Doenças raras e a responsabilidade do Estado:

um estudo sobre a Lei 13.930/2019 e o RE 566.471/RN do STF

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

4 Dever do Estado em fornecer medicamento de alto custo – RE 566471/RN

Não é de hoje que os Tribunais Superiores vêm tomando decisões significativas a respeito da concessão de medicamentos e tratamentos na área da saúde. Isso se deve por diversos fatores, tais como o atraso no tratamento, o agravamento dos quadros clínicos com maior utilização de serviços hospitalares, a dificuldade de atendimento especializado, a ausência de treinamento, habilitação e credenciamento de serviços, dentre outras situações que culminaram as demandas judiciais em todo o país.

Até 2019, muito se discutia sobre a responsabilidade dos entes federados na concessão de medicamentos e tratamentos para doenças raras. Conforme dados do Ministério da Saúde, os dez medicamentos mais caros para tratamento de doenças raras representaram 87% do total de 1,4 bilhão de reais gastos com a “judicialização da Saúde” em 2018. Para atender 1.596 pacientes, o governo desembolsou 1,2 bilhão de reais (um custo médio de 759.000 reais por paciente) no ano de 2019.[18]

Em processos judiciais, o argumento da Administração Pública era de que a intervenção do judiciário estava onerando os cofres públicos demasiadamente, pois a previsão orçamentária no ano corrente não cobria os gastos com demandas judiciais relacionadas a saúde, ainda mais quando envolviam medicamentos e tratamentos de alto custo.

Além disso, foram destacados outros fatores como a desorganização administrativa com o desvio do planejamento orçamentário, a ineficiência alocativa de recursos, já que as compras eram feitas separadamente ao processo comum; e a seletividade porque as decisões judiciais beneficiavam um indivíduo e prejudicava o funcionamento do SUS em prol da coletividade. Situações que segundo o Estado, propiciavam a má qualidade do serviço público de saúde.[19]

Sendo assim, para solucionar essa questão, foi julgado o RE 566471/RN no Supremo Tribunal Federal (STF) que discutia sobre “O dever do Estado em fornecer medicamento de alto custo”, no qual decorreu a seguinte tese:

“1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: I – a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras; II – A existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; III – a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.”[20]

O primeiro ponto a ser destacado da tese é o “Estado não deve ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais ou não incorporados pelo SUS, salvo em situações excepcionais”.

Para o Ministro Luiz Roberto Barroso, o sistema de saúde não suportaria um modelo em que todos os remédios, independentemente, do seu custo e impacto financeiro devessem ser fornecidos pelo Estado a todas as pessoas. Portanto, a melhor forma seria racionalizar a judicialização da saúde, buscando a opinião de órgãos técnicos responsável pela dispensação de medicamentos.[21]

No entanto, o STF ainda delimitou casos excepcionais em que poderá ser concedido o medicamento não registrado na ANVISA, desde que cumprido alguns requisitos essenciais que otimize a concessão de medicamentos, como será visto a seguir.

Quanto ao aspecto da comprovação da incapacidade financeira do requerente, a justificativa adotada pela Corte era que embora o SUS seja regido pela ideia da universalidade e igualdade, tal universalidade se refere apenas aos medicamentos incorporados pelo SUS e não a todos de forma irrestrita.[22] Sendo assim, limitar a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS visa resguardar a justiça social, já que somente os comprovadamente hipossuficientes seriam alcançados.

O segundo requisito a ser destacado, é a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil. De acordo com a lei 8.080/90 no seu art. 19-Q, a inclusão de novos medicamentos, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticos é de responsabilidade do Ministério da Saúde, assessorado pela CONITEC.[23]

Por essa razão, quando a CONITEC avalia o pedido de incorporação de medicamento, mas conclui de modo desfavorável ao fornecimento gratuito do fármaco pelo Poder Público, é recomendável pelo Ministério da Saúde que seja privilegiada a decisão técnica do órgão responsável. Tendo em vista que as decisões do judiciário acabam intervindo na regulação dessas políticas públicas que é de competência do Executivo.

Vale ressaltar dentro desse quesito, a excepcionalidade para doenças raras. O STF embasou que poderão ser fornecidos medicamentos pelo Estado, independentemente, de pedido de registro na ANVISA, uma vez que o tratamento imediato é fundamental para os pacientes com risco de vida. Nesse caso, é possível ainda que o medicamento seja importado do exterior quando preenchidos as condições de segurança e efetividade do tratamento.[24]

Para Salmo Raskin, geneticista do Departamento Científico de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), tal posicionamento é um grande avanço para implementação de políticas públicas voltadas a doenças raras, sobretudo, quando o medicamento possui eficácia comprovada no exterior.[25]

Quanto à inexistência de substituto terapêutico fornecido pelo SUS, foi inserida na tese com o intuito de inibir demandas judiciais que pleiteiam tratamento ou medicamento que possui adjunto terapêutico de mesma eficácia no âmbito do SUS. Logo, tal medida irá orientar os Tribunais a somente conceder fármacos com a comprovada inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos constantes dos protocolos clínicos do SUS.

