante com formação deficiente e reprovado nesses exames, estará regular e apto para se diplomar e obter sua inscrição no Conselhos Regional de Medicina, podendo exercer regularmente a medicina, nessa condição de comprovada má formação e inaptidão, expondo assim, a população aos riscos de falha de diagnóstico e tratamento, decorrentes de negligencia, imperícia e imprudência, com eventual desfecho fatal.

Ainda, resta evidente que a ANASEM configura uma avaliação repetitiva do que já faz o ENADE, não buscando o objetivo primordial, qual seja, filtrar apenas egressos que possuam uma formação adequada que lhe permita obter a devida licença médica que garanta uma prestação de serviço de saúde digna à população. Nesse sentido, torna-se desnecessário duplicidades de esforços e custo para duas provas que cumprem a mesma função.

Nenhuma das duas provas, portanto, tem por finalidade serem filtros para impedir a diplomação em razão de aptidão e garantia de boa formação. Claramente ambas as provas avaliam e penalizam as instituições de educação superior (IES) que oferecem cursos de graduação em medicina.

Recentemente o Ministro de Educação, Abraham Weintraub, reconheceu que pela legislação atual existe impedimento de diplomação apenas para quem não fizer a prova do ENADE mas não para quem reprovar ou obter nota baixa, pelo que mudanças nesse sentido para impedir que reprovados possam colar grau devem passar por mudança na Lei no Congresso Nacional[7] [8].

Mister se faz, portanto, estabelecer mecanismos legais que criem ferramentas que não apenas avaliem os conhecimentos e habilidades do médico diplomado, mas que sirvam de filtro para impedir que aqueles que não participem de forma injustificada e/ou que forem reprovados não possam obter o correspondente registro no Conselho Regional de Medicina.

Assim uma Prova ou Exame realizada pelo Conselho de Medicina, na forma de Exame Nacional de Avaliação do Médico (ENAM), cumpriria perfeitamente este objetivo, ao estabelecer como condição para obtenção do registro no respectivo Conselho Regional, não apenas a participação, mas também a aprovação com base numa nota mínima de corte.

Desta forma, aprovando-se o Exame Nacional do Médico (ENAM), impõe-se a revogação do art.9º da Lei 12.871 de 22 de outubro de 2013. 

Exames de Proficiência em Medicina já vem sendo realizados no Estado de São Paulo desde 1990 e no Estado de Goiás desde 2017, instituídos por Resoluções dos respectivos Conselhos Regionais. Entretanto, tais exames são realizados sem caráter de obrigatoriedade, já que mesmo apenas a exigência de obrigatoriedade de participação como condição para obter o registro, tem sido vedada pela justiça, com fundamento em que somente por lei poderia ser exigida essa obrigatoriedade.

Sobre os autores
Alejandro Enrique Barba Rodas

MEDICO INTENSIVISTA QUE ATUA COMO ASSISTENTE TECNICO

Diana Fontes de Barba

Advogada. Especialista em Direito Médico e Hospitalar. Barros, Barba & Cerqueira. Advocacia e Consultoria jurídica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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