A (RE)CONCEPÇÃO DE DANO MORAL

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O artigo tem duas partes: a primeira definirá e compreenderá das mudanças das estruturas jurídicas; a segunda volta-se à conceituação da esfera jurídca, seus setores e quem as titulariza. A segunda parte volta-se à definição do dano moral.

INTRODUÇÃO

 

O arquétipo científico jurídico contempla uma infinidade de normas jurídicas, que são, em síntese, enunciados de dever-ser extraídos, por meio da interpretação, das fontes jurídicas, em sua excelência nos sistemas de civil law, a Lei como fonte do Direito (KELSEN, 1998, p. 35-37; LUMIA, 2003, p. 39; PONTES DE MIRANDA, 2012a, p. 59). Tais enunciados, segundo escólio de Giuseppe Lumia (2003, p. 39-63) e Manuel A. Domingues de Andrade (1997, p. 1-43), têm a função de disciplinar as relações intersubjetivas as quais o mundo jurídico atribui certas consequências.

A norma jurídica serve, justamente, como figura de recorte de quais relações sociais serão, também, regidas pelo Direito, visto que o mundo dos fatos e o mundo do Direito não se excluem, e sim estão em situação de sobreposição: F. C. Pontes de Miranda (2012a, p. 145-146) é didático ao expor tal circunstância de mútua implicância entre o fenômeno fáctico e o fenômeno jurídico ao dispor que este se sobrepõe àquele, o Direito juridiciza (= tornar jurídico) ao conferir ao fato contido na norma jurídica certa coloração que não é dada aos tratos relacionais ignorados por ele ignorado.

Em uma visão macro, o Direito compreende a confluência entre relação intersubjetiva, norma e ordenamento, isto é, consiste em uma estrutura sistematizada composta por normas que se voltam a disciplinar algumas relações sociais (LUMIA, 2003, p. 36).

Centrado no que veio a ser o escopo das partes gerais de diversas codificações (ANDRADE, 1997, p. 1), as relações jurídicas têm como termos os sujeitos, que são, valendo-se do magistério de Luciano de Camargo Penteado (2007, p. 204), os centros de imputações de posições jurídicas subjetivas ativas ou passivas, elementares ou complexas, patrimoniais ou extrapatrimoniais.

Como feixes orientados para o objeto da relação jurídica estão, então, tais posições jurídicas, usualmente denominadas direitos e deveres, incrementam de forma a contrastar o conteúdo envolvido: se, p. ex., uma relação creditícia, se uma relação dominial, se uma relação societária (LUMIA, 1981).

Centrado na interação entre os termos e suas posições jurídicas no liame de direito é que se desenvolverão as linhas a seguir:

  1. Inicialmente, será analisada a categoria do sujeito de direito, suas nuances, as bases iniciais e, em razão da sedimentação de certos anseios sociais, o novo olhar do sistema normativo, apontando, ao final, algumas posições jurídicas subjetivas;
  2. Enfrentado o tema de quem titulariza direitos e deveres, parte-se para a concepção do dano moral, traçando histórico terminológico e confrontando com os resultados obtidos no item anterior, levando em consideração julgados relevantes sobre a temática.

 


PRESSUPOSTO: OS DIREITOS A QUEM?

 

A referência humanista desenvolvida a partir, principalmente, do pós-2ªG.M. colocou a dignidade da pessoa humana como fundamento cerne das ordens jurídicas que nasceram ou se remodelaram, fundamento tal que é preenchido a partir do personalismo ético kantiano, que enuncia que as pessoas têm dignidade e valor, portanto, são fins em si mesmas e nunca meios (KANT, 2013, p. 199). Antônio Junqueira de Azevedo (2008) é enfático no sentido de que a pessoa permeia o Direito contemporâneo, o que vai ao encontro do que professorado por Karl Larenz (1978, p. 44) quanto à existência de uma relação jurídica fundamental cujo fato jurídico constitutivo é o nascimento com vida, que imputa às pessoas a esfera jurídica, composta por posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas, patrimoniais e extrapatrimoniais (MELLO, 2014, p. 92; PÁDUA, 2018).