Por fim, destaca-se o último quesito da tese fixada, a responsabilidade primária da União em demandar no polo passivo em ações que envolve medicamentos não registrados na ANVISA.[26]

Embora o STF possua entendimento consolidado sobre a responsabilidade solidária da União, Estado, Distrito Federal e Município, em ações de saúde, nota-se uma mudança de paradigma nesse caso específico. Entende-se que somente a União tem a possibilidade de decidir pela inclusão de novas tecnologias em saúde, haja vista que o CONITEC e o Ministério da Saúde – responsáveis pela análise desses pedidos – são órgãos federais, de responsabilidade da União. Logo, não faria sentido algum atribuir aos Estados e Municípios a legitimidade passiva nesses casos.

Conclui-se, assim, que a respectiva tese jurídica fixada pelo STF buscou otimizar a concessão de medicamentos de alto custo e o futuro das doenças raras. De modo que o Estado não se utilizasse do princípio da reserva do possível para mitigar a sua responsabilidade e, ao mesmo tempo, estabeleceu parâmetros ao judiciário no momento de conceder medicamentos de alto custo, a fim de dar mais liberdade ao modus operandi das políticas públicas aplicada pelo Executivo. Todavia, sempre preservando a dignidade da pessoa humana como bem maior.


Considerações finais

A proposta do artigo foi uma análise das políticas públicas voltadas para o tratamento de doenças raras e a concessão de medicamento de alto custo pelo Estado. Conforme observado, a saúde possui proteção constitucional garantida pelo artigo 6º caput da Carta Magma, assim como o artigo 196 e seguintes do texto normativo que versam sobre a responsabilidade dos entes federados no fomento e implementação de serviços públicos a saúde.

Observa-se, portanto, que a democratização do SUS quanto ao acesso universal e igualitário a todas as pessoas, propiciou que as doenças raras ganhassem mais visibilidade pelo Estado, sobretudo, quanto ao tratamento por tecnologia de alta complexidade e medicamentos paliativos. Após a publicação da Portaria 199/2014, vislumbrou-se uma preocupação maior com as pesquisas voltadas ao estudo das doenças raras, ainda que de pouca monta, o Ministério da Saúde juntamente com a CONITEC buscou ampliar as alternativas terapêuticas e a medicina especializada fornecidas pelo SUS. 

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Embora ainda haja percalços a serem enfrentados, tais como o atraso na elaboração e publicação de Protocolos Clínicos Terapêuticos que definem as doenças raras consideradas prioritárias e a ausência de credenciamento de centros especializados, vê-se que o Poder Público e demais órgãos adjacentes estão buscando aperfeiçoar os seus sistemas.

Reitera-se, também, que o Poder Judiciário não está inerte quanto a isso. Tanto que a fixação da tese no RE 566471/RN, reconhecendo o direito ao fornecimento de medicamento de alto custo pelo Estado, não incluído em Política Nacional de Medicamentos, demostra, por si só, a flexibilização da justiça em prol da dignidade da pessoa humana. Nesse aspecto, constatou-se que a judicialização da saúde continua sendo a forma mais eficaz de acesso a esses tratamentos, o que gera grande crítica quanto a autonomia do Poder Executivo na consecução de políticas públicas.

 Por essa razão, que a instituição da Lei 13.930/19 foi de grande relevância para fomentar o desenvolvimento de pesquisas voltadas a identificação e tratamentos de doenças raras. Espera-se, assim, que o respectivo documento normativo e o arcabouço jurídico aqui apresentado, amplie a atuação do Poder Público em busca da otimização do SUS. Especialmente quanto ao desenvolvimento de estudos e de pesquisas que busquem o aperfeiçoamento, a inovação de tecnologias e a disseminação de conhecimentos voltados à promoção da saúde, à prevenção e à reabilitação desses indivíduos.


Referências

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Planalto. Portal online. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. LEI Nº 13.930, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2019. Acessado 08 de jan. 2019. Link http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13930.htm

BRASIL. Portaria 199 de 30 de janeiro de 2014. Acessado dia 08 de jan. 2019. Link: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0199_30_01_2014.html

FIOCRUZ. Doenças raras ainda representam desafio para saúde pública. Acessado dia 09 de jan. 2019. Link https://portal.fiocruz.br/noticia/doencas-raras-ainda-representam-desafio-para-saude-publica

INTERFARMA. Doenças raras: a urgência do acesso à saúde. Ativa online. 2016.

LENZA, Pedro. (2019). Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 566471/RN. Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo. Relator: MIN. MARCO AURÉLIO. Acessado 10 de jan. 2019. Link: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2565078&numeroProcesso=566471&classeProcesso=RE&numeroTema=6

ARAUJO, L. A. D.; NUNES JÚNIOR, V. S. Curso de Direito Constitucional, 2016, p. 584.

Sobre a autora
Rosilene Ferrante Hoinacki Ribeiro

Bacharelada em Direito pela Universidade Central de Brasília (UniCEUB). Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos