INTRODUÇÃO
Nesse trabalho, propomos adentrar em uma fundamentação teórica que nos permita analisar a responsabilidade patrimonial dos grupos econômicos no direito societário brasileiro, face ao princípio constitucional da segurança jurídica. O foco do trabalho envolverá a tentativa de respostas para o seguinte questionamento: Existem critérios jurídicos seguros para definição e responsabilização dos grupos econômicos de fato no direito brasileiro?
Como se sabe, os seres humanos se desenvolvem em grupos. Em seu best-seller Sapiens, Harari destaca como os laços sociais e a linguagem tornaram-se fundamentais ao estímulo cerebral de nossa espécie, de forma que a “evolução, assim, favoreceu aqueles capazes de formar fortes ligações sociais [...]”.[1] A divisão de tarefas e a possibilidade de otimização de custos e energia nos levou a criar organizações para uma maior efetividade. Entendemos que o progresso nos levou a solidificar ainda mais esta característica com a organização de empreendimentos coletivos hábeis com o intuito de racionalizar e otimizar bens, custos de produção e lucro.
Neste aspecto, surgiram importantes conceitos a respeito da autonomia empresarial dos entes, com a lição de conquistas históricas significativas para que seja respeitada a individualização patrimonial de cada uma destas entidades. Tal respeito é o que propicia a proteção destes entes e, em última análise, o estímulo e a evolução de discernimentos econômicos para o país.
Contudo, a crise de efetividade executiva e o ambiente de fraudes, de larga ocorrência no Brasil, levaram à criação de correntes doutrinárias, com reflexos na lei e na jurisprudência, que procuram relativizar tais proteções, sob a motivação de que tais estruturas e planejamentos seriam contrários ao direito.
Entendemos que, mediante a análise da doutrina, da legislação e da jurisprudência, devem existir critérios seguros para a responsabilização dos grupos econômicos no direito brasileiro. Para tanto, pretendemos relacionar o tema com o estudo da desconsideração da personalidade jurídica e os meios de defesa presentes no ordenamento, tais como, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como norte orientador, mais uma vez, o princípio da segurança jurídica.
1.O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
O princípio da segurança jurídica é de extrema importância para qualquer sistema de direito posto, sendo relacionado, muitas vezes com a própria estabilidade do sistema. Neste sentido, Canaris explica que a segurança jurídica pode ser entendida, de forma estrita, como firmeza legal e previsibibilidade (Bestimmtheit e Vorhersehbarkeit), estabilidade e continuidade dos sistemas legislativo e judicial (Stabilitat e Kontinuitat) e praticabilidade da aplicação da lei (Praktikabilitat der Rechtsanwendung)[2].
No Brasil, não obstante o princípio da segurança jurídica não constar expressamente na Constituição Federal, é aceito, pela doutrina, como uma norma implícita em nosso ordenamento[3]. Nas palavras de José Afonso da Silva:
A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída.[4]
Também o Supremo Tribunal Federal, de forma expressa, adota o princípio da segurança jurídica como pode ser visualizado na ementa abaixo destacada:
AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃO 2.780/2016 DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE CONCEDIDO COM FUNDAMENTO NA LEI N.º 3.373/1958. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. PRECEDENTE DASEGUNDA TURMA (ms 34.873/df). 1. Este Tribunal admite a legitimidade passiva do Tribunal de Contas da União em mandado de segurança quando, a partir de sua decisão, for determinada a exclusão de um direito. [...] a pensão é devida e deve ser mantida, em respeito aos princípios da legalidade, da segurança jurídica e do tempus regit actum. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (grifo Nosso).[5]
Sendo a segurança jurídica um dos cânones em que se assenta nosso sistema de direito positivo, temo que, ao relacionar tal princípio com o artigo em comento, entendemos, para que haja estímulo à economia e respeito às normas postas, deve se ter certeza e confiança no ordenamento de forma que os cidadãos possam efetuar a abertura de pessoas jurídicas e se lançar no mundo empresarial, com uma determinada previsibilidade. Ao se responsabilizar e redirecionar patrimonialmente pessoas jurídicas que originariamente não constam em qualquer título executivo, o sistema gera desconfiança, descrédito e desestímulo ao empreendedor, que nunca terá certeza do grau de seu risco negocial.