Na interação entre os campos da ciência política e do Direito constitucional fica evidente a centralidade da pessoa como fundamento do Estado contemporâneo, que adota, segundo Ana Paula de Barcellos (2011, p. 5-36), a opção humanística de ideologia e, portanto, contempla como um dos seus fundamentos – assim como o faz a Constituição do Brasil – a dignidade da pessoa humana.

Ocorre que o dinamismo social impeliu o Direito a reconhecer que certas entidades não são contempladas com a personalidade jurídica e, consequentemente, não são pessoas em sentido jurídico, p. ex., o condomínio edilício, a família, a massa falida, o nascituro. A tais sujeitos o plano do Direito não relega posições jurídicas subjetivas, eis que o ordenamento legal reconhece a capacidade de estar em juízo para resguardar interesses creditícios, conforme previsão contida no art. 75 do Código de Processo Civil brasileiro.

A profunda alteração na óptica juscientífica repercutiu na qualificação jurídica do titular das posições jurídicas subjetivas, particularmente no reconhecimento de que entidades desprovidas de personalidade jurídica, os entes despersonificados, ostentam esfera jurídica e, consequentemente, têm posições jurídicas subjetivas tanto de cunho patrimonial quanto de cunho extrapatrimonial (PÁDUA, 2019, p. 121).

Célebre é a sintetização das duas espécies acima, os entes personificados e os entes não-personificados, por meio do ensino de Marcos Bernardes de Mello de que há mais sujeitos de direitos do que pessoas (2014, p. 143-150), sendo que o mesmo o autor não nega que a ambas as espécies em questão o mundo jurídico reconhece os setores patrimonial e não-patrimonial, o que, por conseguinte, significa que há posições demoradas em tais áreas da esfera jurídica que podem ou não podem ser imediatamente valoradas economicamente e expressas em pecúnia.

Valendo-se da terminologia desenvolvida por Thomas S. Kuhn (2003, p. 11-12), o paradigma fundado no personalismo ético kantiano sofreu fissuras profundas ao ponto de se buscar um novo arcabouço instrumental, que culminou no reconhecimento, pela comunidade jurídica, da pessoa como titular de posições jurídicas por excelência, mas não a única, dividindo o tráfego jusrelacional com outra espécie subjetiva que, por sua vez, não é atribuída personalidade.

Com essa mudança focal é que posições jusfundamentais, aquelas ligadas à própria existência de quem as titulariza, são reconhecidas a, p. ex., nascituro, ao condomínio edilício, à família. Ingo Wolfgang Sarlet (CANOTILHO; MENDES; SARLET; STRECK, 2018, p. 191) é categórico ao asseverar que direitos e garantias fundamentais, apesar do teto constitucional falar em pessoas físicas e jurídicas, também têm como titulares (sujeito ativo da relação jurídica) e destinatários (sujeito passivo da relação jurídica) os entes despersonalizados, eis que eles estão inseridos nos núcleos sociais e, por isso, interagem com as demais espécies de sujeitos de direito.

A síntese do caminho traçado pode ser desenvolvida a partir da noção geográfica de Karl Larenz (1978) de que a esfera jurídica contempla posições jurídicas de diversas ordens que gravitam em torno de um centro: antes a pessoa, agora, os sujeitos de direito, conforme quadro esquemático a seguir, em que ‘’S.P.’’ é o setor patrimonial, enquanto ‘’S.E.’’, setor extrapatrimonial e a seta mostra a transição do pensamento quanto ao centro de atribuição jurídica:

Logo, se sujeitos de direitos titularizam posições jusfundamentais, inevitável que também sejam o centro de gravitação de esfera jurídica, contrastando que os alicerces do sistema jurídico contemporâneo mostram que o gênero em questão têm tanto um setor de posições jurídicas patrimoniais quanto um setor de posições não-patrimoniais, setores estes abertos ao mútuo diálogo diante da possibilidade de parcela dos direitos neles insertos dialogarem, p. ex., o que acontece com a imagem, bem extrapatrimonial que tem certas feições patrimoniais.

 


DELIMITAÇÃO TERMINOLÓGICA: O QUE É O DANO MORAL?

