Responsabilidade de grupo econômico e (in)segurança jurídica

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19/01/2020 às 23:21
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4. MEIOS CONSTITUCIONAIS DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS GRUPOS ECONÔMICOS

Sabemos que a ingenuidade acadêmica de sustentar uma opinião de modo absoluto não pode subsistir a testes mais rigorosos, tanto teóricos quanto pragmáticos. Inclusive, somos adeptos da tese de que não existem direitos absolutos no ordenamento[31], tanto é assim que até mesmo o direito à vida pode ser relativizado em situações de legítima defesa[32]. Desta feita, não podemos afirmar que a responsabilização de empresas, em caso de fraude, abusos ou ilícitos não possa ocorrer no Brasil. 

Como visto, tal posicionamento, também levaria, invariavelmente, à uma maior crise de efetividade no direito nacional quanto à responsabilidade patrimonial de devedores. Contudo, o que defendemos é que o modo como se opera a responsabilidade dos grupos econômicos, hodiernamente, tem caminhado para uma verdadeira banalidade. 

Sem a segurança jurídica devida, não se sabe como, quando e os motivos da extensão da responsabilidade patrimonial das sociedades, com a quebra de sua autonomia existencial e patrimonial. Tal fato leva a uma fuga de investidores, que optam por jurisdições que ofereçam maior segurança jurídica, tal como noticiado no jornal Folha de São Paulo, em 22 de julho de 2018: “Startups fogem da burocracia e abrem firma nos EUA”[33], destacando que a opção se dá, sobretudo, pela insegurança jurídica a respeito da possibilidade de responsabilização patrimonial vigente hoje no Brasil. 

Como já exposto, e nunca é demais repetir, a insegurança jurídica a respeito do tema responsabilidade patrimonial dos grupos econômicos é enorme. Neste tópico pretendemos efetuar propostas que possam equilibrar o embate existente entre a necessidade de observância da autonomia dos entes e do princípio da segurança jurídica com a crise de efetividade patrimonial do sistema pátrio. Passemos a analisar cada uma das concepções. 

4.1 Positivação e benefícios aos grupos econômicos 

Um dos motivos principais, em nossa concepção, para a insegurança jurídica que habita o tema, é a inflação legislativa a respeito do assunto. Como visto, as normas que tratam de grupos econômicos não possuem nenhuma correspondência entre si, o que possibilita os mais diversos posicionamentos, inclusive m virtude do diálogo das fontes[34].

Desta feita, o direito deixa de ser um sistema que visa proporcionar segurança e um mínimo de previsibilidade para se tornar uma ciência relacionada à futurologia a respeito das decisões dos magistrados. Não se sabe se haverá ou não a responsabilidade no caso em concreto e com base em que normas de direito. 

Desta feita, a primeira proposta seria de levar para o ambiente próprio, seja no Código Civil, ou até mesmo na Lei das S.A. um conceito de grupo econômico com normas rígidas e respeitando os princípios da lex stricta e certa. Em outros termos, que haja uma definição, de lege ferenda, para que os critérios definidores sejam claros e precisos. Com as regras do jogo expostas[35], os sujeitos da relação jurídica podem saber quais as regras que levarão ou não a uma responsabilidade extensiva. 

Mas não é só. Obviamente que se os critérios fossem criados, seria muito fácil para os fraudadores caminharem nas lacuna da lei. A título de exemplo, se fosse definido que apenas a participação, a partir de 30%, no capital das empresas, geraria a relação de controle, ou participação para fins de grupos econômicos, os fraudadores nunca comporiam grupos com tal participação. 

Por tal motivo é que, a criação dos grupos econômicos de direito deve ser estimulada. Não só com os ônus de tal denominação mas também com eventuais bônus. No direito comparado, tal sistemática tem levado sim à formação de grupos econômicos que se beneficiam da criação, seja em virtude de benefícios fiscais, ou até mesmo, de normas relativas a respeito à pragmática societária, laboral e de obrigações em geral. 

Neste aspecto, a título de exemplo, podemos citar os grupos econômicos espanhóis, chamados de Grupo de Consolidacion Fiscal, onde são prevista responsabilidades mas também aproveitamento de créditos e compensação de prejuízos entre as empresas do mesmo grupo. 

Interessante destacar como os jornais e os técnicos do tema enfrentam a questão. Pudemos verificar numa publicação de 14 de novembro de 2018 o título: “Canarias – fiscalidad mínima com plena seguridade jurídica”[36], ao fazer referência aos grupos de consolidacion fiscal espanhóis. Em outras palavras, o que se deseja é atrair investidores, fomentar a economia e gerar renda, privilegiando, ainda a segurança jurídica. Conforme estabelece a Ley 27/2014, Ley del Impuesto sobre Sociedades,  em seu artigo 55:

Regime de Consolidação Fiscal

Artigo 55 Definição

1. Os grupos tributários podem optar pelo regime tributário previsto neste capítulo. Neste caso, as entidades integradas nelas não serão tributadas individualmente.

2. O regime fiscal individual será entendido como o que corresponderia a cada entidade se o regime de consolidação fiscal não for aplicável.[37]

Contudo, para os fins a que nos reportamos, o artigo mais importante é o artigo 74, que estabelece a possibilidade de compensação das bases negativas entre as empresas do grupo. Em outros termos, caso seja verificado prejuízo fiscal em uma das sociedades, podem ser compensadas com as bases das outras sociedades, como pudemos verificar:  

Artigo 66. Compensação de bases fiscais negativas

Se, nos termos das regras aplicáveis à determinação da base tributável do grupo tributário, for negativa, seu valor poderá ser compensado com as bases fiscais positivas do grupo tributário nos termos previstos no art. 26 desta lei.[38]

Neste caso sim, a responsabilidade patrimonial do grupo econômico faz todo sentido. Se o grupo é formalmente constituído e tem benefícios para tanto, nada mais justo que suas responsabilidades sejam estendidas a todas as sociedades do grupo. É, em suma, a ideia de ônus e bônus. Nestes termos González explica: 

Uma das principais vantagens da aplicação do regime especial de consolidação fiscal é a compensação, no mesmo período de tributação, das bases fiscais negativas geradas por uma empresa do grupo com as bases fiscais positivas que são geradas por outras pessoas pertencentes a ela. [...][39]

Também, em Portugal, o Código de Sociedades Comerciais, Decreto-lei 262/86, estabelece, nos artigos 486 a 491 o chamado Grupo de Sociedades – Sociedades em relação de domínio. No artigo 486 consta: 

1 - Considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer, directamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, sobre a outra, dita dependente, uma influência dominante.  

2 - Presume-se que uma sociedade é dependente de uma outra se esta, directa ou indirectamente: 

a) Detém uma participação maioritária no capital;

b) Dispõe de mais de metade dos votos;

c) Tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização. 

3 - Sempre que a lei imponha a publicação ou declaração de participações, deve ser mencionado, tanto pela sociedade presumivelmente dominante, como pela sociedade presumivelmente dependente, se se verifica alguma das situações referidas nas alíneas do n.º 2 deste artigo.

O direito português, de forma clara, estabelece, inclusive, o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS). Confira artigo 69 do Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (CIRC), Decreto-Lei 442-B/88, com redação dada pela Lei nº 2/2014: 

Regime especial de tributação dos grupos de sociedades 

Artigo 69 

Âmbito e condições de aplicação

1 – Existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria coletável em relação a todas as sociedades do grupo.

2 – Existe um grupo de sociedades quando uma sociedade, dita dominante, detém, direta ou indiretamente, pelo menos 75% do capital de outra ou outras sociedades ditas dominadas, desde que tal participação lhe confira mais de 50% dos direitos de voto.

Como pudemos perceber, o direito comparado, disciplina a matéria com segurança jurídica. Não só por meio da positivação do tema, de forma coerente e sistematizada, com as leis societária e tributária dialogando entre si, mas também com o estabelecimento de vantagens para a criação dos grupos econômicos de direito. 

Uma vez que tal análise depende, efetivamente, de uma alteração na legislação brasileira, passamos a analisar outras possibilidades de responsabilização dos grupos econômicos, com base na desconsideração da personalidade jurídica. 

4.2 Responsabilização processual em caso de fraude e desconsideração da personalidade jurídica: o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Como já explanado, existem casos, que devem ser considerados de acordo com sua excepcionalidade, onde as fraudes e os abusos de direito devem ser vetados pelo ordenamento. Atento a esta realidade, não podemos negar que a desconsideração da personalidade jurídica é aceita em nosso direito pátrio e veio se alargando ao longo do tempo tanto na legislação esparsa como no CC. O caso histórico e emblemático a respeito da desconsideração é o precedente Salomon versus Salomon[40], inclusive por ter sido mantido o respeito à personalidade jurídica, não obstante a possibilidade de constatação de fraude. 

O caso Salomon é muito citado quando se deseja explicar a natureza jurídica da personalidade de uma companhia e também como paradigma para as mudanças que originaram a desconsideração da personalidade jurídica. Vejamos os detalhes deste precedente do direito comparado: Salomon era um comerciante de couro que detinha uma sociedade por ações, com sete pessoas (como pré-requisito no sistema inglês), constituída unicamente por sua família (mulher e filhos), distribuídas da seguinte forma: uma ação para a mulher e para cada um dos filhos e a totalidade das demais ações (quase 20 mil) para o próprio Salomon. Posteriormente, Salomon transferiu seus negócios para a sociedade e concedeu empréstimo para sua própria sociedade, obtendo debenture com garantia para resguardar seu crédito. 

Quando a sociedade ficou insolvente, Salomon exerceu seu direito de debenturista, deixando de pagar os demais credores. Uma vez que a companhia tinha sido regularmente registrada, com o reconhecimento de sua responsabilidade limitada, considerou-se que ela detinha personalidade distinta da de seus membros, restando os demais credores prejudicados em função da autonomia patrimonial da sociedade. Em primeira instância, o juiz entendeu que a sociedade se confundia com Salomon, mas tal decisão foi reformada pela House of Lords, prevalecendo a autonomia patrimonial e a responsabilidade limitada da companhia.[41]

De acordo com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity), tem-se que esta afasta temporariamente a personalidade para que os sócios respondam pelas dívidas, sem que se possa cogitar de uma relação de sucessão, vez que a pessoa jurídica continua no polo passivo da obrigação. Consiste num sistema diferenciado da fraude à execução e da fraude a credores em que se buscam, ora bens específicos, ora bens alienados, visto que na desconsideração buscam-se os bens gerais para saldar a obrigação. 

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No Brasil, a teoria se solidificou com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90, art. 28[42]), passando a regra, posteriormente, a ser difundida em outras legislações esparsas como a Lei Anticorrupção, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Leis Ambientais e Direito de Concorrência. Como regra geral, também está presente no CC, artigo 50, que merece ser revisitado ao preceituar: 

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Da análise e conjugação dos dois dispositivos gerais a respeito da desconsideração (CDC e CC), a doutrina separou a desconsideração em duas teorias, chamadas de menor e maior. Esclarece didaticamente Flávio Tartuce: 

Teoria maior – a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos: o abuso da personalidade jurídica + o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002. Teoria menor – a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pela Lei 9.605/1998 – para os danos ambientais – e, supostamente, pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.[43]

Em tese, poder-se-ia cogitar da aplicação desta sistemática teórica para a responsabilização de grupos econômicos de fato. Contudo, ao perscrutarmos o tema, podemos visualizar que se trata da desconsideração para os sócios da sociedade. No caso dos grupos econômicos não existem sociedades sócias. Como afirmado, se quebra a personalidade jurídica da sociedade devedora para atingir o patrimônio de uma outra sociedade, regularmente constituída, que deveria ter respeitada a sua autonomia jurídica e patrimonial. 

Neste sentido, a respeito da excepcionalidade da desconsideração da personalidade jurídica, vale destacar interessante julgamento do Superior Tribunal de Justiça: 

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ARTIGO 50, DO CC. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES OU DISSOLUÇÃO IRREGULARES DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. DOLO. NECESSIDADE. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ACOLHIMENTO. 1. A criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.[44]

Pensamos que o julgamento acima se encontra de acordo com os valores e normas postos no início deste trabalho. Por conta desta conclusão, temos receio da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para o âmbito dos grupos econômicos. Contudo, como dito acima, somos sabedores da realidade pragmática processual em que fraudes e abusos de direito podem existir. Talvez, uma das soluções para o tema, seja a aplicação da teoria destacada linhas atrás, quando nos reportamos ao diálogo das fontes. 

A aplicação simultânea de legislações ou microssistemas processuais, em conjunto, deriva da doutrina do diálogo das fontes, elaborada pelo Professor Erik Jayme[45] da Universidade de Heildelberg, e introduzida academicamente no direito brasileiro por Cláudia Lima Marques[46]. Nos parece que a maioria da comunidade jurídica nacional utiliza o diálogo das fontes de maneira correta, com a aplicação de seus benefícios, como uma importante ferramenta para se buscar a norma mais protetiva. 

Contudo, outra parcela, a utiliza de forma errônea, muito mais como uma “bengala” de interpretações sistemáticas para atendimento de seus interesses particulares, sem nem mesmo se ater aos valores constitucionais existentes no ordenamento. Nestas infelizes abordagens, a teoria vem sendo utilizada para justificar qualquer tomada de decisões, ao permitir uma construção de verdadeiras colchas de retalhos legislativos, em completa aversão aos ideias e premissas que visa proteger. 

A teoria do diálogo das fontes foi criada para ser aplicada no ramo privado onde, não obstante a normatividade da Constituição, que hoje deita sua luz sobre as normas privadas acarretando sua publicização, a autonomia da vontade ainda continua sendo a pedra de toque de muitas relações privadas. Inclusive, tal teoria já se encontra devidamente acatada pelo Supremo Tribunal Federal[47] e pelo Superior Tribunal de Justiça[48], prioritariamente para proteção de consumidores, como nos casos de compra e venda de imóveis e prazos de prescrição mais favoráveis ao consumidor. 

É neste campo que a teoria do diálogo das fontes foi idealizada, sobretudo para aplicação nas relações de consumo. É a proteção da parte mais fraca da relação, o consumidor, que em grande parte das vezes enfrenta gigantescas corporações privadas e seria dizimado caso não existisse tal proteção Estatal e legislativa. Conforme destaca Marques: 

Assim o aplicador da lei deve examinar o conflito com olhos plurais, adaptando sua própria formação e seus preconceitos às necessidades desta sociedade de consumo e de informação, de rapidez fantástica e de produção legislativa cada vez mais impressionante e plural (tratados, leis gerais, leis especiais, leis praticamente materiais, leis complementares, leis com números e sem números, medidas provisórias mensais, decretos, portarias, circulares etc). [...] os direitos fundamentais seriam as novas normas fundamentais, e estes direitos constitucionais influenciariam o novo direito privado, a ponto de o direito civil assumir um novo papel social, como limite, como protetor do indivíduo e como inibidor de abusos[49]. (grifo nosso).

Não sabemos se os ideais desta teoria podem ser facilmente transplantados para outros ramos do direito, como o direito societário em geral, ou o direito tributário, campo de recorrentes embates entre o Estado Fiscal e o cidadão contribuinte, e que possui detalhes totalmente alheios a uma relação de consumo. Contudo, o principal ideal, ou o núcleo mais importante da teoria do diálogo das fontes é sua proteção aos direitos humanos e aos valores constitucionais. Conforme ressalta, de forma muito clara, Marques: 

[...] o aplicador deve também visar o diálogo das fontes, de forma a dar efeito útil a um grande número de normas, privilegiando as normas narrativas, os valores constitucionais e, sobretudo, os direitos humanos, pois, como lembra Erik Jayme, o Leitmotiv, o fio condutor, do direito na pós-modernidade, do direito do século XXI, serão os direitos humanos. Na teoria de Jayme, como mencionamos anteriormente, o revival dos direitos humanos é proposto como elemento guia, como novos e únicos valores seguros a utilizar neste caos legislativo e desregulador, de codificações e micro-sistemas [...].[50] (grifo nosso). 

Em suma, pelo que pudemos compreender, a teoria do diálogo das fontes é utilizada da maneira prioritária, ou até mesmo exclusiva, no direito privado, para proteção dos direitos dos consumidores prejudicados, seja pela inércia legislativa, pela ausência do Estado ou até mesmo pelos abusos praticados nas relações pelas partes mais fortes. 

É a proteção do hipossuficiente, elevada a uma teoria sistemática que busque uma maior proteção a esta categoria em suas relações consumeristas. Busca-se a norma mais vantajosa justamente para oferecer maior proteção. Além disso, fica muito claro que a teoria possui como norte e objetivo o enaltecimento dos direitos humanos.