Diane de tais conceitos, temos que a segurança jurídica está intrinsecamente relacionada com a estabilidade de um ordenamento e sua não observância acarreta, invariavelmente, uma dissuasão para que as pessoas movimentem a economia. Neste aspecto, inclusive, a falta de segurança jurídica acaba por depreciar o princípio societário da autonomia dos entes e do respeito à individualização patrimonial das pessoas jurídicas, tema a ser visitado no próximo item.
2. AUTONOMIA DOS ENTES EMPRESARIAIS
Talvez, nesta década, o maior ícone do princípio da entidade seja a própria megaempresa de tecnologia Apple que, mesmo com o falecimento de seu criador, Steve Jobs, continua a ostentar um dos maiores faturamentos mundiais. O princípio da autonomia dos entes empresarias é adotado em qualquer sociedade civilizada, como forma de estímulo à economia e respeito ao ordenamento jurídico.
Temos que os princípios mais basilares quanto ao respeito da autonomia dos entes empresariais remontam à Roma antiga. Neste sentido, nas palavras de Arnoldo Wald, “encontram-se no digesto os princípios básicos que ainda hoje regem as pessoas jurídicas, distinguindo-se, já naquela época, o patrimônio social do patrimônio individual dos membros da sociedade.”[6]
A autonomia empresarial é resultante da singela análise de que os lucros devem superar os custos da atividade, sob pena de esta se tornar irracional e impossível. Apenas por meio da personalização do ente coletivo é se busca tal desiderato, de forma a não gerar receio de as pessoas investirem seus patrimônios próprios nessas estruturas coletivas, uma vez que o grupo, além de ter reconhecida sua autonomia patrimonial e consequentemente sua limitação da responsabilidade; teria também interesses autônomos distintos daqueles das pessoas que o compõem[7].
Na doutrina estrangeira, dois conceitos são ressaltados como objetivos do direito societário, quais sejam, a redução dos custos de agência e a otimização dos lucros, ambos tendo como pilares de sustentação cinco características: a transferência de ações, administração centralizada, propriedade compartilhada pelos detentores de capital e, de forma ressaltada, a autonomia da personalidade legal e a responsabilidade limitada. Neste sentido, Kraakman explica: “Em praticamente todas as jurisdições economicamente importantes, existe um estatuto básico que prevê a formação de empresas com todas essas características”[8].
Neste contexto, surgiram várias teorias com o intuito de esclarecer a natureza jurídica das pessoas jurídicas. Passemos a destacar cada uma delas, tendo em conta que as duas principais se dividem entre aqueles que aceitam as pessoas jurídicas como entes independentes e, por outro giro, aqueles que não aceitam. No primeiro grupo se enquadra a teoria negativista, de Rudolf Von Ihering, negava a existência concreta das pessoas jurídicas e, consequentemente, a sua personalidade individual.
Por outro lado, as teorias afirmativistas partiam do pressuposto da existência real do conjunto de pessoas e/ou bens para lhes conceder a qualidade de sujeitos nas relações jurídicas. Dentre os afirmativistas, surgiram as correntes da teoria da ficção legal (Savigny); a teoria da realidade, que se dividiu em teoria da realidade objetiva ou orgânica; e as teorias da realidade técnica (a pessoa jurídica seria real, dentro de uma realidade técnica, que seria distinta das pessoas naturais); e realidade das instituições jurídicas (a pessoa jurídica é uma realidade jurídica). De acordo com Farias e Rosenvald[9], prevaleceram as duas últimas teorias.
A consequência da adoção da teoria da realidade técnica para a sistematização moderna do direito é a seguinte:
É de se concluir que a pessoa jurídica possui personalidade jurídica diversa daqueles que integram a sociedade. De igual forma, a sociedade também possui patrimônio distinto daqueles que integram ao seu quadro societário. Logo, ao se personalizar a sociedade empresária, e a ela conferir o título de ‘pessoa’, cria-se, por corolário, a autonomia patrimonial, na medida em que os sócios usam seu dinheiro ou bens para constituir a empresa e, a partir daí, esses passam a pertencer à Sociedade.[10]
Em nosso ordenamento jurídico, o antigo Código Civil, de 1916 já preceituava em seu artigo 20: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros”. Já o Código Civil vigente, de 2002, não abarca disposição em sentido semelhante, mas da mesma forma, a estrutura do raciocínio se manteve, pois o artigo 50, que prevê a desconsideração da personalidade jurídica, estabelece, excepcionalmente, os casos em que o sistema admite sua aplicação. A contrário senso, a regra é a autonomia patrimonial da pessoa jurídica:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
De acordo com a doutrina e a legislação, podemos afirmar, com segurança, que o que se busca com a criação das pessoas jurídicas é atribuir-lhes personalidade, autonomia, interesses e responsabilidade distintos dos de seus membros, gerando três consequências precisas, segundo as palavras de Fabio Ulhoa Coelho[11]: Titularidade negocial, Titularidade processual e Responsabilidade patrimonial.