 

Como premissa base que se alinha à compreensão de esfera jurídica, o dano moral encontra em F. C. Pontes de Miranda (2012c, p. 104-105) sua acepção mais ampla, qual seja, de se tratar de um dano não-patrimonial, que atinge o indivíduo como indivíduo, especificamente seu setor extrapatrimonial, não lhe atinge o setor patrimonial.

Outra característica mais ampla aplicável à precisão terminológica a seguir é trazida por Carlos Roberto Gonçalves (2018b, p. 299), que elucubra que o dano moral é, sim, a consequência de ato ou evento providos de licitude ou não, mas que não se ligam à dor, à aflição causada ao estado de espírito da vítima.

Uma terceira premissa geral é que o dano em comento é um dos três elementos componentes do regramento da responsabilidade civil, que estabelece como elementos de existência para a consequência jurídica - constituir o dever derivado indenizatório – (i) o fato lícito ou ilícito, que são, em suma, a fonte do dever de reparação; (ii) o dano, aqui inclusos aqueles incidentes sobre o setor patrimonial ou sobre o setor não-patrimonial. Tal enunciação está em consonância com o entendimento sumulado pelo STJ (Súmula STJ n. 37) de que são cumuláveis na mesma ação os pedidos indenizatórios por dano material e por dano moral oriundos do mesmo fato; e (iii) o nexo causal ou relação de causalidade é o liame que relaciona causa e efeito, o comportamento ou evento com a consequência danosa (GONÇALVES, 2018b, p. 43-44).

Apesar das abstrações acima, ver-se-á uma tendência à relação dos elementos acima com a pessoa em sentido jurídico, particularmente no que diz respeito ao dano moral e aos direitos da personalidade.

A centralidade da personalidade reflete diretamente na concepção do dano moral como ato lesivo aos bens da personalidade: F. Tartuce (2013, p. 392) é assertivo ao conceber a categoria jurídica em comento como ‘’uma lesão aos direitos da personalidade’’, ‘’A ofensa do direito, neste caso, em geral, ocorre em relação ao titular de direitos integrantes de sua personalidade’’ (PODESTÁ, 2008, p. 255). Na mesma esteira, Carlos Roberto Gonçalves afirma que dano moral ‘’é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, o bom nome’’ (2018b, p. 298).

A resposta inicial é de que dano moral, então, consiste em violação a um dos atributos da personalidade, no entanto persiste a indagação subjacente, qual seja: o que são os direitos ou atributos da personalidade?

F. C. Pontes de Miranda (2012b, p. 57) é incisivo ao expor que a norma que contempla direitos da personalidade tem em seu suporte fáctico (plano da existência) a pessoa, configurando tais direitos, de acordo com Sílvio de Salvo Venosa (2018, p. 153), como posições jurídicas que gravitam em torno da personalidade, conceito que baliza tais direitos e deveres que são os atributos físicos, psíquicos e morais inerentes à pessoa. A síntese está em Christiano Cassettari (2018, p. 55): ‘’São direitos inerentes à pessoa natural ou jurídica, dotados de personalidade jurídica, que têm por objetivo promover a defesa da integridade física, moral e intelectual’’.

Na esteira de que os direitos da personalidade, ligados à persona, o Superior Tribunal de Justiça sumulou entendimento de que não só as pessoas físicas sofrem dano moral, e sim que a  pessoa jurídica pode sofrer dano moral (Súmula STJ n. 227), sendo fixado nos julgados que geraram tal ementa a questão de que a proteção dos atributos morais da personalidade para a propositura de ação de responsabilidade não está reservada somente às pessoas físicas. Aos grupos personalizados tem sido admitido o uso dessa via para proteger seu direito ao nome ou para obter a condenação de autores de propostas escritas ou atos tendentes à ruína de sua reputação. A pessoa moral pode mesmo reivindicar a proteção, senão de sua vida privada, ao menos do segredo dos negócios (REsp n. 161.739/PB).

A compreensão até então contida na seara judiciária foi transportada para a legislação civilista vigente, que estabelece que são aplicáveis às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade (art. 52, CCB/2002).

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A partir de pesquisas nas quais a súmula mencionada foi expressamente utilizada, percebe-se que o posicionamento da Corte da Cidadania manteve-se desde sua edição, em 1999, havendo 91 acórdãos, que chegam até os dias atuais[1].

O chamado paradigma do personalismo ético (PÁDUA, 2019, p. 121) ainda perdura nas decisões judiciais, especialmente nas de cunho infraconstitucional, eis que a pessoa é o titular e destinatário por excelência do sistema jurídico, mas, como anteriormente exposto, não o único.

A noção de dano moral como consequência de conduta que atenta contra direitos da personalidade ainda persiste no âmbito do STJ tomando-se como exemplo caso no qual pessoa jurídica buscou indenização por lesão à honra em razão de atraso de obras voltadas ao aumento do potencial de energia elétrica para a venda de picolés e sorvetes. Segundo a Ministra relatora Nancy Andrighi, cujo voto pilotou a unanimidade pelo não provimento recursal, ‘’Os danos morais dizem respeito à dignidade humana, às lesões aos direitos da personalidade relacionados a atributos éticos e sociais próprios do indivíduo’’ (REsp n. 1.807.242/RS).

A crise na terminologia do dano moral como violação a atributo da personalidade inicia-se com o pressuposto da teoria geral de que entes despersonalizados têm setor extrapatrimonial e, consequentemente, titularizam posições jurídicas subjetivas de cunho não-patrimonial, mas que não são da personalidade por, justamente, não ostentarem personalidade jurídica.

Considerando a insuficiência dos direitos da personalidade, que se ligam de forma histórica e etimológica à pessoa, a doutrina contemporânea (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2018, p. 301) demonstra traços mais amplos ao conceber o dano moral como a violação ao setor extrapatrimonial, especificamente às posições jurídicas extrapatrimoniais e os bens que lhes subjazem, que compreendem tanto os direitos da personalidade – núcleo de tal secção da esfera jurídica – quanto aos direitos que são titularizados pelas não-pessoas (PÁDUA, 2018).

O mesmo Superior Tribunal de Justiça que conecta direitos da personalidade como substância do dano moral é aquele que reconhece indenizabilidade às entidades despersonificadas por violação, p. ex., à honra e à imagem, o que mostra uma paulatina expansão e reconhecimento, mesmo que não expresso, de que o setor não-patrimonial contempla posições da pessoa e posições da não-pessoa. Explica-se.

Em aresto de 2015, a Corte envolveu o direito ao nascituro, nascido no curso do processo, que, com seus genitores, demandou comediante que proferiu palavras envolvendo ato libidinoso com a mãe e com o nascituro, o que, segundo o colegiado judicial, resultou em dano ao setor extrapatrimonial de todos os demandantes, reconhecendo o Ministro relator Marco Buzzi ‘’ que o protagonista da manifestação gostaria de manter relações sexuais com a esposa do outro personagem do diálogo, além do próprio nascituro, é reprovável, agressivo e grosseiro, sendo efetivamente causador de abalo moral’’ (REsp n. 1.487.089/SP).

Ainda envolvendo o nascituro, houve julgado (REsp n. 399.028/SP) cujas circunstâncias fácticas envolveram acidente em via férrea que vitimou pai ao tempo que dois dos três autores estavam no útero materno (a autora era esposa do falecido), os quais segundo a Corte, tiveram a relação familiar prejudicada de forma perpétua com a morte paternal, o que ensejou o reconhecimento e a consequente fixação do quantum indenizatório.

Noutro caso, apesar de não reconhecer o dano no caso concreto, o STJ fundamentou que é possível haver violação à honra de condomínio edilício, aplicando ao sujeito de direito em comento a Súmula STJ 227 de forma análoga, argumentando a Ministra relatora Assusete Magalhães que ‘’Embora o condomínio não possua personalidade jurídica, deve-lhe ser assegurado o tratamento conferido à pessoa jurídica, no que diz respeito à possibilidade de condenação em danos morais’’ (AgRg no AREsp n. 189.780/SP).

Ainda envolvendo o condomínio edilício, mas no âmbito estadual, o Tribunal de Justiça de São Paulo (APL n. 1017316-37.2016.8.26.0361), apesar de concluir da mesma forma que o caso da Corte nacional quanto à inexistência de dano in casu, avaliou questão de fato na qual houve corte no fornecimento de energia elétrica, pleiteando a entidade condominial compensação pelo tempo que ficou sem os serviços em questão. Em que pese inexistir personalidade jurídica e o desfecho do caso sua fundamentação, o Desembargador relator Antônio Rigolin expôs que a coletividade condominial recebe tratamento jurídico análogo ao das pessoas jurídicas quanto à tutela do setor extrapatrimonial da esfera jurídica.

