Doenças raras e a responsabilidade do Estado:

um estudo sobre a Lei 13.930/2019 e o RE 566.471/RN do STF

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Sumário: Introdução. 1. Proteção constitucional ao Direito à Saúde. 2 Doenças raras e a necessidade de medicina especializada conferida pelos Entes Públicos. 3 Aplicabilidade da lei 13.930/2019 na pesquisa de doenças raras. 4 Dever do Estado em fornecer medicamento de alto custo – RE566471/RN. Considerações finais. Referências.


Introdução

A Constituição Federal de 1988 trouxe significativas mudanças a respeito do Direito à Saúde no ordenamento jurídico pátrio. Os serviços públicos de saúde nas Constituições anteriores eram abordados de forma esparsa no texto normativo, e na maior parte das vezes atrelados aos direitos trabalhistas, possuindo pouca amplitude a população em geral.

Por essa razão, a atual “Carta Magna” decidiu inserir a saúde como um Direito social fundamental, previsto não só no artigo 6º caput, mas também no Título específico da Ordem Social como um desdobramento da Seguridade Social. Garantindo assim, o acesso universal, igualitário e gratuito a todas as pessoas.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), foi um importante passo para essa democratização do acesso a saúde pública no Brasil. Inserido no texto constitucional com o objetivo precípuo de descentralizar políticas públicas em cada esfera da federação, acabou trazendo ao longo dos anos diversas medidas de proteção e recuperação a saúde, integrando ações assistenciais e atividades preventivas fomentadas pela União, Estado, Distrito Federal e Municípios em prol da comunidade.

Todavia, a magnitude de um serviço de saúde gratuito e universal vem gerando questionamentos por parte de especialistas, sobretudo, quanto à necessidade de tratamentos e medicamentos que não possuem eficácia comprovada cientificamente ou que se encontram fora da lista de dispensação do SUS. Gerando assim, gargalos jurídicos quando esses fármacos são requeridos por via judicial.

Um exemplo claro dessa extensão do SUS são as demandas judiciais que envolvem doenças raras. Negligenciadas até a década de 80, se tornaram mais frequente nas pautas governamentais, especialmente, porque a concessão de tratamentos e medicamentos paliativos geram um alto custo financeiro para o Estado, afetando significativamente o seu planejamento orçamentário.

Embora haja no âmbito do SUS Protocolos Clínicos Terapêuticos voltadas ao tratamento dessas doenças, ainda há um déficit de hospitais especializados na área. Ademais, os pacientes diagnosticados com algum tipo de doença rara, ainda enfrentam outras dificuldades, como a morosidade no acesso a medicamentos gratuitos, a falta de orientação adequada e o despreparo dos profissionais de saúde na investigação dessas doenças.

E é nesse cenário que se expõe a judicialização da saúde. Por se tratar de doenças degenerativas, crônicas e com alto risco de vida para os pacientes, dificilmente, o Poder Judiciário irá negar em juízo a concessão de medicamentos e tratamentos a doenças raras. Causando assim, um conflito de interesses na divisão dos poderes, haja vista que o Estado argumenta que a atuação impositiva do judiciário revela uma invasão de competência na consecução de políticas públicas pelo Poder Público.

Isto posto, o presente artigo tem o intuito de compreender como estão sendo aplicadas as políticas públicas voltadas para o tratamento de doenças raras. Definindo sistematicamente, a proteção constitucional ao Direito à Saúde, o tratamento as doenças raras e a medicina especializada conferida pelos entes públicos. E por fim, um breve estudo sobre a Lei 13.930/19 aliada ao RE 566471/RN do STF.


1 Proteção constitucional ao Direito à Saúde

A Constituição Federal de 1988, no artigo 6º caput elenca uma série de direitos sociais que devem ser implementados pelo Estado, dentre eles pode ser citado o Direito à Saúde. O texto constitucional, foi inspirado na Declaração Universal dos Direitos Humanos que previu no artigo XXV o seguinte: “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.”[1]

Denota-se, assim, que o Direito à Saúde se ampara não só na ideia de formulação de políticas sociais aplicadas pelo Estado, mas também está atrelada ao princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal.[2]

Corolário dos Direitos Fundamentais, a dignidade da pessoa humana está diretamente vinculada ao ideal de uma vida digna, bem jurídico garantido e protegido pelo ordenamento jurídico. André de Carvalho Ramos ainda afirma que:

“A raiz da palavra ‘dignidade’ vem de dignus, que ressalta aquilo que possui honra ou importância. Para Kant, tudo tem um preço ou uma dignidade: aquilo que tem um preço é substituível e tem equivalente; já aquilo que não admite equivalente, possui uma dignidade. Assim, as coisas possuem preço; os indivíduos possuem dignidade. [...] Nessa linha, a dignidade da pessoa humana consiste em que cada indivíduo é um fim em si mesmo, como autonomia para se comportar de acordo com seu arbítrio, nunca um meio ou instrumento para a consecução de resultados, não possuindo preço.”[3]

Seguindo essa linha de entendimento, vê-se que para ter uma existência digna é essencial resguardar o direito do indivíduo a uma saúde de qualidade. Portanto, o legislador positivo decidiu reservar um capítulo na Constituição Federal para tratar sobre a saúde e as medidas preventivas a serem implementadas pelos entes federados, denominado “Ordem Social.”