Os casos de desconsideração da personalidade jurídica constituem a exceção do ordenamento – e também serão analisados adiante –, contudo, vale repetir que o paradigma não é a desconsideração, mas sim a aceitação da pessoa jurídica como um ente distinto, com autonomia para contrair direitos e deveres. Isso se dá pela função da pessoa jurídica nos ordenamentos, ao se reconhecer o estímulo à economia, geração de empregos, arrecadação tributária etc.
Reforça o argumento a constatação da existência do princípio da entidade na dogmática contábil, que constava expressamente da revogado Resolução nº 750/93, não obstante ser atualmente plenamente aplicável. Em outros termos, cada sociedade emite sua própria nota fiscal.
Em suma, o sistema deve privilegiar a personificação das pessoas jurídicas, sendo esta a regra e a desconsideração, a exceção. Como bem pontua Edilson Chagas:
Possível perceber que a teoria da realidade técnica e a da empresa se aproximam, ao defenderem para as pessoas jurídicas, em geral, e para o empresário coletivo, em particular, a personificação e os direitos dela decorrentes, inclusive regime jurídico próprio para os últimos, sendo que, diante da complexidade do fenômeno empresa, a legislação não deve se apresentar meramente simbólica, distante da realidade social e econômica, nem contraditória, no sentido de incorporar um intervencionismo estatal direto, que, sob o pretexto de resguardar interesses de determinados grupos da sociedade, ultime por desestimular ou reflexamente, negar a personificação, com a eleição de cláusulas gerais a contextualizar a desconsideração da personalidade jurídica de forma meramente objetiva.[12]
Não obstante tais conceitos, em virtude da crise de efetividade processual, novas técnicas de desconstituição da personalidade legal vieram ganhando fôlego cada vez mais exacerbado. Tal objetivo resulta da análise relacionada com a crise no Judiciário, em virtude da “combinação inadequada da necessidade dos jurisdicionados e oferta precária do Poder Judiciário, insurge a imediata insatisfação social [...]”[13].
A título de exemplo, no âmbito fiscal, tendo como base o relatório analítico do CNJ “justiça em números”[14] do ano de 2018, restou demonstrado que as execuções fiscais representam o principal fator de morosidade do Poder Judiciário, com uma taxa de Congestionamento, em 2017, no montante de 91,7% na Justiça Estadual e de 94% na Justiça Federal.
Tais execuções representam 39% dos casos pendentes no Judiciário, sendo que a cada 100 processos apenas 8 foram baixados em 2017. Vale ainda ressaltar que somente a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), tem como missão, recuperar uma dívida ativa da União no montante de R$ 2 trilhões, ou seja, 30% PIB nacional.
Contudo, não obstante tal crise de efetividade do Judiciário, com relação à satisfação patrimonial, tais fatores, que em nossa perspectiva são de responsabilidade, em grande parte, do próprio Poder Público, em virtude da ineficiência e morosidade da máquina administrativa, não podem ser ultrapassados com o vilipêndio de importantes princípios e normas do ordenamento.
Desta feita, tendo os dois conceitos acima bem delineados, quais sejam, a necessidade de observância do princípio da segurança jurídica para os ordenamentos dos países civilizados, bem como, o respeito à autonomia dos entes empresarias, como premissas deste trabalho, passemos a analisar os grupos econômicos e a sua desconsideração para fins de responsabilização patrimonial no ordenamento brasileiro.
3. OS GRUPOS ECONÔMICOS DE DIREITO E DE FATO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
Podemos dizer que o primeiro grande grupo econômico mundial foi a Companhia das Índias Orientais, em 1602, responsável pelo aparecimento de novos mercados consumidores[15] e a criação de uma cadeia global de fornecedores. Possuía uma larga produção de várias atividades empresariais ecléticas como a produção de especiarias, vinho e o comércio internacional.