Um último caso que ilustra, agora, o êxito na obtenção de indenização por condomínio edilício foi decidido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (APC n. 0077117-83.2009.8.07.0001), cujo caso concreto envolveu a violação à área não-patrimonial condominial por indevida efetivação de protesto, o que, de acordo com o Desembargador relator Flávio Rostirola, reputou em atentado ao nome e à honra condominiais, tendo como consequência a responsabilização do apresentante ao pagamento de indenização ao ente autor.

Ainda no plano dos tribunais funcionalmente inferiores ao STJ, caso apreciado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (AC n. 5006406-66.2011.4.04.7000) envolveu a responsabilização civil de entidade hospitalar por deixar que o então falecido, na figura do espólio, tivesse seu quadro clínico de leptospirose agravado em razão da não concessão de leito pela rede pública. Na fundamentação, o órgão judicial reconheceu a possibilidade do espólio pleitear direito à indenização por dano moral sofrido pelo falecido, que perdeu a vida e teve a integridade física afetada por conduta antijurídica do hospital, que deixou de cumprir com o dever constitucional de prestar saúde a todos.

O que se vê é uma época de transição terminológica ao que vem a ser o dano moral, eis que é insuficiente dizer que se trata de abalo às posições jurídicas da pessoa em sentido jurídico. A partir de um enfoque da teoria da ciência, trata-se do movimento pendular exposto por Thomas S. Kuhn (2003) no qual a comunidade científica, no caso, os juristas, busca novos alicerces para o desenvolvimento do novo conjunto principiológico para enfrentamento das problemáticas, no caso, o novo instrumental voltado à solucionar os fenômenos sociais que o ordenamento jurídico reconhece juridicidade (PÁDUA, 2019).

O desafio contido na transição acima envolve o pensamento de dois jusfilósofos. O primeiro é se tal incitação não extrapola os limites hermenêuticos e conteudísticos suscitados por Karl Engisch (2014, p. 205-274). Segundo o doutrinador (2014, p. 208), o termo inicial para compreensão de certa categoria jurídica parte do ordenamento legal vigente, que estabelece moldes a partir dos quais o intérprete deve trabalhar e, portanto, a emolduração legislativa carrega em si uma limitação do campo de atuação para extração do conteúdo normativo.

Aliando o escólio acima ao campo do dano moral, o ordenamento legal brasileiro não liga tal categoria aos direitos da personalidade, visto que há previsão genérica de que o CCB/2002 – centro de diálogo do setor juprivatista – enuncia que a responsabilização decorre de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (art. 186). A vagueza textual permite ao intérprete que caminhe com mais liberdade na definição do que seja o dano moral, inclusive, de acordo com as linhas traçadas neste artigo, algo que se liga ao gênero juscientífico sujeitos de direito, entes com e sem personalidade, e ao setor extrapatrimonial, não, necessariamente, à pessoa (PÁDUA, 2019; PÁDUA, 2018).

O segundo desafio está no raciocínio de Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 55-58), o qual assevera que a ciência contemporânea tem como finalidade imediata a interação com o senso comum e como finalidade mediata constituir-se em senso comum. Sobre a primeira, o autor informa que a cientificidade deve estabelecer um diálogo de interpenetração com outras formas do conhecimento, o que orienta os aspectos teórico e prático da ciência com o quotidiano, dando sentido à vida.

Sobre o segundo objetivo, o mediato ou remoto, a cientificidade só se realiza quando se converte em senso comum, traduzindo ao cidadão não-cientista uma nova racionalidade pautada na realização a partir da compreensão, pontualmente na autocompreensão (SANTOS, 2002, p. 57). É dizer: a ciência realiza-se ou, melhor dizendo, se sensocomuniza a partir do momento que se torna evidente para quem não está na comunidade científica, o que reverbera no autoconhecimento, na sabedoria.

