A PREJUDICIALIDADE DAS AÇÕES COGNITIVAS E A SUSPENSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO

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16/01/2020 às 18:19
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A questão da Ação Rescisória

Antes de tecermos algumas considerações sobre a suspensão da execução por conta do ajuizamento de ação rescisória é importante salientar a nova disciplina do CPC de 2015 quanto a seu espectro de abrangência.

É que na disciplina do CPC anterior somente as sentenças de mérito eram rescindíveis por ação rescisória, ao passo que as demais poderiam ser anuladas com ação ordinária. De fato o artigo 486 determinava que nos casos onde não fosse necessária sentença ou esta fosse meramente homologatória, os atos judiciais poderiam ser rescindidos como os atos jurídicos em geral. 

Desta forma, sentenças que extinguiam o processo por conta de aspectos relativos ao exercício do direito de ação ou pressupostos processuais não podiam ser objeto de ação rescisória. Isso só ocorria nos casos do inciso V do artigo 267, ou seja, caso de acolhimento de perempção, litispendência e coisa julgada, segundo a jurisprudência então vigente e o artigo 268 do revogado CPC. A decadência e a prescrição eram casos de sentença de mérito (art. 269, inciso IV, do CPC revogado). As demais decisões processuais que extinguiam o processo e eram sentenças que não eram homologatórias ou de mérito não podiam ser atacadas vias ação posterior. O revogado CPC previa que a propositura de ação rescisória não inibia a execução da decisão atacada. 

Agora temos mudanças que clarearam as coisas. A transação judicial homologada é sentença de mérito conforme o artigo 487, inciso III, alínea “b”, mas esta decisão não poderá ser objeto de ação rescisória conforme o artigo 966, §4º[23]. 

O parágrafo 2º do artigo 966 diz que a apesar de não serem de mérito, poderão ser rescindiras via ação rescisória decisões que impeçam a propositura novamente da demanda[24] ou neguem seguimento a recurso respectivo.

Agora o artigo 486 expressamente aduz que a decisão que não atinja o mérito não impede nova propositura da ação, mas o parágrafo primeiro deste mesmo artigo diz que nos casos de litispendência (inciso V), e dos incisos I[25], IV[26], VI[27] e VII[28] a propositura novamente da demanda depende da correção do vício. Por outras palavras, nestes casos não se pode manejar a ação rescisória, pois a demanda pode ser novamente proposta (feita a ressalva da nota nº 24).

O novo CPC expressamente ressalva que a propositura de ação rescisória não impedirá a execução da decisão rescindenda excetuada “a concessão de tutela provisória” (art. 969). Embora desde que criada a antecipação de efeitos da tutela, e mesmo antes dela quando só havia a tutela cautelar inominada, nunca tenha havido duvida de que liminar tinha cabimento, agora ela está expressamente prevista.

Dito isso, façamos uma avaliação das hipóteses das causas de pedir tipificadas para ação rescisória e da possibilidade de concessão de tutela de urgência ou de evidência para o fim de sustar a execução.

O inciso I do artigo 966 diz respeito aos casos de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz. Eram casos da chamada “peita”. As condições indicadas não podem ser genéricas[29]. Devem dizer respeito ao caso julgado e que se pretende rescindir. A parte autora da rescisória terá de comprovar a presença de uma das situações mencionadas e sua potencial ligação com o caso concreto. Por exemplo, que a parte contrária deu valores ao juiz para que julgasse de determinada maneira. Não se pode exigir que a parte que ingressa com a ação rescisória comprove que o fato efetivamente atuou sobre a formação da convicção do juiz. Isso está in fieri. Significaria exigir uma prova impossível. A prova testemunhal ou documental (v.g inquérito ou ação criminal em curso) poderá ser manejada para o efeito de postulação da liminar. 

O caso do inciso II do art. 966 refere-se às hipóteses de impedimento e de incompetência absoluta. Os casos de impedimento estão no art. 144 e uma olhada nos seus nove incisos revela que na maioria dos casos as situações ali descritas podem ser comprovadas por prova documental.

O caso do inciso III diz com dolo ou coação da parte ou mesmo de colusão ou simulação das partes na demanda originária. O dolo ou coação em regra dificilmente terá prova documental. A prova testemunhal se afigura como a mais comum e no caso se pedida liminar, se pode produzir por audiência de justificação prévia. A colusão ou simulação será caso demandado por terceiro ou pelo Ministério Público.

O inciso IV, que se refere a coisa julgada, é caso de prova documental Juntam-se elementos que comprovem a identidade de demandas e o trânsito em julgado.

O inciso V concerne a “violação manifesta de norma jurídica”. Cuida-se de matéria com nítido viés de direito, de forma que a comprovação se faz com invocação de julgados e doutrina ou simples indicação da lei.

O inciso VI reporta-se à prova falsa, já assim declarada ou cuja falsidade venha a ser provada no processo rescisório. É uma hipótese em que se tem de indicar prova robusta da falsidade e demonstrar que a prova teve influência no julgamento. Mostra-se o fato da falsidade, por prova documental, pericial ou testemunhal, e indica-se na decisão rescindenda o trecho onde a prova foi utilizada. Não se pode exigir comprovar o grau de interferência na formação da convicção do julgador que teve a prova em questão.

O inciso VII indica caso de prova nova, de que não se tinha conhecimento ou não pode se valer, capaz de assegurar julgamento diverso ao ocorrido.

O postulante terá de trazer a prova nova, que diga respeito aos fatos que estavam na causa de pedir do processo cuja rescisão se quer rescindir via rescisória. Terá de indicar e comprovar que não teve acesso a esta prova ou de que não a pode trazer aos autos por justo motivo. Por fim, ainda tem de mostrar que esta prova tem tal peso que mudaria o julgamento em seu favor. Esta condição terá mais facilidade de ocorrer nos casos de prova “tarifada” que existem na legislação como ressalva o artigo 406 do CPC. Devemos recordar a disciplina dos artigos 212 a 232 do CC bem como as disposições do art. 374 e 373, §1º, do CPC[30].

A última hipótese é a do erro de fato.  Este na própria definição legal ocorre quando “a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado.”

A prova neste caso é ampla, mas o fato não figurar dentre aqueles em vista dos quais o juiz teria de se manifestar é bastante rara.

Todos os casos supra pode ocorrer a tutela de evidência nos termos do artigo 311, incisos II[31] e IV, do CPC.

Nas hipóteses dos incisos V e VII do artigo 966 do CPC, já pode ter havido manifestação anterior sobre a questão ventilada na ação rescisória, e neste caso teremos a possibilidade de uma liminar decorrente de cognição sumária superando a cognição plena e exauriente. Isso clama por maior atenção do julgador e necessidade de maior robustez na causa de pedir e na comprovação da pertinência da ação rescisória, mas não se trata de um impeditivo ao deferimento da liminar suspendendo a execução, sobretudo quando em voga questão jurídica.[32]

Embora refuja aos limites desta abordagem, é importante lembrar que nada impede que sejam formulados pedidos de tutela provisória tanto para o judicium recindens quanto ao judicium rescissorium.[33]

Tem-se assim, que, feitas as devidas adaptações e consideradas as especificidades, o caso da ação rescisória segue as mesmas regras das ações ordinárias contra título executivo extrajudicial, podendo, inclusive, ser exigida contra-cautela (art. 300, §1º, do CPC), para conceder a liminar, pois o depósito do artigo 968, inciso II, não é antecipação de perdas e danos, mas destina-se a se converter em eventual multa.


Da inaplicabilidade do artigo 313, inciso V, do CPC, ao processo de execução

A despeito da clareza lapidar da lei, ainda se encontram precedentes jurisprudenciais que aceitam suspender a execução com decisão proferida no âmbito deste processo e pela simples pendência de uma ação de conhecimento sobre o título. 

Invoca-se para tanto o artigo 921, inciso I, e 313, inciso V, do CPC.

Tem-se como exemplo:

“EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. SUSPENSÃO. POSSIBILIDADE. AÇÃO ORDINÁRIA NA QUAL AS MESMAS PARTES DISCUTEM AS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS NO TÍTULO EXEQUENDO. CONEXÃO POR PREJUDICIALIDADE. EXEGESE DOS ARTIGOS 313 , V , A, 921 , I , E 55 , § 2º , I, DO CPC. Caso em que se mostra viável a suspensão da execução, uma vez presente uma das hipóteses previstas no artigo 921 do CPC e, nos termos do que dispõe a alínea a do inciso V do artigo 313, do mesmo diploma legal, suspende-se o processo quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente. Precedentes jurisprudenciais. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70077853117, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em 08/11/2018) 

Também:

“Execução e embargos à execução. Cédula de crédito bancário. Ação declaratória ajuizada. Suspensão da execução e dos embargos, em razão da prejudicialidade externa. Agravo de instrumento. Inteligência dos artigos artigo 921, I, e 313 , V do CPC . Possibilidade de suspensão da execução, quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica. Doutrina. Jurisprudência. Decisão mantida. Recurso desprovido. (TJSP AGI 2250507-88.2016.8.26.0000, Relator Virgílio de Oliveira Junior, julgado em 02/08/2017).

Ainda:

“EMBARGOS À EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE FINANCIAMENTO. COMPRA DE VEÍCULO. AÇÃO DE RESCISÃO DO CONTRATO PROPOSTA PELA EMBARGANTE. PREJUDICIALIDADE EXTERNA. AUSÊNCIA DE GARANTIA DO JUÍZO. SUSPENSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO. Em regra, a oposição de embargos à execução não tem efeito suspensivo. Entretanto, nos termos do artigo 919, § 1, do CPC, é possível que, havendo requerimento do embargante e verificado o preenchimento dos requisitos legais para concessão da tutela antecipada, possa ser determinada a suspensão da execução, desde que tenha havido a garantia do juízo. Nesse contexto, uma das causas de suspensão do processo dá-se com o reconhecimento, no caso concreto, de relação de prejudicialidade entre ações, visando evitar a prolação de decisões conflitantes, conforme está previsto no art. 313 , inc. V , alínea ?a?, do CPC . Resta evidente a prejudicialidade externa quando, na ação de conhecimento proposta pelo executado, consta o pedido de rescisão do contrato objeto da execução, em razão de alegado vício no veículo automotor negociado pelas partes. Levando em consideração as particularidades do caso, em especial a relevância da fundamentação, visto que o pedido de concessão de efeito suspensivo não se relaciona apenas com a norma prevista no artigo 919 do CPC , mas aponta para uma interpretação conjunta dele com o artigo 313 , V , “a”, também do CPC , pode ser dispensada a garantia da execução. (TJDF Ap 0716134-56.2018.8.07.0003, Relator Carmelita Brasil, julgado em 28/03/2019). 

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Trata-se de jurisprudência equivocada, malsã e que desconsidera não só a letra da lei, mas uma interpretação sistemática e histórica do CPC.

Por, primeiro, em se tratando de execução de título extrajudicial, há disciplina expressa a respeito materializada nos artigos 784, §1º; e 919, §1º, do CPC.

O primeiro diz que “a propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”.

De fato, a simples existência de ação ordinária atacando o título ou a execução de titulo não impede que ela prossiga, e não autoriza sua suspensão, exceto se deferida liminar ou recebidos embargos com efeito suspensivo, e com segurança do juízo, em ambos os casos (feita a ressalva supra quanto a este requisito) estando condicionada aos requisitos da tutela provisória, de urgência ou de evidência.

Não se pode prescindir destes requisitos, que devem ser avaliados no processo cognitivo, e, desbordando de exigências legais, se proferir decisão na execução, suspendendo-a pela mera alegação de prejudicialidade externa decorrente da simples propositura de ação de conhecimento. Isso implica voltarmos aos tempos pretéritos, onde o processo de execução era esteio para a recalcitrância do devedor. Cria-se uma forma legalmente não prevista de suspensão em detrimento do princípio e valor da efetividade da tutela jurisdicional, sendo de bom alvitre recordar que, conforme o artigo 797 do CPC, a execução opera em favor do credor/exequente. 

A propósito da incidência do artigo 784, §1º, do CPC, como óbice a que se suspenda a execução pela simples presença de ação cognitiva, cita-se:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. PROSSEGUIMENTO. AÇÃO REVISIONAL. Não deve ser conhecida da alegação de impenhorabilidade com fulcro no artigo 833, V, do CPC, na medida em que a questão não foi enfrentada pela decisão agravada, de modo que a análise da insurgência diretamente pelo Tribunal implicaria supressão de um grau de jurisdição. O pedido de suspensão da ação de execução não deve ser acolhido, pois o artigo 784, § 1º, do CPC expressamente possibilita o ajuizamento da execução mesmo havendo ação da parte adversa contestando o título executivo. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento, Nº 70079339552, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, Julgado em: 13-03-2019)

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. PRELIMINAR DE COISA JULGADA AFASTADA. PREFACIAL DE EXTINÇÃO DO FEITO POR VÍCIO NA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL REJEITADA. MÉRITO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. SUSPENSÃO DA DEMANDA EM RAZÃO DO POSTERIOR AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE ANULAÇÃO DE TÍTULO. DESCABIMENTO. O artigo 792, do Código de Processo Civil (artigo 921, do NCPC), prevê as hipóteses de suspensão da execução, não constando, dentre elas, a existência de ação anulatória do título que embasa a ação de execução. Incidência do artigo 585, §1º, do CPC (artigo 784, §1º, do CPC/2015), que expõe que o ajuizamento de demanda referente ao débito representando pelo título não inibe o credor de promover-lhe a execução. PRELIMINARES AFASTADAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.(Agravo de Instrumento, Nº 70069640993, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Beatriz Iser, Julgado em: 03-08-2016)”

Reforçando esta conclusão, o STJ já afirmou, sob o égide do anterior CPC cujo regramento o atual repete:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. EXECUÇÃO DEFINITIVA. LEVANTAMENTO DE DEPÓSITOS JUDICIAIS. EXIGÊNCIA DE GARANTIA. AÇÃO ANULATÓRIA. SUSPENSÃO. NÃO CABIMENTO. 1. Em se tratando de execução definitiva, é prescindível a apresentação de garantia para fins de levantamento dos valores devidos. Precedentes. 2. A simples propositura de ação anulatória do título executivo, inclusive aquela fundada na alegação de falsidade de assinatura, não suspende o curso da execução, porquanto se cuida de hipótese não albergada no art. 791 do Código de Processo Civil. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 616047/SP,  Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 15/05/2015)

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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