Desta feita, em tese, quando da responsabilização dos grupos econômicos, apenas para preservar os direitos de polos hipossuficientes, poderia ser cogitada a aplicação a desconsideração da personalidade jurídica, ainda que, nos detalhes, seja uma teoria para desconsiderar a personalidade e responsabilizar sócios e não outras pessoas jurídicas. Para tanto, também deveria ser aplicada a teoria do diálogo das fontes, mas como abordado, apenas para relações com polos hipossuficientes e desde que devidamente comprovada, mas nunca da forma banalizada, que vem sendo, infelizmente, aplicada para todos os ramos e situações jurídicas. 

Mais uma questão merece ser analisada. Se adotarmos tal construção teórica interpretativa para a responsabilização dos grupos econômicos no direito brasileiro, como deve ser o procedimento? 

De acordo com o Código de Processo Civil vigente, para estes casos, deve ser aplicado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), previsto nos artigos 133 a 137: 

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.

§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Como pode ser visualizado, nos parece que a preocupação do legislador ordinário foi de preservar os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, bem como a segurança jurídica e a autonomia dos entes. Para se desconstituir a personalidade, deve haver a observância de um procedimento próprio, inclusive com a suspensão do processo principal e com o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica. 

A doutrina também a acata o ideal de excepcionalidade da desconsideração da personalidade jurídica, condicionando-o à observância do IDPJ: 

Embora se reconheça a necessidade de, em certos casos, desvendar as pessoas dos sócios ou de outras pessoas que devam ser responsabilizadas pelo negócio jurídico, não se pode reputar legítimo o ato judicial que, extrapolando os limites da coisa julgada, determine a penhora de bens de terceiros, porquanto a responsabilização de pessoa que não participou do negócio jurídico constitui exceção. Por esta razão é que o novo CPC determinou a citação prévia do sócio ou da pessoa jurídica após a manifestação e o requerimento de provas (art. 135), o que impossibilita a decretação da desconsideração sem observância ao contraditório.[51]

Neste sentido, os artigos remanescentes do CPC estabelecem que o sócio ou a pessoa jurídica pode produzir provas e se manifestar: 

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Como observado, nos parece que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser encarada como exceção no ordenamento pátrio. A utilização desta teoria para a responsabilização dos grupos econômicos encontra dificuldades técnicas vez que as sociedades nos grupos de fato não são sócios formais das sociedades executadas ou postas no polo passivo em virtude de obrigações assumidas. Contudo, em casos excepcionais, pensamos que a construção teórica possa ser adotada. 

Sobre o autor
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Sócio fundador da BSPLAW advogados. Pós-Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) com bolsa integral concedida pela CAPES. Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) com bolsa integral concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ, governo federal), Visiting Researcher oficialmente convidado pelo International Bureau of Fiscal Documentation (IBFD - Amsterdam). Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). LLM em Direito Societário pelo INSPER. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET/USP), Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), MBA em Legal Administration pela Escola Paulista de Direito (EPD), Pós-graduado em International Tax Law pelo International Tax Center (ITC) Leiden, Holanda, Pós-graduado em Teoria Geral do Direito (IBET), Pós-graduado em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV SP), Técnico em Gestão/graduação universitária (Unisul), Professor palestrante e Professor orientador da Pós-graduação Lato Sensu em Direito Processual Tributário da PUC-SP/COGEAE, Professor Assistente da Graduação em Direito (PUC-SP), Assistente da Pós graduação Stricto Sensu no Mestrado em Direito Processual Tributário (PUC SP), Professor do Mestrado CEDES/SP, Professor de Direito Tributário convidado CIESA/Manaus, Palestrante convidado em diversos cursos de Pós-graduação pelo Brasil, tais como OAB, rede de ensino LFG e Escola da Magistratura da Terceira Região ( Emag TRF3), Experiência na atuação jurídico consultivo internacional nos âmbitos comercial, indenizatório e fiscal, Autor de livros e artigos em Direito Tributário, com destaque para a obra Execução Fiscal e Dignidade da Pessoa Humana com primeira edição esgotada em todo o Brasil, Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Tributário IBDT sob o número 2179, Membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Fiscal ABDF, Membro efetivo da International Fiscal Association IFA sob o número 41822

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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