Apesar das recentes elucubrações sobre a concepção de dano moral como violação do setor extrapatrimonial, a posições jurídicas extrapatrimoniais, não necessariamente a direitos da personalidade, o trato social mostra diversas relações intersubjetivas juridicamente relevantes nas quais constam o envolvimento da secção não-patrimonial de entes despersonificados, o que fica exemplificado com os julgados mencionados.

Existe uma tendência (i) ao reconhecimento pela comunidade jurídica, de que as entidades não-personificadas contemplam uma área em sua esfera jurídica na qual há posições insuscetíveis de imediata valoração econômica (MELLO, 2014, p. 93; PÁDUA, 2018; PÁDUA, 2019); e (ii) à aplicação do instituto do dano moral e a decorrente indenizabilidade como consequência jurídica pela violação das posições de tais entidade.

A decorrência inevitável é que haja uma requalificação das posições jurídicas demoradas na seara não-patrimonial dos sujeitos de direito, eis que se há comunhão, p. ex., da honra e da imagem com os seres despersonificados, então estes não são, necessariamente, direitos da personalidade, não são titularizados tão somente pelas pessoas físicas e jurídicas. Via oposta, há posições titularizáveis pelas pessoas, p. ex., direitos intelectuais (direitos autorais e propriedade industrial), o status de sócio ou acionista em sociedades empresárias ou pleitear a recuperação judicial. De uma para outra há forte interferência da ordem legal, posto que os exemplos voltados às pessoas constam expressamente na Lei de Direitos Autorais (art. 11, L. 9.610), na Lei de Propriedade Industrial (art. 128, L. 9.279), no Código Civil (art. 981, CCB/2002) e na Lei de Falências, Recuperação Judicial e Extrajudicial (art. 1º, L. 11.101).

Ocorre que tal interferência legislativa não se dá de maneira saliente, mas não total, porquanto os direitos exemplificados para as não-pessoas não constam nem de forma expressa nos marcos legais, mas também não são negados – por via expressa ou por meio de destinação específica a quem tem personalidade jurídica (PÁDUA, 2019, p. 122-126). Envolvem, inevitavelmente, a atribuição hermenêutica em reconhecer pertinência da posição com o sujeito envolvido, o que fica claro nos exemplos da honra, imagem e nome do condomínio, que contemplam tais atributos no tráfego social.

Em uma primeira análise dos assertos judiciais apreciados no segundo bloco terminológico do dano moral, depreende-se que honra, imagem, tempo e nome constam nos setores não-patrimoniais tanto de pessoas quanto das entidades despersonalizadas (PÁDUA, 2018).

A ilação acima permite classificar os direitos ou posições localizadas na área em comento a partir do gênero posições extrapatrimoniais em sentido amplo, que se dividem em posições extrapatrimoniais em sentido estrito e direitos da personalidade. A primeira espécie envolve os direitos que os sujeitos de direito têm, enquanto a segunda espécie trata apenas de direitos que as pessoas em sentido jurídico ostentam.

Logo, a reconcepção da categoria jurídica dano moral não significa algo apenas fechado ao próprio esquema estrutural da responsabilidade civil, e sim o reflexo de mudanças nas bases teoréticas e práticas contidas na teoria geral do direito, mostrando que os rumos adotados é de que dano moral não significa ataque a bens relacionados a posições titularizadas por pessoas, e sim algo maior, um espectro mais amplo apto a abraçar as não-pessoas, porque o próprio sistema jurídico reconhece o setor extrapatrimonial a tais entes, ao gênero sujeitos de direito.

 

Sobre o autor
Felipe Bizinoto Soares de Pádua

Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDPSP) (2021-). Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Registral e Notarial pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC) (2017). É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional, ministradas pela Profª. Dra. Denise Auad, na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Foi auxiliar de coordenação no Núcleo de Estudos Permanentes em Arbitragem (NEPA), da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2018). Foi articulista da edição eletrônica do Jornal Estado de Direito (2020-2021). Advogado na Cury, Santana & Kubric Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Busca-se mostrar que o conceito doutrinário de dano moral diverge da compreensão doutrinária e jurisprudencial de titularidade de direitos de cunho extrapatrimonial, resultando no fato de que entidades não-personificadas têm direitos extrapatrimoniais passíveis de violação e consequente indenizabilidade por dano moral.

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