Mas foi só após a Segunda grande que os verdadeiros conglomerados surgiram. De acordo com Sobel:
Os conglomerados foram a tendência de Wall Street no final dos anos 1960, configurando seus administradores entre os homens de negócios mais visíveis naquele momento do capitalismo americano pós-Segunda Guerra Mundial. Não havia uma semana sem relatos de que pelo menos uma antiga corporação familiar estava sendo atacada por algo que eufemisticamente chamavam de “empresa multiforme”, que nem sequer existia antes da guerra e que agora estava no topo da lista das 500 maiores da Fortune.[16]
A priori, os grupos econômicos surgiram por meio de uma única sociedade (corporation) com múltiplas filias (subsidiaries). Os exemplos mundiais foram e ainda são fartos. Nos Estados Unidos podemos destacar a multifacetada mega empresa General Electrics que, em sua gama de diversificações, produz desde lâmpadas até turbina de aviões. No Japão se destacam os Keiretsus[17], corporações relacionadas a bancos e financiamentos, como a Mitsubishi. NA Coréia, os chamados Chaebols[18] (clãs da prosperidade), administrados por grupos familiares, destacando-se a mega empresa de eletrônicos Samsung.
De acordo com a doutrina, o conceito econômico de conglomerados está relacionado à constatação de um oligopólio. Nestes termos:
O conceito econômico de um conglomerado refere-se a uma espécie de oligopólio em que muitas empresas atuando em diferentes campos unem seus esforços na tentativa de dominar determinada oferta de bens e / ou serviços e são geralmente administradas por uma holding, cujo objetivo é garantir a estabilidade gerencial para as empresas associadas. Um exemplo de um conglomerado é um grupo de grandes corporações envolvidas em negócios, desde a exploração de uma matéria-prima até o transporte do produto final industrializado.[19]
No Brasil, também se destacam como verdadeiros conglomerados ou grupos econômicos diversas empresas, dentre as quais podemos listar, de acordo com o ranking publicado pelo Jornal Valor Econômico[20], em 2018, as cinco primeiras: Petrobrás, JBS, Vale, Raizen e Ultrapar.
Entendemos que tais denominações, pelo menos no Brasil, se formaram com base em índices econômicos. Contudo, ao iniciarmos o estudo a respeito dos grupos econômicos, temos como primeiro questionamento a ser abordado é se realmente existe um conceito de grupo econômico no direito brasileiro.
Fábio Comparato explica que “a associação de empresas juridicamente independentes, atuando sob uma direção unitária, compõe a figura dos grupos econômicos, que são atualmente os grandes agentes empresariais”.[21] Já, para Wladimir Novaes Martinez:
Grupo econômico pressupõe a existência de duas ou mais pessoas jurídicas de direito privado, pertencentes às mesmas pessoas, não necessariamente em partes iguais ou coincidindo os proprietários, compondo um conjunto de interesses econômicos subordinados ao controle de capital. [...] O importante, na caracterização da reunião dessas empresas, é o comando único, a posse de ações ou quotas capazes de controlar a administração, a convergência de políticas mercantis, a padronização de procedimentos e, se for o caso, mas sem ser exigência, o objetivo comum.[22]
Ao analisarmos os trechos de doutrina acima, podemos perceber a necessidade de observância e presença de um conjunto de fatores para a configuração jurídica de um grupo econômico, quais sejam: a existência de uma relação de coordenação entre as sociedades integrantes de determinada atividade empresarial, mediante o exercício de atividades complementares e com a participação em conjunto para realização de objetivos comuns sob o comando de um mesmo centro de decisão.
Não obstante tais conclusões, muitas vezes, outros aspectos são utilizados para a configuração, quais sejam: identidade de sócios ou de familiares, mesmo endereço empresarial, relações comerciais próximas, divisão de tarefas dentro de uma cadeia de produções, etc. E a nossa legislação? Existe tal conceito no direito positivado brasileiro?
O termo “grupo econômico” não encontra guarida na Lei das S.A. (Lei nº 6.404/76) que utiliza “grupo de sociedades” no artigo 265:
Art. 265. A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns.
§ 1º A sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve ser brasileira, e exercer, direta ou indiretamente, e de modo permanente, o controle das sociedades filiadas, como titular de direitos de sócio ou acionista, ou mediante acordo com outros sócios ou acionistas.
§ 2º A participação recíproca das sociedades do grupo obedecerá ao disposto no artigo 244.
