A atuação dos Servidores Públicos Atuantes na área de Fiscalização diante do Artigo 22 da nova Lei Federal nº 13.869/2019 (Crimes de Abuso de Autoridade)

30/01/2020 às 13:34
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O presente artigo objetiva analisar o novo tipo penal, art. 22, da Lei Federal nº 13.869/2019, com relação à atuação dos servidores públicos os quais atuam na área de fiscalização.

Em 05 de setembro de 2019, foi publicada a Lei Federal nº 13.869/19, cujos efeitos somente entrarão em vigor a partir de 120 dias de sua publicação oficial. Trata-se de instrumento normativo por meio do qual visa a dispor sobre os crimes de abuso de autoridade.

É importante esclarecer que este artigo não entrará na questão acerca da colisão entre o direito fundamental da inviolabilidade domiciliar e a atuação estatal fiscalizatória das atividades comerciais. A análise se refere estritamente ao novo tipo penal contido na Lei Federal nº 13.869/2019.

Sem querer adentrar na discussão da justificativa e do cenário político o qual permeou a elaboração da normativa em referência, um de seus artigos vem chamando a atenção de servidores públicos os quais possuem atribuição relacionada ao poder de polícia, como, por exemplo, servidores fiscais sanitários, agropecuários e integrantes dos quadros da Receita.

O dispositivo legal o qual vem causando certo receio aos aludidos servidores é o artigo 22. Contudo, antes da análise do novel tipo penal, faz-se necessário salientar que o parágrafo único do artigo 2º da lei federal em comento dispõe acerca do conceito de agente público, sendo considerado aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território.

Aliado a isso, faz-se necessário observar que a normativa federal em comento dispõe que os crimes de abuso de autoridade são aqueles cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (art. 1º, caput).

Nesse viés, a Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade é taxativa ao dispor que as condutas nela descritas constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, §1º). Diante da leitura desse dispositivo, permite-se depreender que a lei exige, para que a conduta da autoridade pública seja tipificada como crime, um elemento subjetivo do tipo penal (dolo específico): que a autoridade tenha por finalidade específica prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

A partir dessas premissas estabelecidas pelo Legislador federal, foi tipificada como crime a seguinte conduta:

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 1º  Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

II - (VETADO);

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

§ 2º  Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.

A conduta tipificada, o elemento objetivo do tipo penal, dispõe que a conduta do agente público é criminosa quando ele invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei.

A primeira premissa para a perfectibilização do tipo penal em destaque é que o agente deve invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências. Analisado essa primeira parte do elemento objetivo do tipo penal, poder-se-ia concluir que, de fato, há subsunção à conduta do servidor público fiscal o qual adentra em estabelecimento particular, sem a vontade/consentimento do representante da pessoa jurídica fiscalizada.

Contudo, há duas exceções por meio das quais será possível invadir ou adentrar imóvel alheio: por determinação judicial ou nas condições estabelecidas em lei. Aqui, ressalta-se que, realizando uma interpretação ampliativa e sistêmica, o termo “lei” utilizado pelo legislador pode ser interpretado como respeito ao ordenamento jurídico como um todo.

Celso Antônio Bandeira de Melo prevê que, em sentido amplo (atos do legislativo e executivo), o poder de polícia corresponde à “atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-se aos interesses coletivos”; e em sentido estrito (atos do executivo), abrange “as intervenções do Poder Executivo, destinadas a alcançar fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastante com os interesses sociais1.

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Ademais, o Código Tribunal Nacional em seu artigo 78 considera poder de polícia como a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

A fim de robustecer esses argumentos, é sabido que diversos cargos relacionados à fiscalização das atividades comerciais possuem leis específicas, prevendo expressamente o exercício desse poder de polícia. A fim de exemplificar, temos o artigo 3º, alínea “c”, da Lei estadual nº 6.503/72, do Rio Grande do Sul, prevendo ser competência da Secretaria Estadual de Saúde o exercício do poder de polícia sanitária no território do Estado.

Diante dessas ponderações, é possível depreender que a conduta do servidor público atuante nas áreas de fiscalização, o qual adentra em estabelecimento comercial, no estrito exercício das suas atribuições de poder de polícia, não realiza a conduta descrita no tipo penal supramencionado por, pelo menos, dois motivos.

Primeiro, pois o tipo penal objetivo excetua a possibilidade do ato de invadir ou adentrar imóvel alheio, desde que cumpridas as condições previstas em lei. Assim, o servidor que adentra ou invade imóvel alheio, no estrito cumprimento de suas atribuições, investido no poder de polícia, está cumprindo as condições previstas no ordenamento jurídico. Nesse caso, vale observar que o estrito cumprimento do dever legal não seria causa de excludente da ilicitude, mas do próprio tipo penal.

Segundo, se o agente público atuante na área de fiscalização, invade ou adentra imóvel alheio, com o fim específico de cumprir as atribuições legais de seu cargo, exercendo esta atividade nos limites do poder de polícia conferido pelo ordenamento jurídico, resta ausente o elemento subjetivo do tipo penal previsto no artigo 1º, §1º, da lei em referência, qual seja a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Por último, finalizando os comentários acerca desta temática posta em debate, não se pode olvidar, também, que entendimento contrário inviabilizaria o exercício do poder-dever do Estado no exercício da fiscalização das atividades realizadas pelos particulares, pois bastaria ao cidadão recusar a entrada do agente público em seu estabelecimento e eventuais irregularidades cometidas não poderiam ser conhecidas, prevenidas e/ou sanadas, prejudicando substancialmente o interesse público, seja por ofensa à saúde pública, ao consumidor ou ao próprio patrimônio público.

1 https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/poder-de-policia-discricionariedade-e-limites/

Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Antigo analista processual da DPE/RS e analista de previdência e saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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