Logo no art. 196 do texto constitucional destaca-se que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”[4]

Em uma análise sucinta do dispositivo, observa-se que o Direito à Saúde possui natureza ambivalente, ou seja, resguarda não só um direito coletivo – quando se utilizou os termos universal e igualitário –, mas também individual consubstanciado na ideia de proteção ao indivíduo que busca ter acesso pleno a esse direito subjetivo e essencial.

Sob o aspecto das políticas públicas a serem desenvolvidas pelos Entes federados, denota-se que o respectivo artigo se trata de uma norma de eficácia programática, ou seja, exige uma atuação vinculada e prestacional do Estado que deve dispor de meios adequados para a consecução das necessidades individuais e coletivas dos cidadãos.[5]

Sendo assim, a fim de que fosse possível a universalização desse direito foi implantada o Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pela saúde pública gratuita e integral a toda sociedade. O órgão possui atuação descentralizada em todos os entes da federação – União, Estado, Distrito Federal e Municípios – realizando procedimentos de qualquer natureza e com previsão expressa no artigo 198 do texto constitucional, além de ser regulamentado pela lei 8.080/90.[6]

Por certo, a finalidade desse Sistema Único de Saúde foi justamente ampliar o alcance da saúde pública no Brasil. Tanto que o artigo 15 da Lei 8.080/90 destaca diversas responsabilidades a serem desenvolvidas pelo Poder Público. Vejamos algumas:

“Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: I - definição das instâncias e mecanismos de controle, avaliação e de fiscalização das ações e serviços de saúde; II - administração dos recursos orçamentários e financeiros destinados, em cada ano, à saúde; III - acompanhamento, avaliação e divulgação do nível de saúde da população e das condições ambientais; IV - organização e coordenação do sistema de informação de saúde; V - elaboração de normas técnicas e estabelecimento de padrões de qualidade e parâmetros de custos que caracterizam a assistência à saúde;”

Ora, é evidente que a organização e coordenação dividida entre os Entes federados é de suma importância para o bom funcionamento do SUS. Tendo em vista que os Estados e Municípios, dentro de sua respectiva base territorial, estão mais familiarizados com as necessidades da população local, garantindo assim, que os procedimentos terapêuticos e atendimentos assistenciais cheguem a todas as pessoas de forma igualitária e universal.

Quando se diz de forma igualitária e universal,  é importante ressaltar as palavras de Luiz Alberto David de Araújo: “O princípio do acesso universal traduz que os recursos e ações na área da saúde pública devem ser destinados ao ser humano enquanto gênero, não podendo, portanto, ficar restritos a um grupo, categoria ou classe de pessoas.[7]”

Portanto, se extrai desse breve exposto que o Direito à saúde no âmbito constitucional busca a justeza na aplicabilidade de políticas sociais e econômicas. De modo que a atuação positiva do Estado de forma integrada com os seus diversos órgãos auxilia na funcionalidade do Sistema Único de Saúde em todas as esferas da federação. Além disso, o atendimento integral pelo SUS está alcançando patamares cada vez mais elevados, um exemplo claro, é o estudo e a projeção genética das doenças raras.


2 Doenças raras e a necessidade de medicina especializada conferida pelos Entes Públicos

O protagonismo judicial, na esfera da saúde, trouxe uma importante discussão acerca da extensão das políticas públicas de saúde para tratamentos de doenças raras. Geralmente, essas doenças são crônicas, progressivas e degenerativas e a ausência de Protocolos Clínicos Terapêuticos gratuitos acaba dificultando ainda mais o diagnóstico de pessoas que não possuem aporte financeiro para os tratamentos paliativos.

De forma estatística, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que as doenças raras afetam 65 (sessenta e cinco) pessoas a cada 100.000 (cem mil) indivíduos e que, embora cada caso possua as suas peculiaridades, acaba, atingindo um percentual significativo da população, resultando em um problema de saúde pública de grande relevância.[8]

O atendimento a esses casos de doenças raras é feito, prioritariamente, pelo SUS em Unidades de Atenção Básica e somente em casos graves serão os pacientes encaminhados para Unidade de Alta Complexidade. Além disso, o SUS fornece alguns medicamentos constantes em sua lista de dispensação, porém, o número de doenças raras que envolvem tratamento baseado em fármacos representa uma pequena fração do universo de doenças raras.[9]

Em 2014, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria 199 que institui dentre outras medidas, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras; as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do (SUS) e os incentivos financeiros de custeio.[10]

Embora de grande valia essas medidas, até hoje é possível verificar uma limitação geográfica quanto a esses serviços de atendimento, uma vez que foram priorizados hospitais localizados nas grandes capitais, dificultando o acesso as pessoas que moram no interior dos Estados.