O artigo acima estabelece, no direito brasileiro, os grupos econômicos de direito, vez que são formados por meio de um documento positivado denominado de convenção. Desde já, vale ressaltar que tal configuração é de rara utilização no direito pátrio[23], justamente por não trazer nenhum benefício para sua formação, seja de ordem fiscal ou mesmo patrimonial.
Veremos mais à frente como tal conceito não se relaciona com os grupos econômicos de fato, considerados desta maneira pela jurisprudência, justamente para a desconstituição da personalidade jurídica com o fim de se atingir o patrimônio de outras empresas, supostamente pertencentes aquele grupo econômico.
Em outra toada, o Código Civil vigente, faz referência às “Sociedades Coligadas”, nos artigos 1.097, 1.098 e 1.099, tendo como fatores de configuração das sociedades coligadas a relação de controle, caracterizada pela participação de dez por cento ou mais do capital da outra:
Art. 1.097. Consideram-se coligadas as sociedades que, em suas relações de capital, são controladas, filiadas, ou de simples participação, na forma dos artigos seguintes.
Art. 1.098. É controlada:
I - a sociedade de cujo capital outra sociedade possua a maioria dos votos nas deliberações dos quotistas ou da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores;
II - a sociedade cujo controle, referido no inciso antecedente, esteja em poder de outra, mediante ações ou quotas possuídas por sociedades ou sociedades por esta já controladas.
Art. 1.099. Diz-se coligada ou filiada à sociedade de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.
No âmbito do direito laboral, justamente com o intuito de proteção à efetividade da responsabilidade patrimonial em benefício do polo hipossuficiente da relação, qual seja, o trabalhador, tivemos a inserção, no ano de 2017, do §2º na Consolidação das Leis do Trabalho, elegendo como característica que enseja a configuração do grupo econômico, a direção e o controle somados à demonstração do interesse integrado e atuação conjunta. Dispõe a norma:
§ 2o Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego.
§ 3o Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes.
De forma semelhante, mas com conceitos totalmente distintos em virtude de sua simplificação, a Lei 8.212/91, que disciplina o custeio da Seguridade Social, disciplinou no artigo 30, inciso IX, a responsabilidade dos grupos econômicos de qualquer natureza:
Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:
IX - as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei.
No âmbito infra legal, a resolução nº 02/2012 do Conselho administrativo de Defesa Econômica (CADE), estabelece um outro patamar de participação para a configuração dos grupos econômicos, contrariando o Código Civil vigente, ao estabelecer:
Art 4 §1º Considera-se grupo econômico, para fins de cálculo dos faturamentos constantes do art. 88 da Lei 12.529/11, cumulativamente: (Redação dada pela Resolução nº 09, de 1º de outubro de 2014)
I – as empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo; e
II – as empresas nas quais qualquer das empresas do inciso I seja titular, direta ou indiretamente, de pelo menos 20% (vinte por cento) do capital social ou votante.
Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em sua Instrução nº 555 de 2014, estabelece que configuram grupo econômico, o mero controle comum: “Art. 2º [...], XXXI – grupo econômico: conjunto de entidades controladoras diretas ou indiretas, controladas, coligadas ou submetidos a controle comum”.
No âmbito fiscal, o Código Tributário Nacional não utiliza o termo grupo econômico em nenhum de seus artigos que estabelecem a responsabilidade tributária de terceiros, quais sejam, artigos 134 e 135. Não obstante a clareza do silêncio eloquente da legislação complementar, a Receita Federal decidiu disciplinar a matéria, inovando a legislação, de forma inconstitucional, por meio da Instrução Normativa nº 971 de 2009, ao dispor em seu artigo 494 que até mesmo a mera direção das empresas poderá configurar o grupo econômico:
Caracteriza-se grupo econômico quando duas ou mais empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de uma delas, compondo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica.
Ao invés de estar atenta a esta miscelânea legislativa, que não se encontra sincronizada ou sistematizada, a jurisprudência, de forma ampla, vem acatando o redirecionamento das execuções fiscais para os grupos econômicos, como podemos visualizar nos julgados abaixo, inclusive, atualmente, com a desnecessidade de observância do artigo 134 do Código de Processo Civil, instituidor do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no ordenamento pátrio. Confira os julgados:
REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO SUCESSÃO DE EMPRESAS. GRUPO ECONÔMICO DE FATO. CONFUSÃO PATRIMONIAL. INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022, DO CPC/2015. INEXISTÊNCIA.
[...]
III - Verificado, com base no conteúdo probatório dos autos, a existência de grupo econômico e confusão patrimonial, apresenta-se inviável o reexame de tais elementos no âmbito do recurso especial, atraindo o óbice da Súmula n. 7/STJ. Segunda Turma, julgado em 27/5/2014).
[...]
V - Evidenciadas as situações previstas nos arts. 124, 133 e 135, todos do CTN, não se apresenta impositiva a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, podendo o julgador determinar diretamente o redirecionamento da execução fiscal para responsabilizar a sociedade na sucessão empresarial. Seria contraditório afastar a instauração do incidente para atingir os sócios-administradores (art. 135, III, do CTN), mas exigi-la para mirar pessoas jurídicas que constituem grupos econômicos para blindar o patrimônio em comum, sendo que nas duas hipóteses há responsabilidade por atuação irregular, em descumprimento das obrigações tributárias, não havendo que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, mas sim de imputação de responsabilidade tributária pessoal e direta pelo ilícito.
VI - Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido.[24]
Em outra oportunidade, o próprio Superior Tribunal de Justiça, elencando critérios criados pelo próprio Judiciário, no que nos aproxima do ativismo jurídico e da escola filosófica do realismo jurídico[25], entendeu que, em caso de configuração de fraudes, abuso de patrimônio, com prejuízo a credores, já seria apto a se considerar a responsabilização das empresas que supostamente integram o grupo econômico, sem se ater, contudo, a quaisquer elementos caracterizadores de tal denominação. Neste sentido:
7. De acordo com a jurisprudência, é possível o reconhecimento da existência de grupo econômico quando diversas pessoas jurídicas exerçam suas atividades sob unidade de controle, e, ainda, quando se visualizar confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-fé, com prejuízo a credores.
8. A responsabilidade tributária estende-se a todas as pessoas jurídicas integrantes do grupo econômico, tanto pela desconsideração da personalidade jurídica em virtude do desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial (art. 50 do Código Civil), quanto pela existência de solidariedade decorrente da existência de interesse comum na situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária (art. 124, I, do Código Tributário Nacional).
9. A confusão patrimonial e os indícios da prática de atos em infração à lei perpetrados pelos sócios dessas pessoas jurídicas exigem igualmente que lhes seja estendida a responsabilidade tributária pelas dívidas ora executadas. A desconsideração da personalidade jurídica tem consequência específica, no presente caso, permitir que sejam alcançados os bens particulares do sócio, autorizando que seu patrimônio responda pelas dívidas da pessoa jurídica (CC, art. 50) (fls. 1.690/1.691) [...] (grifos nossos).[26]
Antes de prosseguir no tema, vale ressaltar que, de forma oposta aos grupos de direito, a doutrina ressalta que os grupos de fato não se encontram previstos na legislação societária. Neste sentido, Eizirik pontua:
O Capítulo XXI da Lei da Lei das S.A. dispõe sobre o grupo de sociedades de direito, mas não disciplina os grupos de fato. Com efeito, os grupos de fato não estão previstos na nossa legislação societária, reservando a Lei das S.A. as expressões “grupos de sociedades! e “grupos” para designar tão somente os grupos de direito.
O grupo de fato é aquele integrado por sociedades relacionadas tão somente por meio de participação acionária, sem que haja entre elas uma organização formal ou obrigacional. As relações juríridcas mantidas entre as sociedades que integram o grupo devem ser fundamentadas nos princípios e nas regras que regem as relações entre companhias isoladas. [...]
A Lei das S.A., no que se refere aos grupos de fato, estabeleceu um conjunto de normas, objetivando a fixação de pesos e contrapesos, assim como de limites ao exercício do poder de controle. Caracteriza abuso de poder de controle o ato do controlador de levar a sociedade controlada a favorecer outra sociedade, ou a de contratar com a companhia, diretamente ou por meio de outrem, em condições de favorecimento ou não de comutativas.[27]
Justamente, diante desta necessidade de se ater aos regimes das companhias isoladas é que o absoluto respeito ao princípio da autonomia patrimonial e das entidades deve ser observado. Neste sentido:
De qualquer modo, a participação de uma sociedade em um grupo econômico não retira a sua personalidade jurídica e sua caracterização como ente titular de vontade, interesses e patrimônio próprios. Mantém-se a ideia formal e abstrata da personalidade jurídica desvinculada dos seus membros, não considerando a realidade das sociedades dependentes. É a partir do pressuposto da autonomia econômica da sociedade, como se ela fosse necessariamente um ente hermético e independente, que se estabelecem as regras de atuação dos controladores e administradores. [...] [28]
Como se vê, não existe uma identidade de características para estabelecer, de forma segura, quando se dá ou não a configuração de um grupo econômico para fins de responsabilidade patrimonial, o que causa perplexidade pelo volume de responsabilizações e redirecionamentos que visualizamos na prática.