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Sob o ponto de vista positivo, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras estabeleceu eixos estruturantes que permitem classificar e distinguir os sintomas mais comum entre os usuários da saúde. É nesse aspecto, que se faz necessário o uso da medicina especializada voltada para técnicas de genomas e avaliação genética, a fim de identificar padrões específicos em pacientes com essas doenças e personalizar o tratamento caso a caso.[11]

Tanto que no art. 6º, VII da Portaria 199 dispõe que um dos princípios dessa Política são:

“A incorporação e uso de tecnologias voltadas para a promoção, prevenção e cuidado integral na RAS, incluindo tratamento medicamentoso e fórmulas nutricionais quando indicados no âmbito do SUS, que devem ser resultados das recomendações formuladas por órgãos governamentais a partir do processo de avaliação e aprovação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT);” [12]

Ocorre que ainda existem alguns fatores que dificultam a sua efetividade, conforme a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa - (INTERFARMA) podem ser citados dois:

“a) atraso na elaboração e publicação de protocolos clínicos (PCDT para definir as doenças raras consideradas prioritárias. b) atraso no credenciamento de centros, impedindo o repasse de verbas para o funcionamento.”[13]

Quanto a isso, o Ministério da Saúde informou que ainda está em fase de adaptação a política de pleno atendimento a essas doenças raras, uma vez que para a incorporação de novas tecnologias e medicamentos ao SUS é necessária a apresentação de estudos à Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias (CONITEC) do Ministério da Saúde.[14]

Logo se denota, que a identificação das doenças raras não é nem de longe o maior problema a ser enfrentado pelos pacientes, mas sim o custo do tratamento e a dificuldade em ter acesso a esses Protocolo Clínicos pelo SUS. Aliás, essa discussão perdura por anos, principalmente, em relação ao preço, a incorporação de tecnologias paliativas e a responsabilidade estatal no fornecimento desses fármacos.

Entretanto, universalizar o atendimento a todas as pessoas acaba gerando um custo alto para o Estado, por essa razão que a judicialização da saúde contribuiu de forma significativa para o acesso a esses tratamentos. Possibilitando, inclusive, que tratamentos não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ou que não constassem em listas de dispensação do SUS fossem concedidos judicialmente.


3 Aplicabilidade da lei 13.930/2019 na pesquisa de doenças raras

No dia 11 de dezembro de 2019 foi publicada a Lei 13.930/2019, alterando a Lei 10.332/01, a fim de garantir a aplicação de percentual dos recursos do Programa de Fomento à Pesquisa em Saúde em atividades relacionadas ao desenvolvimento tecnológico de medicamentos, imunobiológicos, produtos para a saúde e outras modalidades terapêuticas destinadas ao tratamento de doenças raras ou negligenciadas.[15]

O objetivo da respectiva lei era fomentar a pesquisa científica de doenças consideradas raras, uma vez que os laboratórios farmacêuticos não tinham interesse em gastar os seus recursos financeiros em projetos de pesquisas de tal monta. A principal justificativa das indústrias farmacêuticas era o número reduzido de usuários e os custos de produção dos medicamentos órfãos, comprometendo sobremaneira os testes de eficácia, que não apresentavam resultados significativos.

Embora os medicamentos após testes pudessem ser incorporados ao SUS, ainda faltava uma definição estratégia voltada para o tratamento dos pacientes, haja vista que as pesquisas relacionadas a doenças raras ainda estavam em ascensão devido ao baixo limite orçamentário.

Sendo assim, a Lei 13.930/19 previu no seu artigo 1º que 30% dos recursos de Programas de fomento a saúde seriam destinados ao desenvolvimento tecnológico de medicamentos, imunobiológicos, para o tratamento de doenças raras.[16] Tal norma, iria assegurar que às pessoas com doenças raras, em tempo oportuno, tivessem acesso aos meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis conforme suas necessidades.

A especialista Magda Sampaio destaca que os “grandes progressos da genética molecular têm permitido a identificação das mutações gênicas que causam muitas dessas enfermidades.”.[17] Sendo assim, o aconselhamento genético, mediante pesquisas cientificas para a prevenção do aparecimento de novos casos, pode ser fundamental para essa área.

Logo, o investimento público com a nova Lei 13.930/19 irá propiciar maior agilidade no processo de análise e aprovação dos medicamentos, otimizando os recursos disponíveis de forma a garantir que a sua destinação alcance o maior número de pessoas possíveis.

Sobre a autora
Rosilene Ferrante Hoinacki Ribeiro

Bacharelada em Direito pela Universidade Central de Brasília (UniCEUB). Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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