Diante da análise acima, o ordenamento pátrio não estabelece critérios seguros para que possa ocorrer a responsabilização de uma sociedade sob a justificativa desta integrar um grupo econômico. Muitas vezes, critérios totalmente independentes e subjetivos são considerados suficientes para que ocorra o redirecionamento, a quebra da personalidade jurídica e a possibilidade de constrição patrimonial.
Como se viu, a mera identidade de sócios, não pode ser critério seguro, vez que, a própria CLT estabelece de forma expressa que tal conceito não pode ser utilizado. Inclusive, na prática societária, temos diversos grupos econômicos que, por conta de sua diversificação, atuam nos mais diversos ramos industriais e econômicos, sem que isso possa, por si só, gerar a responsabilidade de uma das empresas do grupo, caso determinado ramo de atividade não obtenha o mesmo sucesso almejado das outras.
Outro critério muitas vezes utilizado é a identidade de familiares nas empresas. Esta é uma outra falácia que não se sustenta na pragmática jurídica. A título de exemplo a estória dos ex-proprietários da churrascaria Fogo de Chão, os irmãos Coser, que de forma interessante foram objeto de uma reportagem na revista Exame intitulada Coser vs Coser[29], atualmente, são rivais no mesmo ramo de atividade, com a abertura dos restaurantes NB Steak, 348 e Moremonte. Claramente, caso um destes restaurantes não honre com suas dívidas patrimoniais, não significa, necessariamente, que as empresa do outro irmão devam ser responsabilizadas, única e exclusivamente por ostentarem laços familiares.
O mesmo ramo de atividade também, muitas vezes, pode levar a tentativas de desconfiguração da autonomia patrimonial dos entes. Contudo, novamente, não é critério seguro para a configuração de um grupo econômico. Mais uma vez, caso a rede de chocolates Kopenhagen venha, hipoteticamente, a sofrer um impacto patrimonial, não significa que a marca Cacau Brasil deva ser chamada para honrar as dívidas da rival, única e exclusivamente por atuarem no mesmo ramo de atividade.
Talvez um dos critérios mais precários dos últimos tempos seja a identidade de endereços. Muitas vezes, tal critério é utilizado como uma forma inexorável de se pleitear a responsabilidade de outros entes autônomos. Como se sabe, cresce no mundo a tendência de escritórios compartilhados. De acordo com o Censo Coworking Brasil[30], apenas em 2018, foram registrados 1.194 escritórios operando no modelo de espaço compartilhado de trabalho. Desta feita, se duas empresas ocupam o mesmo endereço, em uma das unidades da Regus Brasil na Avenida Paulista, não pode ser considerado um fator para configuração de qualquer responsabilidade econômica entre tais entes.
Finalmente, como visto acima, o mesmo controle também não é critério seguro para a configuração de grupos econômicos. Inclusive, se debate e muito o que seria o fator caracterizador do controle. Mesma porcentagem? Se sim, como coadunar a legislação do CC que exige apenas 10% com instrução do CADE que faz referência a 20%? Poder de veto significa poder de controle? Como se sabe, o artigo 116 da Lei das S.A. estabelece o que significa o poder de controle:
Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:
a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Contudo, para nossa surpresa, não obstante o texto expresso da lei, nenhuma das normas vistas acima utiliza tais critérios para a caracterização do controle societário e a consequente configuração de eventual grupo econômico. Em suma, o que existe hoje no ordenamento brasileiro é um verdadeiro “carnaval normativo”, em alusão à obra de Alfredo Augusto Becker “carnaval tributário”. Não se sabe, como investidor, as regras do jogo para operar no Brasil. Legislação, doutrina e jurisprudência não dialogam, o que gera, em uma análise fria, total insegurança jurídica.
Inclusive, podemos cogitar que a falta de legislação uniforme sobre o tema possa ser considerada como uma impossibilidade relativa de responsabilização dos grupos econômicos no ordenamento pátrio. Contudo, existem meios de ultrapassar tal problema? Entendemos que sim. Tema a ser analisado no próximo item.